INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
TERCEIRA PARTE
O ESPÍRITO E A IGREJA
CAPÍTULO SEGUNDO
Duas Questões Fundamentais do Artigo
sobre o Espírito Santo e sobre a Igreja
2. "Ressurreição da carne"
b) Imortalidade essencial ao homem.
As considerações feitas até agora
deveriam ter esclarecido algum tanto o assunto de que em última análise se trata,
na mensagem bíblica sobre a ressurreição: o seu conteúdo essencial não é a ideia
de uma devolução do corpo às almas após um prolongado intervalo; o seu sentido
é declarar aos homens que eles, eles mesmos, sobrevivem; não pela própria
força, mas porque são conhecidos e amados por Deus de maneira tal que não podem
mais desaparecer. Em contraposição ao conceito dualista da imortalidade
expresso no esquema grego de corpo-alma, a fórmula bíblica da imortalidade pela
ressurreição tende a transmitir um conceito humano-total e dialógico da
imortalidade: o essencial do homem, a pessoa, permanece; o que amadureceu nessa
existência terrena, de espiritualidade corpórea e de corporeidade
espiritualizada, continua existindo de outro modo. Continua porque vive na
lembrança de Deus. O elemento co-humano faz parte desse futuro, por ser o
próprio homem quem há-de viver, não uma alma isolada; por isso o futuro de cada
um só será completo quando se tiver consumado o futuro da humanidade.
Mas, agora surgem diversas perguntas. A
primeira é: Deste modo, imortalidade não resultaria em pura graça, quando, na
verdade, é devida à natureza do homem, como tal? Ou por outras palavras: Não se
aportaria assim a uma imortalidade exclusiva dos bons, ou seja, a uma divisão
inaceitável do destino humano? Não estaria sendo trocada, falando
teologicamente, a imortalidade natural do homem com o dom sobrenatural do amor eterno
que o torna feliz? Precisamente para salvaguardar o humanismo da fé não se
deveria conservar a imortalidade natural, porque uma sobrevivência concebida
sob o enfoque puramente cristológico redundaria necessariamente em miraculoso e
mitológico? A esta última questão cumpre responder afirmativamente. Isto, no
entanto, não contradiz o nosso ponto de vista. Também na nossa perspectiva há-de
afirmar-se decididamente: A imortalidade que acabamos de denominar de
"ressurreição", graças ao seu carácter dialógico, cabe ao homem, como
homem, a cada homem, não sendo nenhum elemento "sobrenatural"
acrescentado secundariamente. Contudo outra pergunta se impõe: O que é afinal
que faz do homem um homem? Em que consiste o elemento definitivamente
constitutivo do homem? Eis a nossa resposta: Visto de cima, o distintivo do
homem é receber a palavra pronunciada por Deus, isto é, ser parceiro do diálogo
com Deus, ser o ente chamado por Deus. Visto de baixo, quer dizer que o homem é
o ser capaz de pensar Deus, aberto para a transcendência. Não se trata de saber
se ele realmente pensa Deus, se está de facto aberto para ele, mas trata-se de
averiguar que o homem é realmente aquele ente capacitado, por si e em si, para
tal, mesmo se não o consiga realizar, quaisquer que sejam as razões do seu
fracasso.
Mas, poder-se-ia dizer: não seria muito
mais simples ver a característica do homem no facto de ele possuir uma alma
imortal? Sem dúvida, mas o nosso esforço visa exactamente trazer à luz o
sentido concreto desta constatação. As duas coisas não se contradizem, mas
exprimem o mesmo em formas diversas. Porquanto "ter alma espiritual"
significa exactamente: ser objecto de um bem-querer especial, de um especial
conhecimento e amor de Deus; ter uma alma espiritual denota: ser um ente
chamado por Deus para o diálogo eterno e, por isso, estar em condições de
conhecer a Deus e de lhe responder. O que exprimimos por "ter alma" numa
linguagem mais substancial, expressamos em linguagem mais histórica e actual
como "ser parceiro do diálogo com Deus". Isto não quer dizer que seja
falso o modo de falar sobre a alma (como o afirma, às vezes hoje em dia, um
biblicismo unilateral e não crítico); esta terminologia até se torna necessária
para exprimir tudo o que se tenciona. Mas, por outro lado, ela precisa de um
complemento, se não se quiser recair numa concepção dualista incapaz de
satisfazer a visão dialógica e personalista da Bíblia.
