Quaresma
Semana I
Evangelho:
Mt 5, 20-26
20 Porque
Eu vos digo que, se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não
entrareis no Reino dos Céus. 21 «Ouvistes que foi dito aos antigos:
“Não matarás”, e quem matar será submetido ao juízo do tribunal. 22
Porém, Eu digo-vos que todo aquele que se irar contra o seu irmão, será
submetido ao juízo do tribunal. E quem chamar cretino a seu irmão será condenado
pelo sinédrio. E quem lhe chamar louco será condenado ao fogo da Geena. 23
Portanto, se estás para fazer a tua oferta diante do altar, e te lembrares ali
que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa lá a tua oferta
diante do altar, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem
fazer a tua oferta. 25 Concilia-te sem demora com o teu adversário,
enquanto estás com ele no caminho, para que não suceda que esse adversário te
entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao guarda, e sejas metido na prisão. 26
Em verdade te digo: Não sairás de lá antes de ter pago o último centavo.
Comentário:
Infelizmente
há alguns cristãos que vão pela vida fora como actores.
Sim…
não exagero!
Frequentam
com assiduidade a Igreja e os Sacramentos, usam grandiloquência sobre assuntos
da religião mas, privadamente, mantêm uma lista de agravos e reivindicações que
aguardam ocasião para cobrar e fazer.
Ofensas
antigas, más interpretações, juízos precipitados e malévolos e coisas do mesmo
género de que se sentem credores quando, na maior parte das vezes, são eles
mesmos os devedores.
Há
que pôr as coisas em ordem e agir com critério em toda e qualquer circunstância
que o cristão é-o sempre e não apenas quando é conveniente.
(ama,
comentário sobre Mt 5, 20-26, 2015.02.27)
Leitura espiritual
Ioannes Paulus PP. II
Dives in misericordia
sobre a Misericórdia Divina
1980.11.30
/…5
VII.
A MISERICÓRDIA DE DEUS NA MISSÃO DA IGREJA
Em relação com esta imagem
da nossa geração, que não pode deixar de despertar profunda inquietação, vêm à
minha mente as palavras que, por motivo da Encarnação do Filho de Deus,
ressoaram no Magnificat de Maria e que cantam a «misericórdia... de geração em
geração». Conservando sempre no coração a eloquência destas palavras
inspiradas, e aplicando-as às experiências e aos sofrimentos próprios da grande
família humana, é preciso que a Igreja do nosso tempo tome consciência mais profunda
e particular da necessidade de dar testemunho da misericórdia de Deus em toda a
sua missão, em continuidade com a tradição da Antiga e da Nova Aliança e,
sobretudo, no seguimento do próprio Cristo e dos seus Apóstolos. A Igreja deve
dar testemunho da misericórdia de Deus revelada em Cristo, ao longo de toda a
sua missão de Messias, professando-a em primeiro lugar como verdade salvífica
de fé necessária para a vida em harmonia com a fé; depois, procurando
introduzi-la e encarná-la na vida tanto dos fiéis, como, na medida do possível,
na de todos os homens de boa vontade. Finalmente professando a misericórdia e
permanecendo-lhe sempre fiel, a Igreja tem o direito e o dever de apelar para a
misericórdia de Deus, implorando-a perante todas as formas do mal físico ou
moral, diante de todas as ameaças que tornam carregado o horizonte da
humanidade contemporânea.
A
Igreja professa e proclama a misericórdia de Deus
13. A Igreja deve
professar e proclamar a misericórdia divina em toda a sua verdade, tal como nos
é transmitida pela Revelação. Nas páginas anteriores do presente documento,
procurei delinear ao menos o perfil desta verdade, tão ricamente expressa em
toda a Sagrada Escritura e na Tradição.
