Leitura Espiritual
Cristo que passa |
São Josemaria Escrivá
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A arriscada segurança do
Cristão
Qui habitat in adiutorio Altissimi in protectione Dei coelí
commorabitur - Habitar sob a protecção de Deus, viver com Deus: eis a
arriscada segurança do cristão.
É necessário
convencermo-nos de que Deus nos ouve, de que está sempre solícito por nós, e
assim se encherá de paz o nosso coração. Mas viver com Deus é indubitavelmente
correr um risco, porque o Senhor não Se contenta compartilhando; quer tudo.
E aproximar-se d'Ele um
pouco mais significa estar disposto a uma nova rectificação, a escutar mais
atentamente as suas inspirações, os santos desejos que faz brotar na nossa alma,
e a pô-los em prática.
Desde a nossa primeira
decisão consciente de viver integralmente a doutrina de Cristo, é certo que
avançámos muito pelo caminho da fidelidade à sua Palavra.
Mas não é verdade que
restam ainda tantas coisas por fazer?
Não é verdade que resta,
sobretudo, tanta soberba?
É precisa, sem dúvida, uma
outra mudança, uma lealdade maior, uma humildade mais profunda, de modo, que,
diminuindo o nosso egoísmo, cresça em nós Cristo, pois illum oportet crescere, me autem minui, é preciso que Ele cresça e
que eu diminua.
Não é possível deixar-se
ficar imóvel.
É necessário avançar para
a meta que S. Paulo apontava: não sou eu
quem vive; é Cristo que vive em mim.
A ambição é alta e
nobilíssima: a identificação com Cristo, a santidade. Mas não há outro caminho,
se se deseja ser coerente com a vida divina que, pelo Baptismo, Deus fez nascer
nas nossas almas. O avanço é o progresso na santidade; o retrocesso é negar-se
ao desenvolvimento normal da vida cristã.
Porque o fogo do amor de
Deus precisa de ser alimentado, de aumentar todos os dias arreigando-se na
alma; e o fogo mantém-se vivo queimando novas coisas.
Por isso, se não aumenta,
está a caminho de se extinguir.
Recordai as palavras de
Santo Agostinho: Se disseres basta, estás
perdido. Procura sempre mais, caminha sempre, progride sempre. Não permaneças
no mesmo sítio, não retrocedas, não te desvies.
A Quaresma coloca-nos
agora perante estas perguntas fundamentais: Avanço na minha fidelidade a
Cristo?
Em desejos de santidade?
Em generosidade apostólica
na minha vida diária, no meu trabalho quotidiano entre os meus companheiros de
profissão?
Cada um que responda a
estas. perguntas, sem ruído de palavras, e verá como é necessária uma nova
transformação para que Cristo viva em nós, para que a sua imagem se reflicta
limpidamente na nossa conduta.
Se alguém quer vir atrás de Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua
cruz de cada dia, e siga-Me.
Cristo repete-o a cada um
de nós, ao ouvido, intimamente: a Cruz de cada dia.
Não só - escreve S. Jerónimo - em
tempo de perseguição, ou quando se apresenta a possibilidade do martírio, mas
em todas as situações, em todas as actividades, em todos os pensamentos, em
todas as palavras, neguemos aquilo que antes éramos e confessemos o que agora
somos, visto que renascemos em Cristo.
Estas considerações não
são, afinal, senão o eco das do Apóstolo: Outrora
éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Comportai-vos como filhos da luz,
porque o fruto da luz consiste na bondade, na justiça e na verdade. Procurai o
que é agradável ao Senhor.
A conversão é coisa de um
instante; a santificação é tarefa para toda a vida.
A semente divina da
caridade, que Deus pôs nas nossas almas, aspira a crescer, a manifestar-se em
obras, a dar frutos que correspondam em cada momento ao que é agradável ao
Senhor.
Por isso, é indispensável
estarmos dispostos a recomeçar, a reencontrar - nas novas situações da nossa
vida - a luz, o impulso da primeira conversão.
E essa é a razão pela qual
havemos de nos preparar com um exame profundo, pedindo ajuda ao Senhor para
podermos conhecê-Lo melhor e conhecer-nos melhor a nós mesmos.
Não há outro caminho para
nos convertermos de novo.
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O tempo oportuno
Exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis - Exortamo-vos a não
receber em vão a graça de Deus.
Porque a graça divina pode
encher as nossas almas nesta Quaresma, desde que não cerremos as portas do
coração.
Temos de ter estas boas
disposições, o desejo de nos transformar realmente, de não brincar com a graça
do Senhor.
Não gosto de falar de
temor, porque o que move o cristão é o Amor de Deus, que se nos manifestou em
Cristo e que nos ensina a amar todos os homens e a criação inteira; mas devemos
falar de responsabilidade, de seriedade.
