24/08/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual


Cristo que passa



São Josemaria Escrivá
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A arriscada segurança do Cristão

Qui habitat in adiutorio Altissimi in protectione Dei coelí commorabitur - Habitar sob a protecção de Deus, viver com Deus: eis a arriscada segurança do cristão.
É necessário convencermo-nos de que Deus nos ouve, de que está sempre solícito por nós, e assim se encherá de paz o nosso coração. Mas viver com Deus é indubitavelmente correr um risco, porque o Senhor não Se contenta compartilhando; quer tudo.
E aproximar-se d'Ele um pouco mais significa estar disposto a uma nova rectificação, a escutar mais atentamente as suas inspirações, os santos desejos que faz brotar na nossa alma, e a pô-los em prática.

Desde a nossa primeira decisão consciente de viver integralmente a doutrina de Cristo, é certo que avançámos muito pelo caminho da fidelidade à sua Palavra.
Mas não é verdade que restam ainda tantas coisas por fazer?
Não é verdade que resta, sobretudo, tanta soberba?
É precisa, sem dúvida, uma outra mudança, uma lealdade maior, uma humildade mais profunda, de modo, que, diminuindo o nosso egoísmo, cresça em nós Cristo, pois illum oportet crescere, me autem minui, é preciso que Ele cresça e que eu diminua.

Não é possível deixar-se ficar imóvel.
É necessário avançar para a meta que S. Paulo apontava: não sou eu quem vive; é Cristo que vive em mim.
A ambição é alta e nobilíssima: a identificação com Cristo, a santidade. Mas não há outro caminho, se se deseja ser coerente com a vida divina que, pelo Baptismo, Deus fez nascer nas nossas almas. O avanço é o progresso na santidade; o retrocesso é negar-se ao desenvolvimento normal da vida cristã.
Porque o fogo do amor de Deus precisa de ser alimentado, de aumentar todos os dias arreigando-se na alma; e o fogo mantém-se vivo queimando novas coisas.
Por isso, se não aumenta, está a caminho de se extinguir.

Recordai as palavras de Santo Agostinho: Se disseres basta, estás perdido. Procura sempre mais, caminha sempre, progride sempre. Não permaneças no mesmo sítio, não retrocedas, não te desvies.

A Quaresma coloca-nos agora perante estas perguntas fundamentais: Avanço na minha fidelidade a Cristo?
Em desejos de santidade?
Em generosidade apostólica na minha vida diária, no meu trabalho quotidiano entre os meus companheiros de profissão?

Cada um que responda a estas. perguntas, sem ruído de palavras, e verá como é necessária uma nova transformação para que Cristo viva em nós, para que a sua imagem se reflicta limpidamente na nossa conduta.

Se alguém quer vir atrás de Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz de cada dia, e siga-Me.
Cristo repete-o a cada um de nós, ao ouvido, intimamente: a Cruz de cada dia.
Não só - escreve S. Jerónimo - em tempo de perseguição, ou quando se apresenta a possibilidade do martírio, mas em todas as situações, em todas as actividades, em todos os pensamentos, em todas as palavras, neguemos aquilo que antes éramos e confessemos o que agora somos, visto que renascemos em Cristo.

Estas considerações não são, afinal, senão o eco das do Apóstolo: Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Comportai-vos como filhos da luz, porque o fruto da luz consiste na bondade, na justiça e na verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor.

A conversão é coisa de um instante; a santificação é tarefa para toda a vida.
A semente divina da caridade, que Deus pôs nas nossas almas, aspira a crescer, a manifestar-se em obras, a dar frutos que correspondam em cada momento ao que é agradável ao Senhor.
Por isso, é indispensável estarmos dispostos a recomeçar, a reencontrar - nas novas situações da nossa vida - a luz, o impulso da primeira conversão.
E essa é a razão pela qual havemos de nos preparar com um exame profundo, pedindo ajuda ao Senhor para podermos conhecê-Lo melhor e conhecer-nos melhor a nós mesmos.
Não há outro caminho para nos convertermos de novo.

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O tempo oportuno

Exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis - Exortamo-vos a não receber em vão a graça de Deus.
Porque a graça divina pode encher as nossas almas nesta Quaresma, desde que não cerremos as portas do coração.
Temos de ter estas boas disposições, o desejo de nos transformar realmente, de não brincar com a graça do Senhor.