Na vida quotidiana da
Igreja a verdade sobre a misericórdia de Deus, expressa na Bíblia, repercute-se
como eco perene em numerosas leituras da Sagrada Liturgia. E o autêntico
sentido da fé do Povo de Deus percebe-a bem, como atestam várias expressões da
piedade pessoal e comunitária. Seria certamente difícil enumerá-las e
resumi-las todas, dado que a maior parte delas está só gravada vivamente no
íntimo dos corações e das consciências humanas. Há teólogos que afirmam ser a
misericórdia o maior dos atributos e perfeições de Deus; e a Bíblia, a Tradição
e toda a vida de fé do Povo de Deus oferecem-nos testemunhos inesgotáveis. Não
se trata aqui da perfeição da imperscrutável essência de Deus no mistério da
própria divindade, mas da perfeição e do atributo, graças aos quais o homem, na
verdade íntima da sua existência, se encontra com maior intimidade e maior
frequência em relação autêntica com o Deus vivo. De acordo com as palavras que
Cristo dirigiu a Filipe 112, «a visão do Pai» — visão de Deus
mediante a fé — tem precisamente no encontro com a sua misericórdia um momento
singular de simplicidade e verdade interior, como aquele que nos é dado ver na
parábola do filho pródigo.
«Quem me mê, vê o Pai» 113.
A Igreja professa a misericórdia de Deus, a Igreja vive dela na sua vasta
experiência de fé e também no seu ensino, contemplando constantemente a Cristo,
concentrando se n'Ele, na sua vida e no seu Evangelho, na sua Cruz e
Ressurreição, enfim, em todo o seu mistério. Tudo isto, que forma a «visão» de
Cristo na fé viva e no ensino da Igreja, aproxima-nos da «visão do Pai» na
santidade da sua misericórdia. A Igreja parece professar de modo particular a
misericórdia de Deus e venerá-la, voltando-se para o Coração de Cristo. De
facto, a aproximação de Cristo, no mistério do seu Coração, permite-nos
deter-nos neste ponto da revelação do amor misericordioso do Pai, que
constituiu, em certo sentido, o núcleo central — e, ao mesmo tempo, o mais
acessível no plano humano — da missão messiânica do Filho do Homem.
A Igreja vive vida
autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo
do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da
misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora. Neste
contexto, assumem grande significado a meditação constante da Palavra de Deus e,
sobretudo, a participação consciente e reflectida na Eucaristia e no sacramento
da Penitência ou Reconciliação.
A Eucaristia aproxima-nos
sempre do amor que é mais forte do que a morte. Com efeito, «todas as vezes que
comemos deste Pão e bebemos deste Cálice», não só anunciamos a morte do
Redentor, mas proclamamos também a sua ressurreição, «enquanto esperamos a sua
vinda gloriosa» 114. A própria acção eucarística, celebrada em
memória d'Aquele que na sua missão messiânica nos revelou o Pai por meio da Palavra
e da Cruz, atesta o inexaurível amor, em força do qual Ele deseja sempre
unir-se e como que tornar-se uma só coisa connosco, vindo ao encontro de todos
os corações humanos.
O sacramento da Penitência
ou Reconciliação aplana o caminho a cada um dos homens, mesmo quando
sobrecarregados com graves culpas. Neste Sacramento todos os homens podem
experimentar de modo singular a misericórdia, isto é, aquele amor que é mais
forte do que o pecado. Convém que este tema fundamental apesar de já tratado na
Encíclica Redemptor Hominis, seja abordado mais uma vez.
Porque existe o pecado no
mundo, neste mundo que «Deus amou tanto... que lhe deu o seu Filho unigénito» 115,
Deus que «é amor» 116 não se pode revelar de outro modo a não ser
como misericórdia, a qual corresponde não somente à verdade mais profunda
daquele amor que Deus é, mas ainda a toda a verdade interior do homem e do
mundo, sua pátria temporária.
A misericórdia em si
mesma, como perfeição de Deus infinito é também infinita. Infinita, portanto, e
inexaurível é a prontidão do Pai em acolher os filhos pródigos que voltam à sua
casa. São infinitas também a prontidão e a força do perdão que brotam
continuamente do admirável valor do Sacrifício do Filho. Nenhum pecado humano
prevalece sobre esta força e nem sequer a limita. Da parte do homem pode
limitá-la somente a falta de boa vontade, a falta de prontidão na conversão e
na penitência, isto é, o permanecer na obstinação, que está em oposição com a
graça e a verdade, especialmente diante do testemunho da cruz e da ressurreição
de Cristo.
