O
Estalajadeiro.
Talvez possa parecer estranho ter
escolhido este “papel” que, obviamente, parece não ser “central” na parábola.
Mas, eu, que nada sei nem de
parábolas nem de personagens, muito menos me sinto capaz de lhes atribuir
mérito ou demérito, o grau de importância que possam ter, apaixono-me por este.
Imagino-me à porta do meu
estabelecimento onde recebo hóspedes, normalmente viajantes que percorrem os
caminhos poeirentos e agrestes da Palestina e que procuram um lugar onde tomar
uma refeição, descansar um pouco ou passar a noite com um mínimo de conforto.
Estando ali, no meu posto de
trabalho, deparo-me com uma cena estranha:
Um homem que se aproxima a pé, conduzindo
a sua cavalgadura pela arreata e, mal se mantendo direito em cima desta, um
outro homem com os vestidos em farrapos, cheio de feridas vendadas com panos
embebidos em azeite e vinho num estado lastimoso.
Apresso-me a ir ao seu encontro e
tenho logo uma primeira reacção de enorme dúvida: quem conduz o ferido é um
Samaritano!
O que faz um Samaritano dirigir-se
ao meu estabelecimento?
Sim, eu, que sou judeu, não “morro
de amores” pelos samaritanos que, aliás, me pagam na mesma moeda.
Um antagonismo ancestral – que
ninguém sabe exactamente quando começou e porquê – divide os filhos de Israel:
Samaritanos e Judeus.
Mas, surpreendentemente, o
Samaritano aproxima-se de mim e diz-me:
‘Encontrei este teu irmão estendido
na vera do caminho porque caiu nas mãos
dos ladrões, que o despojaram, o espancaram e retiraram-se, deixando-o meio
morto [ii].
Tentei prestar-lhe o auxílio possível ligando-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, mas não podia deixá-lo
ali naquele estado por isso pu-lo sobre o meu jumento e trouxe-o até esta
estalagem para melhor cuidar dele. [iii]
Ajuda-me a levá-lo para dentro e encontra uma acomodação confortável onde o
possamos fazer’.
Fiquei atónito, sem palavras e levei
algum tempo a reagir.
Como que por encanto desvaneceram-se
as minhas dúvidas e pruridos e ajudei a transportar o ferido para a melhor
habitação de que dispunha.
Deitámos o homem numa cama,
despimos-lhe os farrapos, arranjei uma túnica lavada que lhe vestimos e,
enquanto o Samaritano observava de novo as feridas renovando as ligaduras e
unguentos fui à cozinha buscar um caldo de sopa que a custo conseguiu engolir.
Tendo caído num sono profundo,
deixámo-lo a descansar e retiramo-nos; o samaritano para uma acomodação na
parte superior da casa, eu para o meu posto à entrada da estalagem.
A noite ia adiantada e como não era
de prever aparecessem novos hóspedes, também fui deitar-me.
Mas não conseguia conciliar o sono
pensando em tudo quanto acontecera e algo apreensivo quanto ao dia seguinte.
Logo pela manhã o samaritano
preparou-se para seguir viagem mas, antes que eu pudesse perguntar o que fosse,
abriu a sua bolsa, tirou dois denários, e
deu-mos dizendo: Cuida dele; quanto gastares a mais, eu to pagarei quando
voltar. [iv]
Ainda hoje, passado tanto tempo, me
admiro com a minha atitude!
Nem por um momento me ocorreu que o
Samaritano não faria exactamente como me disse e que não ficaria por receber o
que viesse a gastar com o pobre coitado agora a meu cargo.
Sim, eu que sou judeu e tenho um
negócio, não posso dar-me ao luxo de receber hóspedes sem ter a certeza que
serei ressarcido das despesas de estadia tanto mais que estas seriam bastante
fora do “normal”: os tratamentos, ligaduras, unguentos e outros cuidados que
seriam necessários.
Volto a repetir: Ainda hoje, passado
tanto tempo, me admiro com a minha atitude!
Pela noitinha o doente estava
visivelmente melhor e começou por perguntar-me como tinha ido ali parar, o que
acontecera…
Contei-lhe tudo, claro, e o seu
espanto foi tão grande como tinha sido o meu no dia anterior quando o estranho
“cortejo” aparecera à minha porta.
Não se lembrava de nada, tão súbita
e violenta tinha sido a acção dos salteadores, nem sequer quanto tempo estivera
prostrado por terra.
Mas achava estranho que ninguém o
tivesse visto naquela situação, já que o caminho onde tudo acontecera era muito
concorrido.
Eu também – pensando melhor – achei
estranho, mas como estou habituado à indiferença das pessoas perante as necessidades
dos outros não me custava acreditar que alguns o terão visto e ao dar-se conta
da situação tivessem optado por seguir adiante livrando-se de “trabalhos” e
incómodos.
De facto há tanta gente que vai pelos
caminhos da vida tão cheios de si próprios, absorvidos com os seus assuntos que
olhando não vêm e, se acaso vêm, ficam indiferentes ao que, pensam, não lhes
diz respeito.
Tomei uma decisão:
A partir de agora a porta da minha
estalagem estará sempre aberta a quem tiver necessidade de entrar, não a
fecharei a ninguém por motivos de raça, cor da pele ou religião e
independentemente de possuírem meios ou recursos para cobrir as despesas que
porventura façam.
Esta decisão consola-me muito porque penso
que, um dia, pode acontecer-me o mesmo que ao pobre homem assaltado e espancado
pelo salteadores e, então precisarei de alguém – um Samaritano… talvez – que se
condoa de mim e me preste assistência.
(ama,
reflexões no Ano Jubilar da Misericórdia – 1)
Nota: Este trecho do Evangelho escrito por São Lucas poderia ser o Evangelho “oficial” do Ano
Jubilar da Misericórdia.
De facto, aparte a
magistral descrição da parábola proferida por Jesus Cristo, a beleza do texto,
a economia das palavras, o ritmo da descrição – características deste
Evangelista – põem-nos perante um autêntico quadro ou, melhor, perante um filme
que se desenrola aos nossos olhos prendendo-nos a atenção e excitando os nossos
sentidos.
São Josemaria
recomendou: “aconselho-te a que,
na tua oração, intervenhas nas passagens do Evangelho, como um personagem mais”.
É isso mesmo que me
proponho fazer.
Sob o Título: “Próximos do próximo” (sugerido por um bom amigo) vou tentar personificar alguns dos personagens
da parábola e, também, introduzir-me nela como observador directo.
[ii] Cfr. Lc 10, 30
[iii] Cfr. Lc 10, 34
[iv] Cfr. Lc 10, 35
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