Não queirais enganar-vos a
vós mesmos: de Deus não se zomba, adverte-nos o mesmo Apóstolo.
É preciso decidir-se.
Não é lícito viver
tentando manter acesas, como diz o povo, uma vela a S. Miguel e outra ao Diabo.
É preciso apagar a vela do
Diabo.
Temos de consumir a vida
fazendo-a arder inteiramente ao serviço do Senhor.
Se o nosso empenho pela
santidade é sincero, se temos a docilidade de nos abandonar nas mãos de Deus,
tudo correrá bem.
Porque Ele está sempre
disposto a dar-nos a sua graça e, especialmente neste tempo, a graça de uma
nova conversão, de uma melhoria da nossa vida de cristãos.
Não podemos considerar
esta Quaresma como uma época mais, repetição cíclica do tempo litúrgico; este
momento é único; é uma ajuda divina que é necessário aproveitar.
Jesus passa ao nosso lado
e espera de nós - hoje, agora - uma grande mudança.
Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis: eis o tempo oportuno,
que pode ser o dia da Salvação.
Outra vez se ouvem os
apelos do Bom Pastor, o carinhoso chamamento: Ego vocavi te nomine tuo.
Chama-nos a cada um pelo
nosso nome, com o nome familiar com que nos tratam as pessoas que nos amam.
A ternura de Jesus por nós
não cabe em palavras.
Contemplai comigo esta
maravilha do amor de Deus: o Senhor vem ao nosso encontro, espera por nós,
coloca-Se à beira do caminho, para que não tenhamos outra solução senão vê-Lo!
E chama-nos pessoalmente,
falando-nos das nossas coisas, que são também as suas, movendo a nossa
consciência à compreensão, abrindo-a à generosidade, imprimindo na nossa alma o
desejo de sermos fiéis, de podermos chamar-nos seus discípulos!
Basta ouvir essas palavras
íntimas da graça, que são como que uma repreensão, tantas vezes afectuosa, para
nos darmos conta de que não Se esqueceu de nós durante todo aquele tempo em
que, por culpa nossa, nós não O vimos.
Cristo ama-nos com o amor
inesgotável que cabe no seu Coração de Deus.
Reparai na sua
insistência: Ouvi-te no tempo oportuno, ajudei-te no dia da salvação.
Já que Ele te promete a
glória, o seu amor, e to oferece oportunamente, e te chama - tu que Lhe hás-de
dar?
Como responderás, como
responderei eu também, a esse amor de Jesus, que passa?
Ecce nunc dies salutis - aqui está, diante de nós, este dia da salvação.
O chamamento do Bom Pastor
chega até nós: Ego vocavi te nomine tuo,
Eu chamei-te, a ti, pelo teu nome!
É preciso responder - amor
com amor se paga - dizendo-Lhe Ecce ego
quia vocasti me - chamaste por mim e aqui estou!
Estou decidido a que não
passe este tempo de Quaresma como passa a água sobre as pedras, sem deixar
rasto.
Deixar-me-ei empapar,
transformar; converter-me-ei, dirigir-me-ei de novo ao Senhor, querendo-Lhe
como Ele deseja ser querido.
Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua
alma, e com toda a tua mente Que resta do teu coração - comenta S. Agostinho - para que possas amar-te a ti mesmo? Que
resta da tua alma, da tua mente? Ex toto - afirma. “Totum exigit te, qui fecit te"; Quem te fez exige tudo de ti.
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Após este protesto de
amor, é necessário comportarmo-nos como amigos de Deus.
In omnibus exhibeamus nosmetipsos sicut Dei ministros; comportemo-nos em tudo
como servidores do Senhor.
Se te dás como Ele quer, a
acção divina manifestar-se-á na tua conduta profissional, no trabalho, num
empenho por fazer divinamente as coisas humanas, grandes ou pequenas, pois pelo
Amor todas adquirem uma nova dimensão.
Mas nesta Quaresma não
podemos esquecer que querer ser servidores de Deus não é fácil.
Continuemos a seguir o
texto de S. Paulo que a Epístola deste Domingo recolhe, para recordarmos as
dificuldades: Como servidores de Deus -
escreve o Apóstolo - com muita paciência
nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nos cárceres,
nas sedições, no trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; com pureza, com doutrina,
com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com caridade sincera,
com palavras de verdade, com fortaleza de Deus.
Nos mais diferentes
momentos da vida, em todas as situações., havemos de comportarmo-nos como
servidores de Deus, sabendo que o Senhor está connosco, que somos seus filhos.
É preciso sermos
conscientes dessa raiz divina, que está enxertada na nossa vida, e actuar em
conformidade.