É por isso mesmo que a
Igreja professa e proclama a conversão. A conversão a Deus consiste sempre na
descoberta da sua misericórdia, isto é, do amor que é «paciente e benigno» 117
como o é o Criador e Pai; amor ao qual «Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo» 118 é fiel até às últimas consequências na história da
Aliança com o homem, até à cruz, à morte e à ressurreição do seu Filho. A
conversão a Deus é sempre fruto do retorno para junto deste Pai, «rico em
misericórdia».
O autêntico conhecimento
do Deus da misericórdia, Deus do amor benigno, é a fonte constante e
inexaurível de conversão, não somente como momentâneo acto interior, mas também
como disposição permanente, como estado de espírito. Aqueles que assim chegam
ao conhecimento de Deus, aqueles que assim O «vêem», não podem viver de outro
modo que não seja convertendo-se a Ele continuamente. Passam a viver in statu
conversionis, em estado de conversão; e é este estado que constitui a
característica mais profunda da peregrinação de todo homem sobre a terra in
statu viatoris, em estado de peregrino. É evidente que a Igreja professa a
misericórdia de Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado, não
somente com as palavras do seu ensino, mas sobretudo com a pulsação mais profunda
da vida de todo o Povo de Deus. Mediante este testemunho de vida, a Igreja
cumpre a sua missão própria como Povo de Deus, missão que participa da própria
missão messiânica de Cristo, e que, em certo sentido, a continua.
A Igreja contemporânea
está profundamente consciente de que só apoiada na misericórdia de Deus poderá
realizar as tarefas que derivam da doutrina do Concílio Vaticano II; e em
primeiro lugar, a tarefa ecuménica que tende a unir todos os que crêem em
Cristo. Empregando múltiplos esforços neste sentido, a Igreja confessa com humildade
que somente o amor, que é mais poderoso do que a fraqueza das divisões humanas,
pode realizar definitivamente a unidade que Cristo pedia ao Pai, e que o
Espírito não cessa de pedir para nós «com gemidos inexprimíveis» 119.
A
Igreja procura pôr em prática a misericórdia
14. Jesus Cristo ensinou
que o homem não só recebe e experimenta a misericórdia de Deus, mas é também
chamado a «ter misericórdia» para com os demais. «Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia» 120. A Igreja vê nestas palavras um
apelo à acção e esforça-se por praticar a misericórdia. Se todas as
bem-aventuranças do Sermão da Montanha indicam o caminho da conversão e da
mudança de vida, a que se refere aos misericordiosos é particularmente
eloquente a tal respeito. O homem alcança o amor misericordioso de Deus e a sua
misericórdia, na medida em que ele próprio se transforma interiormente, segundo
o espírito de amor para com o próximo.
Este processo autenticamente
evangélico não consiste numa transformação espiritual realizada de uma vez para
sempre; mas é um completo estilo de vida, uma característica essencial e
contínua da vocação cristã. Consiste, pois, na descoberta constante e na
prática perseverante do amor, como força que ao mesmo tempo unifica e eleva,
não obstante todas as dificuldades de natureza psicológica ou social. Trata-se,
efectivamente, de um amor misericordioso que, por sua essência, é amor criador.
O amor misericordioso, nas relações recíprocas entre os homens, nunca é um acto
ou um processo unilateral. Ainda nos casos em que tudo pareceria indicar que
apenas uma parte oferece e dá, e a outra não faz mais do que aceitar e receber
(por exemplo, no caso do médico que cura, do mestre que ensina, dos pais que
sustentaram e educam os filhos, do benfeitor que socorre os necessitados), de
facto, também aquele que dá é sempre beneficiado. De qualquer maneira, também
ele pode facilmente vir a encontrar-se na posição de quem recebe, de alguém que
obtém um benefício, experimenta o amor misericordioso, ou se encontra em estado
de ser objecto de misericórdia.
