29/05/2016

Evangelho, comentário, L. espiritual


Tempo Comum

Evangelho: Lc 7, 1-10

1 Tendo terminado este discurso ao povo, entrou em Cafarnaum. 2 Ora um centurião tinha doente, quase a morrer, um servo que lhe era muito querido. 3 Tendo ouvido falar de Jesus, enviou-Lhe alguns anciãos dos judeus a pedir-Lhe que viesse curar o seu servo. 4 Eles, tendo ido ter com Jesus, pediam-Lhe instantemente, dizendo: «Ele merece que lhe faças esta graça, 5 porque é amigo da nossa nação e até nos edificou a sinagoga». 6 Jesus foi com eles. Quando estava já perto da casa, o centurião mandou uns amigos a dizer-Lhe: «Senhor, não Te incomodes, porque eu não sou digno de que entres debaixo do meu teto. 7 Por essa razão nem eu me achei digno de ir ter contigo; mas diz uma só palavra, e o meu servo será curado. 8 Porque também eu, simples subalterno, tenho soldados às minhas ordens, e digo a um: Vai! e ele vai; e a outro: Vem! e ele vem; e ao meu servo: Faz isto! e ele faz». 9 Jesus, ao ouvir isto, ficou admirado e, voltando-Se para a multidão que O seguia, disse: «Em verdade vos digo que não encontrei tanta fé em Israel». 10 Voltando para casa os que tinham sido enviados, encontraram o servo curado.

Comentário:

Tão extraordinária ocorrência tinha de ficar gravada para todo o sempre:

“Não sou digno… mas, se disseres uma só palavra…”!

É o que repetimos, sempre, quando nos preparamos para receber o Senhor.

Com que disposição o dizemos?

Mecanicamente… ou sentindo, de facto, cada palavra que pronunciamos?

(ama, comentário sobre Lc 7, 1-10, V. Moura 2013.09.16)


Leitura espiritual



INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO

CAPÍTULO QUARTO

"Creio em Deus" – Hoje
…/4

Parece-me que o caráter ecuménico do texto se esclarece de um lado inesperado. Certamente, sabemos todos que a "oração sacerdotal" de Jesus [1], da qual falávamos, representa a carta magna de todo o esforço em prol da unidade da Igreja. Mas, não será que, muitas vezes, nos conservamos muito na superfície do seu conteúdo? A nossa consideração demonstra que a unidade cristã denota, primeiramente, unidade com Cristo, possível onde cessa a acentuação do próprio "eu", substituída pela existência simplesmente descomprometida "de" e "para". A uma vida assim com Cristo, mergulhada completamente na disponibilidade daquele que não queria considerar nada como seu segue-se a completa união – "para que sejam um, como nós o somos". Toda a falta de união, toda a separação baseia-se numa carência oculta do autêntico espírito cristão, num apego ao que é próprio, com o que se provoca a ruína da unidade.

Creio não ser sem importância notar como a doutrina trinitária invade a existência, como a afirmação – relação é igual a pura unidade – se torna transparente quando aplicada a nós. É da essência, da natureza da personalidade trinitária ser pura relação, e, portanto, unidade a mais completa e absoluta. Não há contradição nisto, o que aliás se pode perceber. E agora pode compreender-se, melhor do que antes, não ser o "átomo" a menor partícula indivisível, possuidora da mais elevada unidade, mas que a pura unidade real pode efectivar-se primeiro no espírito, incluindo a relatividade do amor. Portanto, a defesa da unidade de Deus não é menos radical no Cristianismo do que em qualquer outra religião monoteísta; aliás, no Cristianismo essa unidade alcança a sua grandeza completa. Ora, a essência da vida cristã é integrada pela aceitação e pela vivência da existência como relação, penetrando desta maneira naquela unidade que é o fundamento sustentador da realidade. Com o que deveria estar demonstrado como uma doutrina trinitária bem compreendida pode tornar-se o ponto central da Teologia e do pensamento cristão em geral, de onde as demais linhas irradiam.

