118
Se quereis actuar sempre como senhores de vós
próprios, aconselho-vos a pordes um empenho muito grande em estar desprendidos
de tudo, sem medo, sem temores nem receios.
Depois,
ao cuidar de cumprir as vossas obrigações pessoais, familiares..., empregai os
meios terrenos honestos com rectidão, pensando no serviço a Deus, à Igreja, aos
vossos, ao vosso trabalho profissional, ao vosso país, à humanidade inteira.
Reparai
que o importante não se concretiza na materialidade de possuir isto ou de
carecer daquilo, mas sim em nos conduzirmos de acordo com a verdade que a nossa
fé cristã nos ensina: os bens criados são apenas meios.
Portanto,
afastai a ilusão de considerá-los como algo definitivo: não acumuleis tesouros
na terra, onde a ferrugem e a traça os corroem e os ladrões os desenterram e
furtam.
Acumulai
tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os corroem e onde os ladrões
não os descobrem nem furtam.
Pois
onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração.
Quando alguém centra a sua felicidade
exclusivamente nas coisas terrenas - fui testemunha de verdadeiras tragédias -
perverte o seu uso razoável e destrói a ordem sabiamente disposta pelo Criador.
O
coração fica então triste e insatisfeito; mete-se por caminhos de um eterno
descontentamento e acaba escravizado já na terra, vítima desses mesmos bens,
que talvez tenham sido conseguidos à custa de renúncias e esforços sem conta.
Mas,
sobretudo, recomendo-vos que não esqueçais que Deus não cabe, não habita num
coração enlameado por um amor desordenado, grosseiro, vão.
Ninguém
pode servir a dois senhores, porque ou há-de odiar um e amar o outro, ou se
dedicará a um e desprezará o outro.
Não
podeis servir a Deus e às riquezas.
Prendamos,
pois, o coração no amor capaz de nos fazer felizes... Desejemos os tesouros do
céu.
119
Não te estou a induzir a um abandono no
cumprimento dos teus deveres ou na exigência dos teus direitos.
Pelo
contrário, para cada um de nós, habitualmente, uma retirada nessa frente
equivale a desertarmos cobardemente da luta para sermos santos, à qual Deus nos
chamou.
Por
isso, com segurança de consciência, hás-de pôr empenho - especialmente no teu
trabalho - para que nem a ti nem aos teus falte o conveniente para viver com
dignidade cristã.
Se
em algum momento, experimentares na tua carne o peso da indigência, não te
entristeças nem te revoltes; mas, insisto, procura empregar todos os recursos
nobres para superar essa situação, porque actuar de outra maneira seria tentar
a Deus.
E
enquanto lutas, lembra-te de que omnia in
bonum!, tudo - também a escassez, a pobreza - coopera para o bem dos que
amam o Senhor.
Habitua-te, desde já, a enfrentar com alegria
as pequenas limitações, as incomodidades, o frio, o calor, a privação de algo
que consideras imprescindível, o facto de não poderes descansar quando e como
queres, a fome, a solidão, a ingratidão, a incompreensão, a desonra...
120
Pai...
não os tires do mundo
Somos homens da rua, cristãos correntes,
metidos na corrente circulatória da sociedade e o Senhor quer-nos santos,
apostólicos, precisamente no nosso trabalho profissional, isto é,
santificando-nos nesse trabalho, santificando esse trabalho e ajudando os
outros a santificarem--se com esse trabalho.
Convencei-vos
de que Deus vos espera nesse ambiente, com solicitude de Pai, de Amigo.
Pensai
que com a vossa actividade profissional realizada com responsabilidade, além de
vos sustentardes economicamente, prestais um serviço directíssimo ao
desenvolvimento da sociedade, aliviais as cargas dos outros e ajudais a manter
muitas obras assistenciais - a nível local e universal - em prol dos indivíduos
e dos povos mais desfavorecidos.
125
Temos de ser exigentes em relação a nós
próprios no dia-a-dia, para não inventarmos falsos problemas, necessidades
artificiais que, no fundo, procedem do orgulho, do capricho, de um espírito
comodista e preguiçoso.
Devemos
caminhar para Deus com passo rápido, sem pesos mortos nem empecilhos que
dificultem a marcha.
Precisamente
porque a pobreza de espírito não consiste em não ter, mas em estar deveras
desapegados, devemos permanecer atentos, para não nos enganarmos com motivos
imaginários de força maior. Procurai o suficiente, procurai o que basta.
E
não queirais mais.
O
que passa daí é perturbação e não alívio; pesa em vez de elevar.
Ao descer a estes conselhos, não me baseio em
situações estranhas, anormais ou complicadas.
Sei
de alguém que usava, como marcas de leitura para os livros, uns papéis em que
escrevia jaculatórias para o ajudarem a manter a presença de Deus.
E
entrou nele o desejo de conservar com carinho aquele tesouro, até que se deu
conta de que estava a apegar-se a papeizitos de nada.
Já vedes que modelo de virtudes!
Não me importaria de vos manifestar todas as
minhas misérias, se isso vos servisse para alguma coisa.