Neste sentido, Cristo
crucificado é para nós o modelo, a inspiração e o incitamento mais nobre.
Baseando-nos neste impressionante modelo, podemos, com toda a humildade,
manifestar a misericórdia para com os outros, sabendo que Cristo a aceita como
se tivesse sido praticada para com Ele próprio 121, Segundo este
modelo, devemos também purificar continuamente todas as acções e todas
intenções, em que a misericórdia é entendida e praticada de modo unilateral,
como um bem feito apenas aos outros. Ela é realmente um acto de amor
misericordioso só quando, ao praticá-la, estivermos profundamente convencidos
de que ao mesmo tempo nós a estamos a receber, da parte daqueles que a recebem
de nós. Se faltar esta bilateralidade e reciprocidade, as nossas acções não são
ainda autênticos actos de misericórdia. Não se realizou ainda plenamente em nós
a conversão, cujo caminho nos foi ensinado por Cristo com palavras e exemplos,
até à Cruz, nem participamos ainda completamente da fonte magnífica do amor
misericordioso que nos foi revelada por Ele.
O caminho que Cristo nos
indicou no Sermão da Montanha, com a bem-aventurança dos misericordiosos, é
muito mais rico do que aquilo que, por vezes, podemos advertir nos habituais
juízos humanos sobre o tema da misericórdia. Tais juízos apresentam
ordinariamente a misericórdia como acto ou processo unilateral, que pressupõe e
mantém as distâncias entre aquele que pratica a misericórdia e aquele que dela
é objecto, entre aquele que faz o bem e o que o recebe. Daqui nasce a pretensão
de libertar da misericórdia as relações humanas e sociais e de baseá-las
somente na justiça. Tais juízos sobre a misericórdia não têm em conta o vínculo
fundamental que existe entre a misericórdia e a justiça, de que fala toda a
tradição bíblica e, sobretudo, a actividade messiânica de Jesus Cristo. A misericórdia
autêntica é, por assim dizer, a fonte mais profunda da justiça. Se esta é, em
si mesma, apta para «servir de árbitro» entre os homens na recíproca repartição
justa dos bens materiais, o amor, pelo contrário, e somente o amor (e portanto
também o amor benevolente que chamamos «misericórdia»), é capaz de restituir o
homem a si próprio.
A misericórdia
autenticamente cristã é ainda, em certo sentido, a mais perfeita encarnação da
«igualdade» entre os homens e, por conseguinte, também a encarnação mais
perfeita da justiça, na medida em que esta, no seu campo, tem em vista o mesmo
resultado. Enquanto a igualdade introduzida mediante a justiça se limita ao
campo dos bens objectivos e extrínsecos, o amor e a misericórdia fazem com que
os homens se encontrem uns com os outros naquele valor que é o mesmo homem, com
a dignidade que lhe é própria. Ao mesmo tempo, a «igualdade» dos homens
mediante o amor «paciente e benigno» 122 não elimina as diferenças.
Aquele que dá torna-se mais generoso, quando se sente recompensado por aquele
que recebe o seu dom. E, vice-versa, o que sabe receber o dom com a consciência
de que também ele faz o bem, ao recebê-lo, está, por seu lado, a servir a
grande causa da dignidade da pessoa, e contribui para unir mais profundamente
os homens entre si.
A misericórdia torna-se,
assim, elemento indispensável para dar forma às relações mútuas entre os
homens, em espírito do mais profundo respeito por aquilo que é humano e pela
fraternidade recíproca. É impossível conseguir que se estabeleça este vínculo
entre os homens se se pretende regular as suas relações mútuas unicamente com a
medida da justiça. Esta, em toda a gama das relações entre os homens, deve
submeter-se, por assim dizer, a uma «correcção» notável, por parte daquele amor
que, como proclama S. Paulo, «é paciente» e «benigno», ou por outras palavras,
que encerra em si as características - do amor misericordioso, tão essenciais
para o Evangelho como para o Cristianismo. Tenhamos presente, além disto, que o
amor misericordioso implica também ternura, compaixão e sensibilidade do
coração, de que tão eloquentemente nos fala a parábola do filho pródigo 123,
ou a da ovelha e a da dracma perdidas 124. O amor misericordioso, é
sobretudo indispensável entre aqueles que estão mais próximos: os cônjuges, os
pais e os filhos e os amigos; e é de igual modo indispensável na educação e na
pastoral.