Tornemos novamente ao Evangelho de João que fornece os subsídios decisivos. Pode afirmar-se que a linha insinuada representa a dominante propriamente dita da sua Teologia. Ela revela-se, ao lado da ideia do "Filho", sobretudo em dois outros conceitos cristológicos que vamos indicar pelo menos rapidamente para completar o assunto. Trata-se do conceito de "missão" e do epíteto de Jesus como "Palavra" ("Verbo, Logos") de Deus. Mais uma vez a teologia da missão cobre-se com a teologia do ser como relação e a relação como modo de unidade. É conhecida a afirmação rabínica: "O enviado de um homem é como ele mesmo". Jesus surge em João como o enviado do Pai, e nele se cumpre tudo que os outros mensageiros conseguiram apenas assintoticamente: Jesus empenha-se de facto em ser o enviado; ele é o único mensageiro que representa o outro, sem pôr de permeio nada dos seus próprios interesses. E assim, como autêntico enviado, ele é um com quem o envia. De novo, o conceito de missão conota o ser como ser "de" e ser "para"; e o ser é novamente compreendido como simples estar-aberto sem restrição. E outra vez segue-se a aplicação à vida cristã: "Como o Pai me enviou, assim eu vos envio" [2]. Subordinada essa existência à categoria de missão, também ela passa a denotar ser "de" e "para", como relacionamento e, por isto, como unidade. Finalmente, ainda uma observação em torno da ideia de Logos. Caracterizando o Senhor como Logos, João colhe um termo vastamente espalhado na mentalidade grega e judaica, aceitando com ele uma série de conotações ligadas ao mesmo, e que são transferidas para Cristo. Contudo, talvez a novidade que João imprimiu ao termo esteja, não por último, na circunstância de, para ele, "Logos" não significar meramente a ideia de uma eterna racionalidade do ser, como era compreendido na mentalidade grega. O conceito Logos aplicado a Jesus de Nazaré recebe uma nova dimensão. Não denota mais apenas a perpenetração, o embebimento de todo o ser com um sentido, mas denota determinado homem: este, aqui presente, é Logos (Verbo, Palavra). O conceito Logos, sentido, "razão" para o grego (ratio), transforma-se realmente em "Palavra" (Verbum). Este, aqui presente, é Verbo; portanto ele é "fala" e assim, a pura relação do que fala para com aqueles aos quais fala. Portanto, a teologia do Logos, como teologia do Verbo, torna a ser abertura do ser no rumo da ideia de relação. E torna a valer: Verbo essencialmente é "de um outro" e "para um outro", é existência, é completamente caminho e abertura.

Terminemos com um texto de Agostinho, que coloca o assunto em plena luz, de modo grandioso. Encontra-se no comentário ao Evangelho de S. João, no texto: "Mea doctrina non est mea – minha doutrina não é minha doutrina, mas do Pai que me enviou" [3]. Aproveitando o paradoxo desta afirmação, Agostinho esclareceu o paradoxo da ideia cristã de Deus e da vida cristã. Ele pergunta-se, primeiro, se não é pura contradição, violência contra as regras elementares da lógica dizer algo como: o meu não é meu. Mas, assim vai penetrando em que consiste afinal a "doutrina" de Jesus que, simultaneamente, é e não é dele? Jesus é "palavra", portanto é claro que a sua doutrina é ele mesmo. Tornando a ler a frase, sob este ponto de vista, eis o que Jesus declara: eu não sou apenas eu; eu não sou meu mas o meu "eu" é de um outro. Com o que, ultrapassando a cristologia, chegamos a nós mesmos: Quid tam tuum quam tu, quid tam non tuum quam tu – o que é tão teu como tu mesmo; o que é tão pouco teu como tu mesmo?" O mais nosso – que realmente pertence a nós somente – o próprio "eu" é, ao mesmo tempo, o menos nosso, porque justamente o nosso "eu" não o temos de nós nem para nós. O "eu" é o que mais tenho e, simultaneamente, o que menos me pertence. Portanto, torna a romper-se o conceito de simples substância (= do que subsiste em si), patenteando-se como um ser racional compreende que não se pertence dentro da sua identidade; que somente chega a si afastando-se de si, regressando, como relacionamento, para a sua verdadeira origem.

Mediante tais ponderações não se arranca o véu de mistério à doutrina trinitária. Contudo, é claro que, por meio delas, se abre nova compreensão da realidade, do que é o homem, do que é Deus. No ponto da teoria, aparentemente mais extremada, revela-se algo de muito práctico. Falando-se de Deus, descobre-se quem é o homem. O mais paradoxal é simultaneamente o mais claro e o mais prático.

SEGUNDA PARTE

JESUS CRISTO

CAPÍTULO PRIMEIRO

"Creio em Jesus Cristo seu Filho Unigénito, Nosso Senhor".

I. O problema da Fé em Jesus Cristo hoje

A segunda parte principal do Credo coloca-nos propriamente diante do elemento cristão fundamental – já abordado, de leve, nas considerações introdutórias: a crença de que o homem Jesus, um indivíduo executado na Palestina pelo ano 30, é o "Cristo" (ungido, escolhido) de Deus, e mais: é o próprio Filho de Deus, centro e opção de toda a história humana. Parece ousadia e tolice declarar centro decisivo da história inteira uma figura isolada, destinada a diluir-se mais e mais nas névoas do passado. A fé no "Logos", na razão ou racionalidade do ser, corresponde perfeitamente a uma tendência da razão humana; ora, neste segundo artigo do Credo realiza-se a quase monstruosa união de Logos e Sarx, de razão ou sentido e figura individual da história. O sentido que sustenta todo o ser, tornou-se carne, isto é, penetrou na história, tornando-se alguém nela; ele não é mais apenas quem envolve e carrega a história, mas um ponto dentro dela. De acordo com isto, o sentido de todo o ser não mais poderia ser encontrado, de agora em diante, na intuição do espírito a elevar-se acima do individual e limitado, até alcançar o geral; não mais existiria simplesmente no mundo das ideias a ultrapassar o particular, refletindo-se aí apenas fragmentada; deveria ser encontrado imerso no tempo, no rosto de um homem. Acorre à memória a comovente passagem com que Dante encerra a Divina Comédia quando, ao contemplar o mistério de Deus, no meio daquela "omnipotência de amor, que conduz, silente e harmoniosa, o sol no seu círculo e todas as estrelas", descobre com bem-aventurada admiração a sua semelhança, uma face humana. Mais tarde teremos de considerar a mudança do aspecto de ser para sentido que daí resulta. Por ora constatamos que, ao lado da união de Deus da fé e Deus dos filósofos reconhecida, no primeiro artigo, como condição fundamental e forma estrutural da fé cristã, surge agora uma segunda união, não menos decisiva, a saber, de Logos e Sarx, de Verbo e Carne, de fé e história. O homem histórico Jesus é o Filho de Deus, e o Filho de Deus é o homem Jesus. Deus acontece para o homem mediante o homem, e até mais concretamente: mediante aquele homem no qual se revela o aspecto definitivo da existência humana e o qual é ao mesmo tempo o próprio Deus.