Levantei
um pouco o manto, porque talvez a ti te suceda a mesma coisa: os teus livros, a
tua roupa, a tua mesa, os teus... ídolos de quinquilharia.
Em casos destes, recomendo-vos que consulteis
o vosso director espiritual sem ânimo pueril nem escrupuloso.
Às
vezes, bastará como remédio a pequena mortificação de prescindir do uso de algo
por uma temporada curta.
Ou,
noutro domínio, não acontece nada de especial, se um dia renuncias ao meio de
transporte que usas habitualmente e dás como esmola a quantia poupada, ainda
que seja muito pouco dinheiro.
De
qualquer modo, se tens espírito de desprendimento, não deixarás de descobrir
ocasiões constantes, discretas e eficazes de o exercitar.
Depois de vos abrir a minha alma, devo
confessar-vos também que tenho um apego a que nunca quereria renunciar: o de
vos amar a todos de verdade.
Aprendi-o
com o melhor Mestre e gostaria de seguir fidelissimamente o seu exemplo, amando
sem limites todas as almas, a começar pelos que me rodeiam.
Não
vos comove essa caridade ardente, esse carinho de Jesus, que transparece no
modo como o Evangelista designa um dos seus discípulos: quem diligebat Jesus, aquele que Jesus amava?
126
Terminamos com uma consideração que nos
oferece o Evangelho da Missa de hoje: seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a
Betânia, onde morrera Lázaro, a quem Jesus ressuscitou dos mortos.
Ofereceram-lhe
uma ceia; Marta servia e Lázaro era um dos que estavam à mesa com Ele.
Então
Maria, tomando uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, ungiu os pés
de Jesus e enxugou-os com os seus cabelos; e a casa encheu-se com o cheiro do
perfume.
Que
prova tão clara de magnanimidade o excesso de Maria! Judas lamenta que se tenha
desperdiçado um perfume que valia - com a sua avareza fez muito bem as contas -
pelo menos trezentos dinheiros.
O verdadeiro desprendimento leva-nos a ser
muito generosos com Deus e com os nossos irmãos, a sermos diligentes, a
arranjarmos recursos, a gastarmo-nos para ajudar aqueles que sofrem
necessidades.
Um
cristão não pode conformar-se com um trabalho que lhe permita ganhar o
suficiente para se sustentar a si e aos seus.
A
sua grandeza de coração levá-lo-á a arrimar o ombro para sustentar os outros,
por um motivo de caridade e por um motivo de justiça, como escrevia S. Paulo
aos Romanos: A Macedónia e a Acaia
houveram por bem fazer uma colecta para os pobres que há entre os santos de
Jerusalém. Houveram-no por bem e disso lhes eram devedores. Porque, se os
gentios participam dos bens espirituais dos judeus, também aqueles devem
assistir estes com os seus bens temporais.
Não sejais mesquinhos nem tacanhos com quem tão
generosamente se excedeu connosco, até se entregar totalmente, sem medida.
Pensai
quanto vos custa - também no domínio económico - ser cristão!
Mas,
sobretudo, não esqueçais que Deus ama quem dá com alegria. E Deus é poderoso
para vos cumular com toda a espécie de graças, de sorte que, tendo sempre em
todas as coisas tudo o que é suficiente, vos fique ainda muito para toda a
espécie de boas obras.
Ao aproximarmo-nos, durante esta Semana
Santa, das dores de Jesus Cristo, vamos pedir à Santíssima Virgem que, a
exemplo d'Ela, também nós saibamos meditar e conservar todos estes ensinamentos
no nosso coração.
127
Ego
sum via, veritas et vita, Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Com
estas palavras inequívocas, o Senhor mostrou - nos qual é o verdadeiro caminho
que leva à felicidade eterna.
Ego sum via:
Ele é o único caminho que une o Céu à terra.
Declara-o
a todos os homens, mas recorda-o especialmente aos que, como tu e eu, lhe
dissemos que estamos decididos a tomar a sério a nossa vocação de cristãos, de
modo que Deus se encontre sempre presente nos nossos pensamentos, nos nossos
lábios e em todos os nossos actos, mesmo naqueles mais normais e correntes.
Jesus é o caminho.
Ele deixou neste mundo as pegadas limpas dos
seus passos, sinais indeléveis que nem o desgaste dos anos nem a perfídia do
inimigo conseguiram apagar.
Iesus
Christus heri, et hodie; ipse et in sæcula.
Como gosto de recordá-lo!
Jesus
Cristo, o mesmo que foi ontem para os Apóstolos e para as pessoas que o
procuravam, vive hoje para nós e viverá pelos séculos sem fim.
Nós,
homens, é que às vezes não conseguimos descobrir o seu rosto, perenemente
actual, porque olhamos com olhos cansados ou turvos. Agora, ao começar este
tempo de oração junto ao Sacrário, pede-lhe como aquele cego do Evangelho: Domine, ut videam!, Senhor, que eu veja!
Que se encha de luz a minha inteligência e a palavra de Cristo penetre na minha
mente; que a sua Vida enraíze na minha alma para me transformar com vista à
Glória eterna.
(cont)
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