O seu campo de acção não
se confina, porém, só a isto. Se Paulo VI, por mais de uma vez indicou que a
«civilização do amor» 125 é o fim para o qual devem tender todos os
esforços tanto no campo social e cultural, como no campo económico e político,
é preciso acrescentar que este fim nunca será alcançado se nas nossas
concepções e nas nossas actuações, relativas às amplas e complexas esferas da
convivência humana, nos detivermos no critério do «olho por olho e dente por
dente» 126, e, ao contrário, não tendermos para transformá-lo
essencialmente, completando-o com outro espírito. É nesta direcção que nos
conduz também o Concílio Vaticano II, quando, ao falar repetidamente da
necessidade de tornar o mundo mais humano 127, centraliza a missão
da Igreja no mundo contemporâneo precisamente na realização desta tarefa. O
mundo dos homens só se tornará mais humano se introduzirmos no quadro
multiforme das relações interpessoais e sociais, juntamente com a justiça, o
«amor misericordioso» que constitui a mensagem messiânica do Evangelho.
O mundo dos homens só
poderá tornar-se «cada vez mais humano» quando introduzirmos em todas as
relações recíprocas, que formam a sua fisionomia moral, o momento do perdão,
tão essencial no Evangelho. O perdão atesta que no mundo está presente o amor
mais forte que o pecado. O perdão, além disso, é a condição fundamental da
reconciliação, não só nas relações de Deus com o homem, mas também nas relações
recíprocas dos homens entre si. Um mundo do qual se eliminasse o perdão seria
apenas um mundo de justiça fria e irrespeitosa, em nome da qual cada um
reivindicaria os próprio direitos em relação aos demais. Deste modo, as várias
espécies de egoísmo, latentes no homem, poderiam transformar a vida e a
convivência humana num sistema de opressão dos mais fracos pelos mais fortes,
ou até numa arena de luta permanente de uns contra os outros.
Em todas as fases da
história, mas especialmente na época actual a Igreja deve considerar como um
dos seus principais deveres proclamar e introduzir na vida o mistério da
misericórdia, revelado no mais alto grau em Jesus Cristo. Este mistério, não só
para a própria Igreja como comunidade dos fiéis, mas também, em certo sentido,
para todos os homens, é fonte de vida diferente daquela que é capaz de construir
o homem, exposto às forças prepotentes da tríplice concupiscência que nele
operam 128. É em nome deste mistério, precisamente, que Cristo nos
ensina a perdoar sempre. Quantas vezes repetimos as palavras da oração que Ele
próprio nos ensinou, pedindo: «Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido», isto é, aos que são culpados em relação a
nós! 129. É realmente difícil expressar o valor profundo da atitude
que tais palavras designam e inculcam. Quantas coisas dizem a cada homem acerca
do seu semelhante e também acerca de si próprio! A consciência de sermos
devedores uns para com os outros, anda a par com o apelo à solidariedade
fraterna, que S. Paulo exprimiu concisamente convidando-nos a suportar-nos «uns
aos outros com caridade» 130, Que lição de humildade não está
encerrada aqui, em relação ao homem, ao próximo e, também, a nós mesmos! Que
escola de boa vontade para a vida comum de cada dia, nas várias condições da
nossa existência! Se não déssemos atenção a esta norma, que restaria de
qualquer programa «humanista» da vida e da educação?
Cristo sublinha com
insistência a necessidade de perdoar aos outros. Quando Pedro lhe perguntou
quantas vezes devia perdoar ao próximo, indicou-lhe o número simbólico de
«setenta vezes sete» 131, querendo desta forma indicar-lhe que
deveria saber perdoar sempre a todos e a cada um.
