Art.
3 — Se Cristo fez milagres por conveniência em relação aos homens.
O terceiro discute-se assim. — Parece que
Cristo não fez milagres por conveniência em relação aos homens.
1. — Pois, no homem a alma é superior
ao corpo. Ora, Cristo fez muitos milagres em relação aos corpos; mas não lemos
que fizesse nenhuns sobre as almas. Pois, nem converteu miraculosamente nenhuns
incrédulos da fé, mas advertindo-os e mostrando-lhes os milagres exteriores;
nem referem os Evangelhos que desse sabedoria a nenhuns fátuos. Logo, parece
que não obrou milagres por conveniência em relação aos homens.
2. Demais. — Como se disse, Cristo
fazia milagres pelo seu poder divino, ao qual é próprio obrar súbita e
perfeitamente e sem o auxílio de ninguém. Ora, Cristo nem sempre curava
subitamente o corpo humano. Assim, refere o Evangelho, que tomando o cego pela
mão, o tirou para fora da aldeia; e cuspindo-lhe nos olhos, tendo-lhe imposto
as suas mãos, lhe perguntou se via alguma coisa. E levantando ele os olhos
disse: Vejo os homens como árvores que
andam. Depois tornou-lhe Jesus a pôr as mãos sobre os olhos, e começou ele
a ver e ficou de todo curado, de sorte que via distintamente todos os objectos.
Donde é claro que não o curou subitamente, mas, primeiro de um modo imperfeito,
cuspindo-lhe nos olhos. Logo, parece que não fez milagres por conveniência em
relação aos homens.
3. Demais. — Não é necessário
eliminarem-se simultaneamente coisas que não resultam uma da outra. Ora, as
doenças do corpo nem sempre são causadas pelo pecado, como é claro pelas
palavras do Senhor: Não nasceu cego por
pecado que ele fizesse, nem seus pais. Logo, não devia perdoar os pecados a
quem só lhe vinha pedir a cura do corpo, como lemos no Evangelho que fez com o
paralítico. Sobretudo que, sendo a restituição da saúde do corpo menor bem que
a remissão dos pecados, não constituía prova suficiente do seu poder de perdoar
os pecados.
4. Demais. — Os milagres de Cristo
foram feitos em confirmação da sua doutrina e do testemunho da sua divindade,
como se disse. Ora, ninguém deve opor obstáculo ao fim da sua própria obra.
Logo, parece que Cristo não devia ter ordenado a certos curados milagrosamente
não publicarem os milagres de que foram objecto. Assim, sobretudo que a alguns
outros mandou proclamarem os milagres que lhes fez; assim, como lemos no
Evangelho, disse aquele a quem livraria dos demónios: Vai para a tua casa, para os teus, e anuncia-lhes quão grandes coisas o
Senhor te fez.
Mas, em contrário, o Evangelho: Ele tem bem feito tudo; fez não só que
ouvissem os surdos, mas que falassem os mudos.
SOLUÇÃO. — Os meios conducentes a um
fim devem ser-lhe proporcionados. Ora, Cristo veio ao mundo ensinar, para
salvar os homens, segundo o Evangelho: Deus
não enviou o seu filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo
seja salvo por ele. Logo, era conveniente que, em particular, curando
milagrosamente os homens, se mostrasse o Salvador universal e espiritual deles.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— Os meios conducentes a um fim são distintos destes. Ora, os milagres feitos
por Cristo ordenavam-se, como fim, à salvação da parte racional, consistente na
iluminação da sabedoria e na justificação dos homens. E desses fins o primeiro
pressupõe o segundo; pois, como diz a Escritura, na alma que é maligna não entrará a sabedoria nem habitará no corpo
sujeito a pecados. Ora, justificar os homens não era possível sem a
cooperação da vontade deles; o contrário se oporia à justiça, que por essência
implica a rectidão da vontade, e também à essência da natureza humana, que deve
ser conduzida ao bem pelo livre arbítrio e não pela coacção. Ora, Cristo pelo
seu poder divino justificava os homens interiormente, mas não contra a vontade
deles. Nem isso constituía a essência, mas o fim dos milagres. Semelhantemente,
também pelo seu poder divino, infundiu a sabedoria divina em homens simples
como eram os discípulos; donde o dizer-lhes: Eu vos darei uma boca e uma sabedoria à qual não poderão resistir nem
contradizer todos os vossos inimigos. O que, quanto à iluminação interior,
não se enumera entre os milagres visíveis; mas só quanto ao acto exterior, pois
viram falar tão sábia e constantemente homens os que eram iletrados e simples.
Por isso diz a Escritura: Vendo os judeus
a firmeza de Pedro e de João, depois de saberem que eram homens sem letras e
idiotas, se admiravam. — E contudo esses efeitos espirituais; embora
distintos dos milagres visíveis, são todavia uns testemunhos da doutrina e do poder
de Cristo, segundo o Apóstolo: Confirmando-o
com maravilhas e sinais e com virtudes diversas e com dons do Espírito Santo.