Por conseguinte, ao afirmar que a
imortalidade do homem está fundamentada na sua polarizacção para Deus, cujo
amor é o único a conceder eternidade, não se exprime um destino especial dos
bons, mas destaca-se a imortalidade do homem como tal. Após as nossas últimas
considerações é perfeitamente viável desenrolar o mesmo pensamento do esquema
corpo-alma; a sua importância e, quiçá, indispensabilidade consiste em
sublinhar o carácter essencial da imortalidade humana. Mas é preciso voltar
sempre à perspectiva bíblica e a partir daí corrigir esse esquema para que
continue útil à visão que se abre para o futuro do homem a partir da fé. De
resto, volta a perceber-se aqui que não é possível distinguir sem mais entre
"natural" e "sobrenatural": o diálogo fundamental que
constitui o homem, antes de tudo, passa, sem interrupção, a diálogo da graça
que se chama Jesus Cristo. Mas como não poderia ser, se Cristo realmente é o
"segundo Adão", a realização propriamente dita do infinito anseio que
brota do primeiro Adão – do homem em geral?
c) A questão do corpo ressuscitado.
Não alcançamos ainda o fim de nossas
perguntas. Se assim é, existirá um corpo ressuscitado, ou tudo isso conotaria
apenas um código da imortalidade da pessoa? Eis o problema que ainda nos
aguarda. Não se trata de problema novo; já São Paulo fora bombardeado pelos
coríntios com perguntas desta espécie, como o revela o capítulo 15 da Primeira
Carta aos Coríntios, em que o Apóstolo tenta responder, enquanto possível,
dentro dos limites da nossa capacidade e do mundo a nós acessível. Muitas das
comparações usadas por Paulo tornaram-se-nos estranhas; a sua resposta, em
conjunto, ainda é o que de mais amplo, de mais ousado e mais convincente se
disse sobre o assunto.
Partamos do versículo 50 que me parece
ser uma espécie de chave para o resto: "Asseguro-vos, irmãos, que a carne
e o sangue não podem conseguir o reino de Deus, nem a corrupção, a
incorruptibilidade". Ao meu ver, esta frase ocupa no nosso texto
aproximadamente o mesmo lugar que o versículo 63 do capítulo 6.° de João, os
dois textos, aliás aparentemente tão distanciados entre si, são muito mais
aparentados do que se poderia perceber à primeira vista. Diz-se em João, após se
acentuar com toda força a real presença da carne e do sangue de Jesus na
Eucaristia: "O espírito é que vivifica, a carne para nada serve".
Tanto no texto aos Coríntios como em João trata-se de desenvolver o realismo
cristão da "carne". Em João dá-se ênfase ao realismo dos sacramentos,
isto é, ao realismo da ressurreição de Jesus e da sua "carne" que daí
nos provém; em Paulo trata-se do realismo da ressurreição da "carne",
da ressurreição dos cristãos e da salvação que assim se concretiza para nós.
Mas, em ambos os capítulos, estabelece-se também forte contraponto a destacar o
realismo cristão como realismo que vai além da física, como realismo do
Espírito Santo, em antítese a um realismo quase físico, puramente imanente ao
mundo.