Não gosto de falar de temor, porque o que move o cristão é o Amor de Deus, que se nos manifestou em Cristo e que nos ensina a amar todos os homens e a criação inteira; mas devemos falar de responsabilidade, de seriedade.
Não queirais enganar-vos a vós mesmos: de Deus não se zomba, adverte-nos o mesmo Apóstolo.

É preciso decidir-se.
Não é lícito viver tentando manter acesas, como diz o povo, uma vela a S. Miguel e outra ao Diabo.
É preciso apagar a vela do Diabo.
Temos de consumir a vida fazendo-a arder inteiramente ao serviço do Senhor.
Se o nosso empenho pela santidade é sincero, se temos a docilidade de nos abandonar nas mãos de Deus, tudo correrá bem.
Porque Ele está sempre disposto a dar-nos a sua graça e, especialmente neste tempo, a graça de uma nova conversão, de uma melhoria da nossa vida de cristãos.

Não podemos considerar esta Quaresma como uma época mais, repetição cíclica do tempo litúrgico; este momento é único; é uma ajuda divina que é necessário aproveitar.
Jesus passa ao nosso lado e espera de nós - hoje, agora - uma grande mudança.

Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis: eis o tempo oportuno, que pode ser o dia da Salvação.
Outra vez se ouvem os apelos do Bom Pastor, o carinhoso chamamento: Ego vocavi te nomine tuo.
Chama-nos a cada um pelo nosso nome, com o nome familiar com que nos tratam as pessoas que nos amam.
A ternura de Jesus por nós não cabe em palavras.

Contemplai comigo esta maravilha do amor de Deus: o Senhor vem ao nosso encontro, espera por nós, coloca-Se à beira do caminho, para que não tenhamos outra solução senão vê-Lo!
E chama-nos pessoalmente, falando-nos das nossas coisas, que são também as suas, movendo a nossa consciência à compreensão, abrindo-a à generosidade, imprimindo na nossa alma o desejo de sermos fiéis, de podermos chamar-nos seus discípulos!

Basta ouvir essas palavras íntimas da graça, que são como que uma repreensão, tantas vezes afectuosa, para nos darmos conta de que não Se esqueceu de nós durante todo aquele tempo em que, por culpa nossa, nós não O vimos.
Cristo ama-nos com o amor inesgotável que cabe no seu Coração de Deus.

Reparai na sua insistência: Ouvi-te no tempo oportuno, ajudei-te no dia da salvação.
Já que Ele te promete a glória, o seu amor, e to oferece oportunamente, e te chama - tu que Lhe hás-de dar?
Como responderás, como responderei eu também, a esse amor de Jesus, que passa?

Ecce nunc dies salutis - aqui está, diante de nós, este dia da salvação.
O chamamento do Bom Pastor chega até nós: Ego vocavi te nomine tuo, Eu chamei-te, a ti, pelo teu nome!
É preciso responder - amor com amor se paga - dizendo-Lhe Ecce ego quia vocasti me - chamaste por mim e aqui estou!
Estou decidido a que não passe este tempo de Quaresma como passa a água sobre as pedras, sem deixar rasto.
Deixar-me-ei empapar, transformar; converter-me-ei, dirigir-me-ei de novo ao Senhor, querendo-Lhe como Ele deseja ser querido.

Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, e com toda a tua mente Que resta do teu coração - comenta S. Agostinho - para que possas amar-te a ti mesmo? Que resta da tua alma, da tua mente? Ex toto - afirma. “Totum exigit te, qui fecit te"; Quem te fez exige tudo de ti.

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Após este protesto de amor, é necessário comportarmo-nos como amigos de Deus.
In omnibus exhibeamus nosmetipsos sicut Dei ministros; comportemo-nos em tudo como servidores do Senhor.
Se te dás como Ele quer, a acção divina manifestar-se-á na tua conduta profissional, no trabalho, num empenho por fazer divinamente as coisas humanas, grandes ou pequenas, pois pelo Amor todas adquirem uma nova dimensão.

Mas nesta Quaresma não podemos esquecer que querer ser servidores de Deus não é fácil.
Continuemos a seguir o texto de S. Paulo que a Epístola deste Domingo recolhe, para recordarmos as dificuldades: Como servidores de Deus - escreve o Apóstolo - com muita paciência nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nos cárceres, nas sedições, no trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; com pureza, com doutrina, com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com caridade sincera, com palavras de verdade, com fortaleza de Deus.

Nos mais diferentes momentos da vida, em todas as situações., havemos de comportarmo-nos como servidores de Deus, sabendo que o Senhor está connosco, que somos seus filhos.
É preciso sermos conscientes dessa raiz divina, que está enxertada na nossa vida, e actuar em conformidade.

