06/07/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual

Temas actuais do cristianismo 



São Josemaria Escrivá

1

pergunta:

Quereríamos começar esta entrevista com um problema que provoca em muitos espíritos as mais diversas interpretações.
Referimo-nos ao tema do aggiornamento.
Como entende, aplicado à vida da Igreja, o verdadeiro sentido desta palavra?

resposta:

Fidelidade.
Para mim, aggiornamento significa sobretudo isto: fidelidade.
Um marido, um soldado, um administrador é sempre tanto melhor marido, tanto melhor soldado, tanto melhor administrador, quanto mais fielmente souber corresponder, em cada momento, perante cada nova circunstância da sua vida, aos firmes compromissos de amor e de justiça que um dia assumiu.
A fidelidade delicada, operativa e constante - que é difícil, como é difícil qualquer aplicação de princípios à realidade mutável do que é contingente - é por isso a melhor defesa da pessoa contra a velhice de espírito, a aridez de coração e a anquilose mental.

O mesmo sucede na vida das instituições, muito especialmente na vida da Igreja, que obedece, não a um precário projecto do homem, mas a um desígnio de Deus.
A Redenção, a salvação do mundo, é obra da fidelidade amorosa e filial de Jesus Cristo - e da nossa com Ele - à vontade do Pai celestial que O enviou.
Por isso, o aggiornamento da Igreja - agora, como em qualquer outra época - é fundamentalmente isto: uma reafirmação jubilosa da fidelidade do Povo de Deus à missão recebida, ao Evangelho.

É claro que essa fidelidade - viva e actual perante cada circunstância da vida dos homens - pode requerer, e de facto tem requerido frequentemente na história duas vezes milenária da Igreja e recentemente no Concílio Vaticano II, oportunos desenvolvimentos doutrinais na exposição das riquezas do Depositum Fidei, assim como convenientes modificações e reformas que aperfeiçoam - no seu elemento humano, perfectível - as estruturas orgânicas e os métodos missionários e apostólicos.
Mas seria pelo menos superficial pensar que o aggiornamento consiste primariamente em modificar, ou que qualquer modificação aggiorna.
Basta pensar que não falta quem, à margem da doutrina conciliar e contra ela, também desejaria modificações que fariam retroceder em muitos séculos de história - pelo menos até à época feudal - o caminho progressivo do Povo de Deus.

2
                
pergunta:

O Concílio Vaticano II utilizou abundantemente nos seus Documentos a expressão “Povo de Deus”, para designar a Igreja, e pôs assim a claro a responsabilidade comum de todos os cristãos na missão única deste Povo de Deus.
Quais as características que, em seu entender, a “necessária opinião pública na Igreja” - da qual já Pio XII falou - deve ter, para reflectir essa responsabilidade comum?
Como é afectado o fenómeno da “opinião pública na Igreja” pelas peculiares relações de autoridade e obediência que se verificam no seio da comunidade eclesial?

resposta:

Não concebo que possa haver obediência verdadeiramente cristã, se essa obediência não for voluntária e responsável.
Os filhos de Deus não são pedras ou cadáveres: são seres inteligentes e livres e elevados todos à mesma ordem sobrenatural, tal como a pessoa que manda.
Mas não poderá nunca fazer uso recto da inteligência e da liberdade - para obedecer, da mesma maneira que para opinar - quem carecer de suficiente formação cristã.
Por isso, o problema de fundo da “necessária opinião pública na igreja” é equivalente ao problema da necessária formação doutrinal dos fiéis.
É certo que o Espírito Santo distribui a abundância dos seus dons entre os membros do Povo de Deus - que são todos corresponsáveis da missão da Igreja - mas isto não exime ninguém, antes pelo contrário, do dever de adquirir essa adequada formação doutrinal.

