Páscoa
Evangelho:
Jo 16, 29-33
29
Os Seus discípulos disseram-Lhe: «Eis que agora falas claramente e não usas
nenhuma parábola. 30 Agora conhecemos que sabes tudo e que não é necessário que
alguém Te interrogue. Por isso cremos que saíste de Deus». 31 Jesus
respondeu-lhes: «Credes agora?». 32 «Eis que vem a hora, e já chegou, em que
sereis espalhados cada um para seu lado e em que Me deixareis só; mas Eu não
estou só, porque o Pai está comigo. 33 Disse-vos estas coisas para que tenhais
paz em Mim. Haveis de ter aflições no mundo; mas tende confiança, Eu venci o
mundo».
Comentário:
A vinda do Espírito Santo termina o
“tempo das parábolas” em que as verdades da Fé eram expostas por Jesus Cristo
aos que O ouviam.
Agora tudo se apresenta de forma
clara e simples.
O Espírito Santo concede aos que
lho solicitam o conhecimento bastante para se irem adentrando nos assuntos que
possam dizer respeito à sua Fé de forma a compreenderem melhor e, assim, ir
fortalecendo a sua Fé.
(ama, comentário sobre Jo 16, 29-33 2015.05.18)
Leitura espiritual
INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
INTRODUÇÃO
“CREIO – AMÉM”
CAPÍTULO PRIMEIRO
Fé no Mundo Hodierno
- Dúvida
e Fé – Situação do homem frente ao problema
"Deus"
Quem tentar falar hoje sobre o problema da fé
cristã diante de homens não familiarizados com a linguagem eclesiástica por
vocação ou convenção, depressa sentirá o estranho e surpreendente de semelhante
iniciativa. Provavelmente depressa descobrirá que a sua situação encontra uma
descrição exacta no conhecido conto de Kierkegaard sobre o palhaço e a aldeia
em chamas, conto que Harvey Cox retomou há pouco no seu livro A Cidade do
Homem. A história conta como um circo ambulante na Dinamarca se incendiou.
O director manda à aldeia vizinha o palhaço, já caracterizado para a representação,
em busca de auxílio, tanto mais que havia perigo de as chamas se alastrarem
através dos campos secos, alcançando a própria aldeia. O clown corre para
aldeia e suplica aos moradores que venham com urgência ajudar a apagar as
chamas do circo incendiado. Mas os habitantes tomam os gritos do palhaço por um
formidável truque de publicidade para aliciá-los ao espectáculo; aplaudem-no e
riem a bandeiras despregadas. O palhaço sente mais vontade de chorar do que de
rir. Debalde tenta conjurar os homem e esclarecer de que não se trata de
propaganda alguma, nem de fingimento ou truque, mas de coisa muito séria,
porquanto o circo realmente está a arder. O seu esforço apenas aumenta a
hilaridade até que, por fim, o fogo alcança a aldeia, tornando excessivamente
tardia qualquer tentativa de auxílio; circo e aldeia tornam-se presa das
chamas.
Cox conta esta história como símile da situação do
teólogo hodierno e vê a figura do teólogo no clown incapaz de transmitir aos
homens a sua mensagem. Na sua roupagem de palhaço medieval ou de outro remoto
passado qualquer, o teólogo não é tomado a sério. Pode dizer o que quiser,
continua como que etiquetado e catalogado pelo papel que representa. Qualquer
que seja o seu comportamento e o seu esforço de falar seriamente, sabe-se
sempre de antemão que ele é um clown. Já se adivinha qual o assunto da sua
mensagem e sabe-se que apenas está representando com pouco ou nenhum nexo com a
realidade. Por isso pode ser ouvido sossegadamente, sem inquietar ninguém com o que afirma. Sem dúvida existe
algo de angustiante neste quadro, algo da angustiada realidade em que a
teologia e formulação teológica de hoje se encontram; algo da pesada im-possibilidade
de quebrar chavões rotineiros do pensamento e da expressão e de tornar
reconhecível o problema da teologia como assunto sério da vida humana.