Estas palavras do Apóstolo deve encher-vos de alegria, porque são como que uma canonização da vossa vocação de cristãos correntes, vivendo no meio do mundo, compartilhando com os demais homens, vossos iguais, ideais, trabalhos e alegrias. Tudo isso é caminho divino.
O que o Senhor vos pede é que a todo o momento actueis como filhos e servidores seus.

Mas estas circunstâncias ordinárias da vida só serão caminho divino se realmente nos convertermos, se nos entregarmos.
S. Paulo, na verdade, usa uma linguagem dura.
Promete ao cristão uma vida difícil, arriscada, em perpétua tensão. Como se tem desfigurado o Cristianismo quando se tem pretendido fazer dele um caminho cómodo!
Mas também é uma desfiguração da verdade pensar que essa vida profunda e séria, que conhece vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de angústia, de opressão ou de medo.

O cristão é realista, de um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes da vida: a dor e a alegria, o sofrimento próprio e alheio, a certeza e a perplexidade, a generosidade e a tendência para o egoísmo...
O cristão conhece tudo e com tudo se enfrenta, cheio de inteireza humana e de fortaleza recebida de Deus.

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As tentações de Cristo

A Quaresma comemora os quarenta dias que Jesus passou no deserto, como preparação para os anos de pregação que culminam na Cruz e na glória da Páscoa.
Quarenta dias de oração e de penitência, no fim dos quais teve lugar o episódio que a liturgia de hoje oferece à nossa consideração no Evangelho da Missa: as tentações de Cristo.

É uma cena cheia de mistério, que o homem em vão pretende entender - Deus que Se submete à tentação, que deixa actuar o Maligno... - mas que pode ser meditada, pedindo ao Senhor que nos faça compreender a lição nela contida.

Jesus Cristo tentado!
A Tradição esclarece este episódio considerando que Nosso Senhor quis sofrer a tentação para nos dar exemplo em tudo.
Assim é, porque Cristo foi perfeito homem, igual a nós, salvo no pecado.
Após quarenta dias de jejum, com o simples alimento, possivelmente, de ervas e de raízes e de um pouco de água, Jesus sente fome - fome autêntica, como a de qualquer criatura.
E quando o Demónio lhe propõe que transforme em pão as pedras, Nosso Senhor não só rejeita o alimento que o corpo lhe pedia, mas afasta de Si uma incitação maior: a de usar o poder divino para remediar, digamos assim, um problema pessoal.

Tereis notado isso ao longo dos Evangelhos: Jesus não faz milagres em proveito próprio.
Converte a água em vinho para os noivos de Caná; multiplica os pães e os peixes para dar de comer a uma multidão faminta; mas Ele ganha o seu pão, durante muitos anos, com o seu próprio trabalho.
E mais tarde, durante o tempo em que peregrina por terras de Israel, vive com a ajuda daqueles que O seguem

Relata S. João que, depois de uma longa caminhada, chegando Jesus ao poço de Sicar, manda os seus discípulos à cidade para comprarem alimentos; e ao ver aproximar-se a Samaritana pede-lhe água, porque Ele não tinha com que tirá-la.
O seu corpo fatigado pela longa caminhada sofre o cansaço e, outras vezes, para refazer energias, recorre ao sono.
Generosidade do Senhor que Se humilhou, que aceitou plenamente a condição humana, que não Se serve do seu poder divino para fugir das dificuldades ou do esforço!
E assim nos ensina a ser fortes, a amar o trabalho, a nobreza humana e divina de saborear as consequências da entrega, da doação.

Na segunda investida, quando o Demónio Lhe propõe que Se lance do pináculo do Templo, Jesus rejeita de novo a tentação de querer servir-Se do seu poder divino.
Cristo não busca a vangloria, o aparato, a comédia humana que procura utilizar Deus como pano de fundo da nossa própria excelência. Jesus Cristo quer cumprir a vontade do Pai sem adiantar os tempos nem antecipar a hora dos milagres, percorrendo passo a passo a dura senda dos homens, o amável caminho da cruz.

Algo muito parecido vemos na terceira tentação: são-lhe oferecidos reinos, poder, glória.
O Demónio pretende estender a ambições humanas uma atitude que se deve reservar só a Deus: promete uma vida fácil a quem se prostrar diante dele, diante dos ídolos.
Nosso Senhor reconduz a adoração ao seu único e verdadeiro fim - Deus - e reafirma a sua vontade de servir: Afasta-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.


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