Art.
2 — Se Cristo devia viver neste mundo uma vida austera.
O segundo discute-se assim - Parece que Cristo
devia levar uma vida austera neste mundo.
1. — Pois, Cristo muito mais que João
pregou a perfeição da vida. Ora. João levou uma vida austera, para com o seu
exemplo despertar nos homens o desejo de uma vida perfeita. Assim, diz Mateus:
O mesmo João tinha um vestido de peles de
camelo e uma cinta de couro em roda dos seus rins; e a sua comida eram
gafanhotos e mel silvestre. Expondo o que diz Crisóstomo: Era admirável ver tão grande mortificação
num corpo humano, o que mais lhe atraía os judeus. Logo, parece, com muito
maior razão, que a Cristo convinha a austeridade de vida.
2. Demais. — A abstinência ordena-se à
continência; assim, diz a Escritura - Comerão
e não ficarão fartos; eles deram-se à fornicação e não cuidaram de se retirar
dela. Ora, Cristo guardava continência e propunha a ser observada pelos
outros, como lemos no Evangelho: Há uns eunucos
que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do reino dos céus. O que é capaz de
compreender isto compreenda-o. Logo, parece que tanto Cristo como os seus
discípulos deviam levar uma vida de austeridades.
3. Demais. — É risível alguém começar
uma vida austera para depois passar a vivê-la às soltas; contra esse poderíamos
aplicar o lugar do Evangelho, este homem
começou a praticar e não pode acabar. Ora, Cristo viveu uma vida
rigorosíssima, depois do baptismo, permanecendo no deserto e jejuando quarenta
dias e quarenta noites. Logo, não era admissível que depois de tão grandes
austeridades passasse a viver uma vida comum.
Mas, em contrário, o Evangelho: Veio o Filho do homem, que come e bebe.
Como dissemos, convinha aos
fins da Encarnação que Cristo não vivesse uma vida solitária, mas participasse
da sociedade humana. Ora, quem convive com outros é convenientíssimo que se
conforme com o género de vida deles, segundo o Apóstolo: Fiz-me tudo para todos. Por isso, foi convenientíssimo que Cristo
tomasse comida e bebida como os homens comummente o fazem. Donde o dizer
Agostinho: O Evangelho refere que João
não comia nem bebia, porque não tomava aquela alimentação de que os judeus se
serviam. E se o Senhor não usasse de alimentos, o Evangelho não diria que,
comparado com João, ele comia e bebia.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— O Senhor, no género de vida que abraçou, deu exemplo de perfeição em tudo o
que respeita à salvação de maneira essencial. Ora, a abstinência da comida e da
bebida não é de necessidade essencial para a salvação, segundo aquilo o
Apóstolo: O reino de Deus não é comida
nem bebida. E expondo o lugar do Evangelho - a sabedoria foi justificada por seus filhos - diz Agostinho: Porque os santos Apóstolos entendem que o
reino de Deus não consiste em comida nem bebida, mas em sofrer com
equanimidade, de modo que nem a abundância os ensoberbeça nem os deprima a
pobreza. E acrescenta, que não é o
uso de tais causas, mas a sensualidade com que é feito, que constitui culpa.
Pois, tanto uma como outra vida são lícitas e louváveis: guardarmos a
abstinência, separados da convivência habitual com os homens; e vivermos a vida
comum na sociedade dos outros. Por isso o Senhor quis nos dar o exemplo de
ambos esses géneros de vida. Ao passo
que João, como diz Crisóstomo, não
tinha por si mais que a sua vida e a sua santidade, Cristo tinha o testemunho
dos seus milagres. Deixando, pois, a João os rigores do jejum escolheu um
caminho contrário, sentando-se à mesa dos publicanos, a comer e beber com eles.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como os
outros homens alcançam, pela abstinência, a virtude da continência, assim
Cristo, em si e nos seus discípulos, continha a carne pela virtude da sua
divindade. Donde o dizer o Evangelho: Os
fariseus e os discípulos de João jejuavam, mas não os discípulos de Cristo.
Explicando o que Beda diz, que João não bebia vinho nem outra alguma bebida que
pudesse embriagar; assim, não dispondo de nenhum poder superior à natureza,
ganha um aumento de mérito na abstinência. Ao passo que o Senhor, tendo por
natureza o poder de perdoar os pecados, porque havia de afastar-se dos homens
que podia tornar mais puros do que os entregues à abstinência?
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz
Crisóstomo, para aprenderes quão grande é
o bem do jejum, e que escudo é contra o diabo e o quanto, depois do batismo,
devemos nos dar ao jejum e fugir a sensualidade, Cristo jejuou, não por
precisar, mas para nos instruir. Mas não ultrapassou os limites do jejum
marcados pelos exemplos de Moisés e de Elias, para não inspirar nenhuma dúvida
sobre a realidade da carne que assumiu. - No sentido místico, porém, Gregório explica, que o número quarenta é observado, no jejum, ao
exemplo de Cristo, porque a virtude do decálogo se exerce nos quatro livros do
santo Evangelho; e o número dez, quatro vezes repetidos, produz o de quarenta.
Ou porque o nosso corpo mortal consta de quatro elementos, e pelos prazeres
sensíveis resistimos aos preceitos do Senhor, que nos foram transmitidos pelo
Decálogo. - Ou, segundo Agostinho: Todas
as regras da sabedoria se reduzem a conhecer o Criador e a Criatura. O Criador
é a Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Quanto à criatura, uma parte
dela, a alma, é invisível, a qual é atribuído o número ternário; pois, o
mandamento nos ordena amar a Deus de três modos - de todo o coração, de todo a
alma e de todo o entendimento; a outra parte - o corpo, é visível, e se lhe
atribui o número quaternário, por causa do calor, da humildade, da frigidez e
da secura. Donde, o número dez, que resume toda a disciplina, multiplicado por
quatro, isto é, pelo número atribuído ao corpo - pois, por meio do corpo é que
a alma governa - forma o número quarenta. Por isso, o tempo durante o qual
gememos e sofremos é designado pelo número quarenta. - Nem por isso houve
inconveniente em Cristo, depois do jejum no deserto, voltar à vida comum. Pois
esse é o género de vida conveniente àquele que deve transmitir aos outros o
fruto da contemplação; e tal foi a vida que Cristo assumiu: primeiro, vacar à
contemplação, para depois descer a agir em público, convivendo com os outros.
Por isso diz Beda: Cristo jejuou, para
não transgredir o preceito: comeu com os pecadores a fim de sentindo os efeitos
da sua graça, tu lhe reconheças o poder.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.
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