É evidente que exigência
tão generosa em perdoar não anula as exigências objectivas da justiça. A
justiça bem entendida constitui, por assim dizer, a finalidade do perdão. Em
nenhuma passagem do Evangelho o perdão, nem mesmo a misericórdia como sua
fonte, significam indulgência para com o mal, o escândalo, a injúria causada,
ou os ultrajes. Em todos estes casos, a reparação do mal ou do escândalo, a
compensação do prejuízo causado e a satisfação da ofensa são condição do
perdão.
Assim, a estrutura
fundamental da justiça penetra sempre no campo da misericórdia. Esta, no
entanto, tem o condão de conferir à justiça um conteúdo novo, que se exprime do
modo mais simples e pleno, no perdão. O perdão manifesta que, além do processo
de «compensação» e de «trégua» que é a característica da justiça, é necessário
o amor para que o homem se afirme como tal. O cumprimento das condições da
justiça é indispensável, sobretudo, para que o amor possa revelar a sua própria
fisionomia. Ao analisarmos a parábola do filho pródigo, dirigíamos a atenção
para o facto de que aquele que perdoa e o que é perdoado se encontram num ponto
essencial, que é a dignidade; isto é, o valor essencial do homem, que não se
pode deixar perder e cuja afirmação, ou reencontro, são origem da maior alegria
132.
Com razão a Igreja
considera seu dever e objectivo da sua missão, assegurar a autenticidade do
perdão, tanto na vida e no comportamento concreto, como na educação e na
pastoral. Não a protege doutro modo senão guardando a sua fonte, isto é, o
mistério da misericórdia de Deus, revelado em Jesus Cristo.
Em todos os domínios a que
se referem numerosas indicações do recente Concílio e a plurissecular
experiência do apostolado, na base da missão da Igreja não existe outra
preocupação senão ir «beber nas fontes do Salvador» 133. Daí provêm
as múltiplas orientações para a missão da Igreja, tanto na vida de cada
cristão, como na de cada comunidade ou de todo o Povo de Deus. O «beber nas
fontes do Salvador» só se pode realizar com o espírito de pobreza a que o
Senhor nos chamou com as palavras e com o exemplo: «o que recebestes de graça,
dai-o também de graça» 134. Assim, em todos os caminhos da vida e do
ministério da Igreja, — através da pobreza evangélica dos ministros e
dispensadores e de todo o povo, que dão testemunho «das grande maravilhas» do
seu Senhor — manifesta-se ainda melhor Deus que é «rico em misericórdia».
VIII.
A ORAÇÃO DA IGREJA DOS NOSSOS TEMPOS
A
Igreja faz apelo à misericórdia divina
15. A Igreja proclama a
verdade da misericórdia de Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado,
e proclama-a de várias maneiras. Procura também praticar a misericórdia para
com os homens por meio dos homens, como condição indispensável da sua
solicitude por um mundo melhor e «mais humano», hoje e amanhã.
Mas, além disso, em nenhum
momento e em nenhum período da história, especialmente numa época tão crítica
como a nossa, pode esquecer a oração que é um grito de súplica à misericórdia
de Deus, perante as múltiplas formas do mal que pesam sobre a humanidade e a
ameaçam. Tal é o direito e o dever da Igreja, em Cristo Jesus: direito e dever
para com Deus e para com os homens. Quanto mais a consciência humana, vítima da
secularização, esquecer o próprio significado da palavra «misericórdia», e
quanto mais, afastando-se de Deus, se afastar do mistério da misericórdia,
tanto mais a Igreja tem o direito e o dever de apelar «com grande clamor» 135
para o Deus da misericórdia. Este «grande clamor», elevado até Deus para implorar
a sua misericórdia há-de caracterizar a Igreja do nosso tempo. A mesma Igreja
professa e proclama que a manifestação clara de tal misericórdia se verificou
em Jesus crucificado e ressuscitado, isto é, no Mistério pascal. É este
Mistério que contém em si a mais completa revelação da misericórdia, isto é,
daquele amor que é mais forte do que a morte, mais poderoso do que o pecado e
que todo o mal, do amor que ergue o homem das suas quedas, mesmo mais
profundas, e o liberta das maiores ameaças.