Aqui a nossa língua fracassa diante das
nuances do grego bíblico. Nele o vocábulo soma denota o mesmo que
"corpo" e, simultaneamente, o mesmo que o "eu", a
"ipseidade". Esse soma pode ser sarx ou seja, corpo,
sob a forma (na maneira) terreno-histórica, isto é químico-física; pode ser
também pneuma – "espírito", de acordo com os dicionários; na
realidade, quer dizer: o "eu", a "ipseidade" ou
"identidade" que agora aparece em um corpo palpável químico-físico,
pode também aparecer definitivamente no mundo de uma realidade transfísica. Na
terminologia de Paulo, "corpo" e "espírito" não são
antitéticos, mas as suas antíteses soariam como "corpo de carne" e
"corpo à maneira espiritual". Não é preciso tentar acompanhar agora
os complexos problemas históricos e filosóficos que se apresentam. Em todo
caso, uma coisa deveria estar esclarecida: tanto João (6,53), como Paulo (1Cor
15,50) acentuam com todo o vigor possível que a "ressurreição" da
carne", a "ressurreição dos corpos" não é "ressurreição dos
organismos". E assim, falando na perspectiva (a partir) do pensamento
moderno, a ideia paulina é muito menos simplória do que a posterior sapiência
teológica com as suas subtis elocubrações sobre a questão se podem ou não
existir corpos eternos. Paulo não ensina, para repeti-lo, a ressurreição dos
organismos, mas das pessoas, e isto não no retorno dos" corpos de
carne", isto é, das estruturas biológicas, que ele expressamente declara
impossíveis ("o corruptível não pode tornar-se incorruptível"), mas
na conformação toda diferente da vida da ressurreição, prefigurada no Senhor
ressuscitado.
Mas, a ressurreição não teria nexo
algum com a matéria? E o " último dia " não se tornaria, assim,
totalmente sem objectivo, em favor da vida que sempre vem do chamamento de
Deus? Em si a resposta a esta derradeira questão já foi apresentada nas nossas
considerações sobre o retorno de Cristo. Se o cosmos é história e se a matéria
representa um momento na história do espírito, não existe um eterno neutro
estar-um-ao-lado-do-outro de matéria e espírito, mas uma última
"complexidade" na qual o mundo encontra o seu ómega e a sua unidade.
Então haverá um último nexo entre matéria e espírito, em que se consuma o
destino do homem e do mundo, mesmo se hoje nos seja impossível precisar a
espécie deste nexo. Então haverá um "último dia" em que o destino de
cada homem estará completo, porque se terá consumado o destino da humanidade.
A meta do cristão não é uma felicidade particular, mas o conjunto. Ele
acredita em Cristo, crendo assim no futuro do mundo e não só no seu futuro
pessoal. Sabe que esse futuro é mais do que ele mesmo pode realizar. Sabe que
existe um sentido que ele não está em condições de destruir. Mas, será isto
motivo para cruzar os braços? Pelo contrário – por saber que há sentido, pode e
deve realizar, alegre e impávido, a obra da história, mesmo com o sentimento,
na miopia de quem só vê o seu pequeno segmento de actividade, de estar
realizando trabalho de Sísifo, em que, geração após geração, a pedra volta a
ser rolada morro acima, para tornar a escorregar, tornando vãos todos os
esforços. O crente sabe que está "avançando" e não andando em
círculo. O crente sabe que a história não é um tapete de Penélope, sempre
retecido, para sempre voltar a ser desfeito. Talvez os cristãos também se
sintam oprimidos pelos pesadelos do temor e da inutilidade, de cujo seio o
mundo pré-cristão criou tais imagens impressionantes do medo frente à
esterilidade do trabalho humano. Mas, no seu pesadelo ressoa salvadora a voz da
realidade: "Coragem! Eu venci o mundo!" (Jo 16,33). O mundo
novo, cuja descrição, na figura da Jerusalém definitiva, é o epílogo da Bíblia,
não é nenhuma utopia, mas certeza, para cujo encontro marchamos pela fé. Há uma
salvação do mundo – eis a confiança que sustenta o cristão e que o faz
considerar como valendo a pena, também hoje, ser cristão.
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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