Talvez já agora se delineiem os traços que mostram revelar-se no paradoxo de Verbo e Carne algo cheio de sentido e em sintonia com o Logos. Contudo, o primeiro impacto desta realidade causa escândalo ao pensamento humano: Não nos tornamos com isto vítimas de um tremendo positivismo? Será razoável agarrar-nos à palhinha de um único acontecimento histórico? Poderemos ousar fundamentar a nossa existência inteira, e até a história toda, sobre o que não passa de pobre palha de um acontecimento qualquer a boiar no grande oceano da história? Já constitui gesto temerário o simples facto de imaginar algo assim, que parecia inaceitável ao pensamento asiático, e torna-se mais difícil, ou pelo menos mais dificultado de outra forma, com as premissas do pensamento moderno, a saber, pela maneira como agora se transmitem os dados históricos, o método histórico-crítico. Este método revela que na esfera do encontro com a história se apresenta um problema semelhante ao que deparou a pesquisa do ser e do seu fundamento no método físico e na forma científico-natural do exame da natureza. Em considerações correspondentes já vimos que a Física renuncia à descoberta do ser, concentrando-se sobre o "positivo", sobre o que se pode provar; e se vê condenada a pagar, com a renúncia à verdade; a vantagem impressionante em exactidão, conseguida deste modo, renúncia que pode chegar ao ponto de fazer desaparecer o ser e a mesma verdade atrás das grades do positivo, tornando-se sempre mais impossível a Ontologia e também a Filosofia, devendo retrair-se à Fenomenologia, isto é, à pesquisa das aparências.

Parecida é a ameaça no campo da pesquisa histórica. A adequação ao método da Física é levada o mais longe possível, embora encontre os seus limites internos no facto de a História não poder elevar-se à comprovação – centro da ciência moderna – não poder obter a iteração, sobre a qual se baseia a certeza, singular das comprovações científicas. Ao historiador não é dado repetir a história passada, irrepetível, devendo contentar-se com a comprovação da probabilidade das provas sobre as quais funda as suas opiniões. A consequência dessa posição metodológica – à semelhança das ciências naturais – é que, também na História, o campo visual alcança exclusivamente o lado fenomenológico, externo, do evento. Mas este lado fenomenal, isto é, exterior, verificável em provas, é duplamente problemático, mais ainda do que o positivismo da Física. É problemático, primeiro, por depender do acaso dos documentos, ou seja, das manifestações ocasionais, enquanto a Física, em qualquer hipótese, pode ter presente o indispensável lado exterior das realidades materiais. E mais duvidoso ainda se torna porque a manifestação humana em documentos é menos adequada do que as manifestações espontâneas da natureza: os documentos reflectem apenas insuficientemente as profundezas humanas, chegando mesmo a encobri-las; sua interpretação envolve, compromete o homem e seu feitio pessoal de pensar, com energia muito maior do que a leitura dos fenómenos físicos. De acordo com isto, deve reconhecer-se que a imitação do método científico-natural, na esfera da História, aumenta indubitavelmente a certeza das conclusões, mas não se pode, também, negar que traz consigo uma opressiva perda de verdade, que vai além daquelas perdas ocorridas na Física. Como na Física o ser é postergado ao fenómeno, assim, na História, passa a valer como histórico exclusivamente o que é transmitido e oferecido por métodos históricos. Não raras vezes esquecemos que a total verdade histórica se esquiva ao cotejo dos dados, não menos do que a verdade do ser se furta à experimentação. E teremos de dizer que a história, no sentido mais exacto do termo, não só se revela, mas também se oculta. Concluir-se-á assim, por si, que a História pode ver o homem Jesus, sem dúvida, mas dificilmente será capaz de encontrar o seu carácter de Cristo, que, como verdade histórica não enquadra na comprovação do que é meramente certo.

(cont)

joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[1] Jo 17
[2] 13,20; 17,18; 20,21
[3] 7,16

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