O homem contemporâneo
sente estas ameaças. O que se disse acima a este propósito não é mais do que
simples esboço. O homem contemporâneo interroga-se com profunda ansiedade
quanto à solução das terríveis tensões que se acumulam sobre o mundo e se entrecruzam
nos caminhos da humanidade. Se algumas vezes o homem não tem a coragem de
pronunciar a palavra «misericórdia», ou não lhe encontra equivalente na sua
consciência despojada de todo o sentido religioso, ainda se torna mais
necessário que a Igreja pronuncie esta palavra, não só em nome próprio, mas
também em nome de todos os homens contemporâneos.
É, pois, necessário que
tudo o que acabamos de dizer no presente documento, sobre a misericórdia, se transforme
continuamente em fervorosa oração, num clamor a suplicar a misericórdia,
segundo as necessidades do homem no mundo contemporâneo. E que este clamor
esteja impregnado de toda a verdade sobre a misericórdia que tem expressão tão
rica na Sagrada Escritura e na Tradição, e também na autêntica vida de fé de
tantas gerações do Povo de Deus. Com este clamor apelamos, como fizeram os
Autores sagrados, para o Deus que não pode desprezar nada daquilo que Ele criou
136, para o Deus que é fiel a si próprio, à sua paternidade e ao seu
amor.
Como os Profetas, apelamos
para o amor que tem características maternais e, à semelhança da mãe, vai
acompanhando cada um dos seus filhos, cada ovelha desgarrada, ainda que
houvesse milhões de extraviados, ainda que no mundo a iniquidade prevalecesse
sobre a honestidade e ainda que a humanidade contemporânea merecesse pelos seus
pecados um novo «dilúvio», como outrora sucedeu com a geração de Noé.
Recorramos, pois, a tal amor, que permanece amor paterno, como nos foi revelado
por Cristo na sua missão messiânica, e que atingiu o ponto culminante na sua
Cruz, morte e ressurreição! Recorramos a Deus por meio de Cristo, lembrados das
palavras do Magnificat de Maria, que proclamam a misericórdia «de geração em
geração». Imploremos a misericórdia divina para a geração contemporânea! Que a
Igreja, que procura, a exemplo de Maria ser em Deus, mãe dos homens, exprima
nesta oração a sua solicitude maternal e o seu amor confiante, donde nasce a
mais ardente necessidade da oração.
Elevemos as nossas
súplicas, guiados pela fé, pela esperança e pela caridade, que Cristo implantou
nos nossos corações. Esta atitude é, ao mesmo tempo, amor para com Deus, que o
homem contemporâneo por vezes afastou tanto de si, que O considera um estranho
e de várias maneiras O proclama «supérfluo». É, ainda, amor para com Deus, em
relação ao Qual sentimos profundamente quanto o homem contemporâneo O ofende e
O rejeita; e por isso estamos prontos para clamar com Cristo na cruz: «Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» 137. Tal atitude é também
amor para com os homens, para com todos os homens, sem excepção e sem qualquer
discriminação: sem diferenças de raça, de cultura, de língua, de concepção do
mundo e sem distinção entre amigos e inimigos. Tal é o amor para com todos os
homens, que deseja todo o bem verdadeiro a cada um deles, e a toda comunidade
humana, a cada família, nação, grupo social, aos jovens, aos adultos, aos pais,
anciãos e doentes, enfim, amor para com todos sem excepção. Tal é o amor, esta
viva solicitude para garantir a cada um, todo o bem autêntico e afastar e esconjurar
todo o mal.
Se alguns contemporâneos
não compartilharem comigo a fé e a esperança que me impelem, como servo de
Cristo e ministro dos mistérios de Deus 138, a implorar nesta hora
da história a misericórdia do mesmo Deus para a humanidade, que esses procurem
ao menos compreender o motivo desta solicitude. Ela é ditada pelo amor para com
o homem, para com tudo o que é humano e que, segundo a intuição de grande parte
dos nossos contemporâneos, está ameaçado por perigo imenso. O mistério de
Cristo que, revelando-nos a alta vocação do homem, me levou a pôr em evidência
na Encíclica Redemptor Hominis a incomparável dignidade do mesmo homem,
obriga-me igualmente a proclamar a misericórdia, como amor misericordioso de
Deus, manifestado no mistério de Cristo. Impele-me ainda a recorrer à
misericórdia e a implorá-la, nesta fase difícil e crítica da história da Igreja
e do mundo, ao aproximarmo-nos do final do segundo Milénio.