Contudo, talvez o nosso exame de consciência deva
mesmo ser mais radical. Talvez tenhamos de reconhecer que esse quadro excitante
– por muito verdadeiro e digno de consideração que seja – ainda simplifica em
excesso as coisas. Pois, dentro dele, tem-se a impressão que o palhaço, ou seja
o teólogo, é quem sabe perfeitamente que traz uma mensagem muito clara. Os
aldeões, aos quais acorre, isto é, os homens sem fé, seriam, pelo contrário,
completamente ignorantes, os que devem ser instruídos sobre o que lhes é
desconhecido. E ao palhaço, em si, bastar-lhe-ia mudar de roupagem, retirar a
maquilhagem – e tudo estaria em ordem. Mas, por acaso a questão é assim tão
simples? Bastar-nos-ia um simples apelo ao aggiornamento, um mero retirar
a maquilhagem e uma reformulação em termos de linguagem do mundo ou de um
cristianismo arreligioso para recolocar tudo nos eixos? Bastará uma mudança
espiritual ou metafórica de vestes para que os homens acorram animados e ajudem
a apagar o incêndio que o teólogo afirma estar lavrando com sério perigo para
todos? Vejo-me compelido a afirmar que a teologia de facto desmaquilhada e
revestida de moderna embalagem profana, tal como hoje surge em muitos lugares,
torna muito simplória essa esperança. Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta
explicar a fé no meio de homens mergulhados na vida moderna e imbuídos da
moderna mentalidade, de facto pode ter a impressão de ser um palhaço ou alguém
surgido de um antigo sarcófago, que penetrou no mundo hodierno, revestido de
trajes e pensamentos da antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser
por ele compreendido. Todavia, se quem tentar anunciar a fé exercer bastante
autocrítica, em breve notará não se tratar apenas de uma forma, de uma crise do
revestimento em que a teologia se apresenta. Na estranha aventura teológica face
aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há-de reconhecer e
experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança da
própria fé, o poder arrasador da descrença dentro da sua própria vontade de
crer. Por isso quem tentar honestamente prestar contas da fé cristã a si e a
outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual
bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá
que a sua situação não diverge muito da situação dos outros, como talvez inicialmente
tivesse pensado. Terá consciência que de ambos os lados estão presentes as
mesmas forças, muito embora de maneiras diversas.
Para começar, no crente existe a ameaça da
incerteza capaz de revelar dura e subitamente, em momentos de tentação, a fragilidade
de tudo o que, em geral, lhe parece tão evidente. Esclareçamo-lo com alguns
exemplos. Teresa de Lisieux, a amável santinha, aparentemente tão isenta de
complexidades e de problemas, cresceu numa vida de completa segurança
religiosa. A sua vida, do começo ao fim, foi tão perfeitamente e minuciosamente
marcada pela fé na Igreja, que o mundo invisível se tornara parcela do seu quotidiano;
ou antes, o seu próprio quotidiano, parecendo quase tangível e impossível de
ser eliminado da sua vida. Para Teresinha, "religião" era, de facto,
um dado prévio e natural da sua existência diária; ela manipulava a religião
como nós somos capazes de manejar as trivialidades concretas da vida. Mas
justamente ela, aparentemente tão resguardada numa segurança sem risco,
deixou-nos comovedoras manifestações do que foram as últimas semanas do seu
Calvário, manifestações que, mais tarde, as suas irmãs, assustadas, atenuariam no
seu legado literário e que só agora vieram à tona nas novas edições autênticas
e literais da sua obra. Assim, por exemplo, quando ela afirma: "Acossam-me
as reflexões dos piores materialistas." Sente a inteligência torturada por
todos os argumentos possíveis contra a fé; o sentimento da fé parece
desaparecido; sente-se transportada para dentro da "pele dos
pecadores". Isto é, num mundo que parece completamente sólido e sem
brechas, torna-se visível a alguém o abismo que espreita a todos – também a ele
– sob a crosta firme das convenções que sustentam a fé. Em tal situação não
está mais em jogo apenas isto ou aquilo – assunção de Maria ou não; confissão
desse ou daquele modo –, tudo coisas que se tornam completamente irrelevantes,
porquanto se trata realmente do todo, do conjunto, tudo ou nada. É a única
alternativa que parece restar, e em parte alguma surge um pedaço de chão firme
ao qual se agarrar nessa queda vertiginosa para o abismo. Somente o báratro
hiante e sem fundo do nada é o que se percebe, onde quer que se dirijam os
olhares.
Paulo Claudel evoca num quadro grandioso e convincente
essa situação do crente, na abertura do seu "Soulier de Satin". Um
missionário jesuíta, irmão do herói Rodrigo, o homem mundano, aventureiro
errante e incerto entre Deus e o mundo, é representado como náufrago. A sua nau
foi afundada por piratas. Ele próprio, amarrado a uma trave do barco afundado, voga
nesse pedaço de madeira, pelas águas tormentosas do oceano. O drama principia
com o seu derradeiro monólogo: "Senhor, agradeço-te por me teres amarrado
assim. Por vezes sucedeu-me achar difíceis os teus mandamentos; senti-me
desnorteado, fracassada a vontade diante dos teus mandamentos. Mas hoje não
poderia estar mais fortemente atado a ti, do que estou; e muito embora os meus
membros se movam um sobre o outro, nenhum deles é capaz de se afastar um pouco
de ti. E assim realmente estou preso à cruz; e a cruz, à qual me vejo atado,
não está presa a nada mais. Ela voga pelo mar" .