Entendo por doutrina o suficiente conhecimento que cada fiel deve ter da missão total da Igreja e da peculiar participação, e consequente responsabilidade específica, que lhe corresponde nessa missão única. Este é - como o tem recordado repetidas vezes o Santo Padre - o colossal trabalho de pedagogia que a Igreja tem de enfrentar nesta época pós-conciliar.
Penso que a solução correcta do problema a que aludiu deve ser procurada - como outras esperanças latentes no seio da Igreja - em relação directa com esse trabalho.
Não serão, com certeza, as intuições mais ou menos proféticas de alguns carismáticos sem doutrina que poderão assegurar a necessária opinião pública no Povo de Deus.

Quanto às formas de expressão dessa opinião pública, não considero que seja um problema de órgãos ou de instituições.
Tão adequado pode ser um Conselho pastoral diocesano, como as colunas dum jornal - ainda que não seja oficialmente católico - ou a simples carta pessoal dum fiel ao seu Bispo, etc.
As possibilidades e as modalidades legítimas pelas quais essa opinião dos fiéis se pode manifestar são muito variadas, e não parece que se possam nem devam espartilhar, criando uma nova entidade ou instituição.
E menos ainda se se tratasse duma instituição que corresse o perigo - tão fácil - de chegar a ser monopolizada ou instrumentalizada por um grupo ou grupito de católicos oficiais, qualquer que fosse a tendência ou orientação em que essa minoria se inspirasse.
Isto poria em perigo o próprio prestígio da Hierarquia e soaria a falso para os restantes membros do Povo de Deus.

3              

pergunta:

O conceito de Povo de Deus, a que antes nos referíamos, exprime o carácter histórico da Igreja, como uma realidade de origem divina que se serve também, no seu caminhar, de elementos mutáveis e perecíveis.
De acordo com isso, como se deve realizar hoje a existência sacerdotal na vida dos presbíteros?
Que característica da figura do presbítero, descrita no Decreto “Presbyterorum Ordinis”, lhe parece ser de sublinhar no momento actual?

resposta:

Sublinharia uma característica da existência sacerdotal que não pertence precisamente à categoria dos elementos mutáveis e perecíveis. Refiro-me à união perfeita que se deve verificar - e o Decreto Presbyterorum Ordinis recorda-o repetidas vezes - entre consagração e missão do sacerdote: ou, o que é a mesma coisa, entre vida pessoal de piedade e exercício do sacerdócio ministerial, entre as relações filiais do sacerdote com Deus e as suas relações pastorais e fraternas com os homens.

Não acredito na eficácia ministerial do sacerdote que não é homem de oração.

4

pergunta:
                
Existe certa inquietação nalguns sectores do clero acerca da presença do sacerdote na sociedade, que procura - apoiando-se na doutrina do Concílio (Const. Lumen gentium, n.º 31; Decr. Presbyterorum Ordinis, n.º 8) - exprimir-se através duma actividade profissional do sacerdote na vida civil - “padres-operários”, etc.
Gostaríamos de conhecer o que pensa sobre este assunto.

resposta:

Antes de mais, devo dizer que respeito a opinião contrária à que vou expor, embora por muitas razões a considere errada, e que acompanho com o meu afecto e com a minha oração os que a põem em prática, pessoalmente, com grande zelo apostólico.

Penso que o sacerdócio rectamente exercido - sem timidez nem complexos que são ordinariamente demonstração de imaturidade humana, e sem prepotências clericais que denotariam pouco sentido sobrenatural -, o ministério próprio do sacerdote assegura por si mesmo, suficientemente, urna legítima, simples e autêntica presença do homem-sacerdote entre os restantes membros da comunidade a que se dirige.
Ordinariamente, não é necessário mais para viver em comunhão de vida com o mundo do trabalho, compreender os seus problemas e participar da sua sorte.
Mas o que, com certeza, poucas vezes será eficaz - porque a sua própria falta de autenticidade o condena antecipadamente ao fracasso - é recorrer ao ingénuo passaporte dumas actividades laicais de amador, que podem ofender, por muitas razões, o bom senso dos próprios leigos.