Em nome de Jesus Cristo
crucificado e ressuscitado, e no espírito da sua missão messiânica que continua
presente na história da humanidade, elevemos as nossas vozes e supliquemos que
nesta fase da história, se manifeste uma vez mais o Amor que está no Pai e que,
por obra do Filho e do Espírito Santo, tal Amor manifeste no nosso mundo
contemporâneo a sua presença, mais forte do que o mal, e o pecado e a morte.
Pedimos isto por intercessão d'Aquela que não cessa de proclamar «a
misericórdia, de geração em geração»; e também pela intercessão daqueles em que
já se realizaram até ao fim as palavras do Sermão da Montanha, «Bem-aventurados
os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» 139.
Prosseguindo na grande
tarefa de dar cumprimento ao Concílio Vaticano II, no qual podemos justamente
descobrir nova fase da auto-realização da Igreja — na medida adaptada à época
que nos coube viver — a própria Igreja deve ser constantemente guiada pela
plena consciência de que não lhe é permitido, em hipótese alguma, esmorecer nesta
tarefa e fechar-se sobre si mesma. A sua razão de ser, efectivamente, é revelar
Deus, isto é, o Pai, que nos permite «vê-l'O», em Cristo 140. Por
mais forte que possa ser a resistência da história humana, por mais marcante
que se apresente a heterogeneidade da civilização contemporânea e, enfim, por
maior que possa ser a negação de Deus no mundo humano, ainda maior deve ser,
apesar de tudo, a nossa aproximação de tal mistério que, oculto desde toda a
eternidade em Deus, foi depois, no tempo, realmente comunicado ao homem por
meio Jesus Cristo.
Com
a minha Bênção Apostólica!
Dado em Roma, junto de São
Pedro, aos trinta dias do mês de Novembro, Primeiro Domingo do Advento, do ano
de 1980, terceiro do meu Pontificado.
Copyright
© Libreria Editrice Vaticana
(Nota:
Revisão da tradução para português por ama)
______________________
Notas:
12 Cf. Jo 14.9s.
113 Ibid.
114 Cf. 1 Cor 11,26, Aclamação no
Missal Romano.
115 Jo 3,16.
116 Jo 4,8.
117 Cf. Cor 13,4.
118 2 Cor 1,3.
119 Rom 8,26.
120 Mt 5,7.
121 Cf. Mt 25,34-40.
122 Cf. 1 Cor 13,4.
123 Cf. Lc 15,11-32.
124 Cf. Lc 15,1-10.
125 Cf. Insegnamenti di Paolo VI, vol.
XIII (1975), p. 1568 (Discurso no encerramento do Ano Santo de 1975,
25-XII-1975); e vol. XIV (1976), pp. 40-42.
126 Mt 5,38.
127 Cf. Const. past. sobre a Igreja no
Mundo ContemporâneoGaudium et Spes, 40: AAS 58 (1956), pp. 1057-1059; Paulo PP.
VI, Exort. Apost. Paterna cum Benevolentia, especialmente nos nn. 1 e 6: AAS 67
(1975), pp. 7-9 e 17-23.
128 Cf. 1 Jo 2,16.
129 Mt 6,12.
130 Ef 4,2, Gal 6,2.
131 Mt 18,22.
132 Cf. Lc 15,32.
133 Cf. Is 12,3.
134 Mt 10,8.
135 Cf, Heber 5,7.
136 Cf. Sab. 11,24; Sl 145(144),9; Gén
1,31.
137 Lc 23,34.
138 Cf. 1 Cor 4,1.
139 Mt. 5,7.
140 Cf. Jo 14,9.
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