Atado à cruz – e a cruz ligada a nada, vogando
sobre o abismo. Dificilmente se poderia descrever mais acurada e exactamente a
situação do crente hodierno. Apenas um madeiro oscilante sobre o nada, um
madeiro desatado parece sustê-lo e tem-se a impressão de ser possível adivinhar
o instante em que tudo irá submergir. Um simples madeiro solitário liga-o a
Deus; mas, sem dúvida, liga-o inevitavelmente e, no final de tudo, ele tem a
certeza de que esse madeiro é mais forte do que o nada que fervilha debaixo
dele, esse nada que, apesar dos pesares, continua sendo a força ameaçadora
propriamente dita do seu presente.
O quadro apresenta, além disso, uma dimensão mais
vasta que, aliás, me parece a mais importante. Pois esse náufrago jesuíta não
está sozinho; nele se encontra como que evocada a sorte do seu irmão; nele está
presente o destino do irmão, daquele irmão que se considera descrente,
que voltou as costas a Deus, por não considerar tarefa sua a espera, mas
"a posse do atingível... como se este pudesse estar em outra parte da que
onde tu, ó Deus, estás".
É dispensável acompanharmos a trama da concepção
claudeliana: a mestria com que conserva como fio condutor o jogo dos dois
destinos aparentemente contraditórios até ao ponto em que a sorte de Rodrigo
finalmente se toca com a do irmão, quando o conquistador termina como escravo num
navio, devendo dar-se por muito feliz, ao ser levado por uma velha freira que,
de contrapeso, leva uma caçarola e alguns trapos. Aliás, deixando de lado o
símile, podemos voltar à nossa própria situação e dizer: o crente é capaz de se
realizar na sua fé somente sobre o oceano do nada; e o oceano da incerteza
foi-lhe destinado como único lugar possível da sua fé. Apesar disso, não se
pode considerar o descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um descrente.
Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive sem problemática, mas
sempre ameaçado pela queda no nada, assim é forçoso admitir que também o descrente
não representa absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por
brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista que já de há muito
deixou para trás as tentativas e os embates supranaturais, vivendo apenas no
âmbito do que é directamente certo – jamais o abandonará a secreta insegurança
de se o positivismo está realmente com a última palavra. O crente vê-se sufocado
pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem cessar, à boca; do
mesmo modo existe a dúvida do incrédulo quanto à sua descrença, quanto à
totalidade do mundo que ele se resolveu declarar como o todo. Jamais conseguirá
plena certeza sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas
continuará sob a ameaça de que – quem sabe? – a fé venha a representar e a
afirmar a realidade. Portanto, como o crente se sabe ameaçado sem cessar pela
descrença, obrigado a ver nela a sua perene provação, assim a fé representa a
ameaça e a tentação do descrente, dentro do seu universo aparentemente fechado
e completo. Numa palavra, não existe escapatória ao dilema da existência
humana. Quem deseja fugir à incerteza da fé, há-de experimentar a incerteza da
descrença que, por sua vez, jamais conseguirá resolver sem sombra de dúvida a
questão de se, por acaso, a fé não se cobre com a verdade. Somente na recusa se
revela a irrecusabilidade da fé.
Talvez venha a propósito aduzir neste lugar uma história
judaica escrita por Martin Buber; nela aparece com clareza o citado dilema da
existência humana. "Um dos sequazes do iluminismo, homem es-tudado, ouvira
falar de Berditschewer. Foi à sua procura com o fito de comprar uma discussão,
como era do seu feitio, e arrasar as suas teses ultrapassadas da verdade da fé.
Ao entrar no quarto do Zaddik viu-o, de livro à mão, indo e vindo, mergulhado
em entusiásticas reflexões. Nem pareceu dar pela chegada do visitante. Finalmente
deteve-se, olhou para ele superficialmente e disse: "E contudo, talvez
seja verdade." O sábio debalde tentou fincar pé, de-fendendo a sua própria
dignidade. Não o conseguiu. Sentiu os joelhos chocalharem, tão terrível era o
aspecto do Zaddik, tão horrível de se ouvir a sua frase singela. Mas o rabi
Levi Jizchak voltou-se completamente para ele e disse lhe, sereno: "Meu
filho, os grandes da Torá com os quais disputaste, desperdiçaram palavras; tu riste-te
deles, ao afastares-te. Não foram capazes de colocar Deus e o seu reino sobre a
mesa, diante de ti; eu também sou incapaz. Mas, meu filho, reflecte: talvez
seja verdade." O iluminista concentrou todas as forças para revidar; mas
aquele terrível "talvez" a ecoar sem cessar, quebrou-lhe qualquer
resistência".
joseph ratzinger, Tübingen, verão de
1967.
(cont)
Revisão da versão
portuguesa por ama
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