Cristo, porém fez alguns milagres sobre as almas dos homens, sobretudo
atinentes a transformações nas potências inferiores delas. Por isso, sobre o
que diz o Evangelho. — Levantando-se ele,
a seguiu — diz Jerónimo: O próprio
resplendor e a majestade da divindade oculta que lhe iluminava mesmo a face
humana, podia desde logo atrair para si os que uma vez o contemplavam. E
aquele outro lugar do Evangelho — Os
príncipes dos sacerdotes, etc., diz o mesmo Jerónimo: Dentre todos os milagres que o Senhor fez parece-me o mais admirável o
ter podido ele só, como homem, e desprezível nesse tempo, expulsar uma tão
grande multidão aos golpes de um chicote. Os olhos resplendiam-lhe como com
raios ígneos de sol e a majestade divina iluminava-lhe a face. E Origines
considera esse, maior milagre que o da conversão da água em vinho; pois, neste
a matéria subsistia inanimada, ao passo que no primeiro o seu engenho dominou
tantos milhares de homens. — E sobre aquele dito do evangelista — Recuaram para trás e caíram por terra -
diz Agostinho: Com uma palavra, sem
nenhuma arma abateu, repeliu e dispersou uma turba tão feroz pelo ódio quão
terrível pelas armas: é que Deus animava aquele corpo. — E a isto também
respeita aquele outro passo, que Jesus
passando pelo meio deles, se retirou; à cerca do qual diz Crisóstomo, que o estar no meio dos que o buscavam para
prender, e não ser preso mostrava a eminência da sua divindade. E ainda há
outro passo - Jesus escondeu-se e saiu do
templo - que Agostinho explica assim: Não
se escondeu num canto do Templo nem se ocultou atrás de uma parede ou de uma
coluna, como quem teme, mas tornando-se invisível, por um poder celeste, aos
que o buscavam, saiu passando pelo meio deles. — E tudo isso mostra que
Cristo, pelo seu poder divino, causou mudanças nas almas dos homens, quando o
quis, não só justificando e infundindo a sabedoria — o que constitui a fim dos
milagres, mas também exteriormente aliciando, aterrorizando ou estupefazendo -
o que constitui a essência própria dos milagres.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo veio
salvar o mundo, não só pelo seu poder divino, mas também pelo mistério da sua
Encarnação. Por isso frequentemente, ao curar os enfermos, não somente usava
esse, fazendo-os sarar por uma simples ordem, mas ainda fazia contribuir para
tal a sua humanidade. Por isso, sobre o Evangelho — Pondo as mãos sobre cada um deles, os sarava — diz Cirilo: Embora, como Deus, pudesse curar com uma
palavra todas as doenças, contudo toca os doentes, mostrando assim ser o seu
próprio corpo capaz de contribuir como um remédio eficaz. E aquele outro
lugar — Cuspindo-lhe nos olhos, tendo lhe
imposto as mãos, etc. diz Crisóstomo. (Vítor Antíoqueno): Cuspiu-lhe nos olhos e impôs as mãos ao
cego, a fim de mostrar que a palavra divina, acompanhada do acto, perfazia os
milagres; pois, a mão indica o acto; o cuspir, a palavra proferida pela boca.
— E a propósito do outro passo evangélico - Cuspiu
no chão e fez lodo do cuspo e untou com o lodo os olhos do cego, diz
Agostinho: Com a sua saliva fez o lodo,
porque o Verbo se fez carne. Ou
também para significar que foi ele quem formou o homem do limo da terra,
como diz Crisóstomo.
Também devemos considerar, sobre os
milagres de Cristo, que comumente as suas obras eram perfeitíssimas. Por isso, sobre
o Evangelho - Todo homem serve primeiro o
bom vinho — diz Crisóstomo: Os milagres
de Cristo são tais que em muito sobrepujando em utilidade e beleza quanto a
natureza pode produzir. — E
semelhantemente, num instante restituía aos enfermos a saúde perfeita. Por
isso, ao lugar do Evangelho — Tendo
chegado Jesus, diz Jerónimo: O Senhor
restituía a saúde, total e simultâneamente.
Especialmente, porém, no caso do cego, deu-se o contrário, por
causa da infidelidade dele, como diz Crisóstomo (Vítor Antroqueno) Ou, como
diz Beda, aquele a quem podia curar total
e simultaneamente, a esse o cura aos poucos para mostrar a magnitude da
cegueira humana, que aos poucos e como gradualmente é que pode iluminar-se; a
fim de nos chamar a atenção sobre a sua graça, com a qual auxilia cada
progresso na perfeição.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como dissemos
Cristo fazia milagres pelo seu poder divino. Ora, as obras de Deus são perfeitas, como diz a Escritura. Mas, só é
perfeito o que atinge o seu fim. E o fim da cura do corpo, operada por Cristo,
era a cura da alma. Por isso, Cristo não devia curar o corpo de ninguém, sem
lhe curar a alma. Donde, o dito no Evangelho — Em dia de sábado curei a todo um homem — diz Agostinho: Por ter sido curado, para ter a saúde do
corpo, também acreditou, para que tivesse a saúde da alma. — Mas
especialmente disse ao paralítico — São-te
perdoados os pecados: porque, como diz Jerónimo, Deu-nos assim a entender que os pecados causam no nosso corpo muitas
enfermidades, e foi essa talvez a razão de Cristo perdoar primeiro os pecados a
fim de eliminadas as causas da doença, ser restituída a saúde. Por isso diz
o Evangelho: Não peques mais, para que te
não suceda alguma coisa pior. O que Crisóstomo explica dizendo: Ficamos assim informados que do pecado é que
lhe nasceu a doença. — Embora também, como diz Crisóstomo, quanto mais principal é a alma, que o corpo,
tanto mais importante é perdoar os pecados, que restituir a saúde do corpo;
mas, como esse perdão não se manifesta exteriormente, Cristo obra o menos
importante, mas mais manifesto, para dar a conhecer o mais importante, embora
não manifesto.
RESPOSTA À QUARTA. — Sobre o dito
Evangelho — Vede lá que o não saiba
alguém — diz Crisóstomo: O que aqui
diz não é contrário ao que tinha dito ao outro: Vai e anuncia a glória de Deus.
Pois, assim nos adverte a impedir de nos louvarem os que o fazem, tendo em
vista a nossa pessoa como tal. Mas, se o louvor que nos tributam se referir à
glória de Deus, não devemos impedi-los, mas ao contrário, desejar que o façam.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.
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