Estas palavras do Apóstolo
deve encher-vos de alegria, porque são como que uma canonização da vossa
vocação de cristãos correntes, vivendo no meio do mundo, compartilhando com os
demais homens, vossos iguais, ideais, trabalhos e alegrias. Tudo isso é caminho
divino.
O que o Senhor vos pede é
que a todo o momento actueis como filhos e servidores seus.
Mas estas circunstâncias
ordinárias da vida só serão caminho divino se realmente nos convertermos, se
nos entregarmos.
S. Paulo, na verdade, usa
uma linguagem dura.
Promete ao cristão uma
vida difícil, arriscada, em perpétua tensão. Como se tem desfigurado o
Cristianismo quando se tem pretendido fazer dele um caminho cómodo!
Mas também é uma
desfiguração da verdade pensar que essa vida profunda e séria, que conhece
vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de angústia, de
opressão ou de medo.
O cristão é realista, de
um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes da vida: a dor e
a alegria, o sofrimento próprio e alheio, a certeza e a perplexidade, a
generosidade e a tendência para o egoísmo...
O cristão conhece tudo e
com tudo se enfrenta, cheio de inteireza humana e de fortaleza recebida de
Deus.
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As tentações de Cristo
A Quaresma comemora os
quarenta dias que Jesus passou no deserto, como preparação para os anos de
pregação que culminam na Cruz e na glória da Páscoa.
Quarenta dias de oração e
de penitência, no fim dos quais teve lugar o episódio que a liturgia de hoje
oferece à nossa consideração no Evangelho da Missa: as tentações de Cristo.
É uma cena cheia de
mistério, que o homem em vão pretende entender - Deus que Se submete à
tentação, que deixa actuar o Maligno... - mas que pode ser meditada, pedindo ao
Senhor que nos faça compreender a lição nela contida.
Jesus Cristo tentado!
A Tradição esclarece este
episódio considerando que Nosso Senhor quis sofrer a tentação para nos dar
exemplo em tudo.
Assim é, porque Cristo foi
perfeito homem, igual a nós, salvo no pecado.
Após quarenta dias de
jejum, com o simples alimento, possivelmente, de ervas e de raízes e de um
pouco de água, Jesus sente fome - fome autêntica, como a de qualquer criatura.
E quando o Demónio lhe
propõe que transforme em pão as pedras, Nosso Senhor não só rejeita o alimento
que o corpo lhe pedia, mas afasta de Si uma incitação maior: a de usar o poder
divino para remediar, digamos assim, um problema pessoal.
Tereis notado isso ao
longo dos Evangelhos: Jesus não faz milagres em proveito próprio.
Converte a água em vinho
para os noivos de Caná; multiplica os pães e os peixes para dar de comer a uma
multidão faminta; mas Ele ganha o seu pão, durante muitos anos, com o seu
próprio trabalho.
E mais tarde, durante o
tempo em que peregrina por terras de Israel, vive com a ajuda daqueles que O
seguem
Relata S. João que, depois
de uma longa caminhada, chegando Jesus ao poço de Sicar, manda os seus
discípulos à cidade para comprarem alimentos; e ao ver aproximar-se a
Samaritana pede-lhe água, porque Ele não tinha com que tirá-la.
O seu corpo fatigado pela
longa caminhada sofre o cansaço e, outras vezes, para refazer energias, recorre
ao sono.
Generosidade do Senhor que
Se humilhou, que aceitou plenamente a condição humana, que não Se serve do seu
poder divino para fugir das dificuldades ou do esforço!
E assim nos ensina a ser
fortes, a amar o trabalho, a nobreza humana e divina de saborear as consequências
da entrega, da doação.
Na segunda investida,
quando o Demónio Lhe propõe que Se lance do pináculo do Templo, Jesus rejeita
de novo a tentação de querer servir-Se do seu poder divino.
Cristo não busca a
vangloria, o aparato, a comédia humana que procura utilizar Deus como pano de
fundo da nossa própria excelência. Jesus Cristo quer cumprir a vontade do Pai
sem adiantar os tempos nem antecipar a hora dos milagres, percorrendo passo a
passo a dura senda dos homens, o amável caminho da cruz.
Algo muito parecido vemos
na terceira tentação: são-lhe oferecidos reinos, poder, glória.
O Demónio pretende
estender a ambições humanas uma atitude que se deve reservar só a Deus: promete
uma vida fácil a quem se prostrar diante dele, diante dos ídolos.
Nosso Senhor reconduz a
adoração ao seu único e verdadeiro fim - Deus - e reafirma a sua vontade de
servir: Afasta-te, Satanás; porque está
escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
(cont)
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