Além disso, o ministério sacerdotal é - sobretudo nestes tempos de tanta escassez de clero - um trabalho terrivelmente absorvente, que não deixa tempo para o duplo emprego. As almas têm tanta necessidade de nós, ainda que muitas o não saibam, que nunca se consegue fazer tudo.
Faltam braços, tempo, forças.
Costumo por isso dizer aos meus filhos sacerdotes que, se algum deles chegasse a notar que num dia lhe tinha sobrado tempo, poderia estar absolutamente certo de que nesse dia não tinha vivido bem o seu sacerdócio.

E repare que se trata, no caso destes sacerdotes do Opus Dei, de homens que antes de receberem as ordens sagradas tinham normalmente exercido, durante anos, uma actividade profissional na vida civil: são engenheiros-sacerdotes, médicos-sacerdotes, operários-sacerdotes, etc...
No entanto, não sei de nenhum que tenha considerado necessário - para se tornar ouvido e estimado na sociedade civil, entre os seus antigos colegas e companheiros - aproximar-se das almas com uma régua de cálculo, um estetoscópio ou um martelo pneumático.
É verdade que, uma ou outra vez, exercem - de modo compatível com as obrigações do estado clerical - a sua profissão ou ofício, mas nunca por pensarem que isso é necessário para assegurar uma “presença na sociedade civil”; fazem-no por outros motivos diversos: de caridade social, por exemplo, ou de absoluta necessidade económica, para pôr em andamento um empreendimento apostólico.
Também São Paulo recorreu, algumas vezes, à sua profissão de fabricante de tendas; mas nunca porque Ananias lhe tivesse dito em Damasco que aprendesse a fabricar tendas para poder, assim, anunciar devidamente o Evangelho de Cristo aos gentios.

Em resumo, e sem pretender com isto julgar da legitimidade e da rectidão de intenção de nenhuma iniciativa apostólica, entendo que o intelectual-sacerdote e o operário-sacerdote, por exemplo, são figuras mais autênticas e mais em harmonia com a doutrina do Vaticano II do que a figura do padre-operário.
Salvo no que significa de trabalho pastoral especializado - que será sempre necessário -, a figura típica do padre-operário pertence já ao passado: um passado no qual estava ainda oculta para muitos a potencialidade maravilhosa do apostolado dos leigos.

5

pergunta:
                
Às vezes ouve-se criticar aqueles sacerdotes que assumem atitudes concretas em problemas de índole temporal e mais especialmente nos de carácter político.
Muitas dessas atitudes tendem - o que não sucedia noutras épocas - a favorecer urna maior liberdade, a justiça social, etc.
Também é certo que não é própria do sacerdócio ministerial a intervenção activa nestes terrenos a não ser em casos excepcionais.
Mas, não lhe parece que o sacerdote deve denunciar a injustiça, a falta de liberdade, etc., por não serem cristãs?
Como conciliar, concretamente, estas exigências?

RESPOSTA:

O sacerdote deve pregar - porque é parte essencial do seu munus docendi - quais são as virtudes cristãs - todas -, e quais as exigências e manifestações concretas que essas virtudes devem ter nas diversas circunstâncias da vida dos homens a que ele dirige o seu ministério. Como deve também ensinar a respeitar e estimar a dignidade e a liberdade da pessoa humana que Deus criou, e a peculiar dignidade sobrenatural que o cristão recebe com o baptismo.

Nenhum sacerdote que cumpra este seu dever ministerial poderá - a não ser por ignorância ou má-fé - ser acusado de meter-se em política.
Nem sequer se poderá dizer que, ao expor estes ensinamentos, interfira na tarefa apostólica específica, que corresponde aos leigos, de ordenar cristãmente as estruturas e as actividades temporais.

(Entrevista realizada por Pedro Rodríguez, publicada em Palabra (Madrid), Outubro de 1967)

(cont)


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