Art.
3 — Se a acção humana de Cristo podia ser meritória.
O terceiro discute-se assim. — Parece
que a acção humana de Cristo não podia ser meritória.
1. — Pois, Cristo, antes da sua morte,
já gozava da visão beatífica tal como agora a goza. Ora, quem goza da visão
beatífica não pode merecer. Pois, a sua caridade é o prémio da bem-aventurança,
porquanto nesta se funda o gozo da visão, portanto, não pode ser princípio de merecimento,
porque o mérito não se confunde com o prémio. Logo, Cristo, antes da paixão não
merecia, como actualmente não merece.
2. Demais. — Não merecemos o que nos é
devido. Ora, por natureza Filho de Deus, Cristo tem direito à herança eterna
que os outros homens merecem pelas suas boas obras. Logo, Cristo, que desde o
princípio foi Filho de Deus, nada podia merecer para si.
3. Demais. — Se temos um bem
principal, não merecemos propriamente o que desse bem resulta. Ora, Cristo
tinha a glória da alma, da qual ordinariamente resulta a glória do corpo, como
diz Agostinho, em Cristo, porém, por excepção, a glória da alma não derivava
para o corpo. Logo, Cristo não mereceu a glória do corpo.
4. Demais. — A manifestação da
excelência de Cristo não é um bem do próprio Cristo, mas, dos que o conhecem.
Pois, como prémio aos seus amantes Cristo promete que há-de manifestar-se-lhes,
como está no Evangelho: Aquele que me ama será amado de meu Pai e eu o amarei
também e me manifestarei a ele. Logo, Cristo não mereceu a manifestação da sua
grandeza.
Mas, em contrário, o Apóstolo diz: Feito obediente até a morte, pelo que Deus
também o exaltou. Logo, obedecendo mereceu a sua exaltação e, portanto,
algo para si mereceu.
Ter um bem, por si mesmo, é
mais nobre que tê-lo por outrem, pois, como diz Aristóteles, a coisa que por si
mesma é-o, é mais nobre que a que o é mediante outro. Ora, dizemos que tem uma
causa por si mesmo quem de certo modo é causa dela, para si próprio. Ora, a
causa primeira de todos os nossos bens como autor deles, é Deus. E, assim,
nenhuma criatura tem qualquer bem por si mesma, segundo aquilo da Escritura: Que tens tu que não recebesses? Mas,
podemos, de modo secundário, ser a causa de um bem que tenhamos, como um
resultado da nossa colaboração com Deus, e então, o que temos pelo nosso
próprio mérito nós temo-lo de certo modo por nós mesmos. Donde, o que temos por
mérito o temos mais nobremente que o que temos sem mérito.
Ora, devemos atribuir a Cristo toda
perfeição e toda nobreza. Logo e consequentemente, também ele terá por mérito o
que os outros por mérito têm, salvo se se tratar daquilo cuja carência mais
prejudique à dignidade e à perfeição de Cristo do que a aumente, pelo mérito.
Por isso, Cristo não mereceu a graça, nem a ciência, nem a bem-aventurança da
alma, nem a divindade, pois, como não merecemos senão o que não temos, havia
Cristo, algum tempo, de ter carecido desses bens, ora, carecer deles mais
diminui a dignidade de Cristo, do que a aumenta o merecê-las. A glória do corpo
porém, ou de um bem semelhante, é menor que a dignidade de merecer, que
pertence à virtude da caridade. Donde devemos concluir, que Cristo teve por
mérito a glória do corpo e o que implica uma excelência exterior sua, como a
ascensão, a veneração e bens tais. Donde é claro que podia merecer para si.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— O gozo, que é um acto de caridade, pertence à glória da alma, que Cristo não
mereceu. Donde, de ter merecido pela caridade, não se segue a confusão do
mérito e do prémio. Mas não mereceu pela caridade, enquanto era a sua caridade
a de quem frui da visão beatífica, mas a do viandante. Pois, ao mesmo tempo foi
viandante e vidente, como demonstramos. Logo, como já agora não é viandante,
não está em estado de merecer.
RESPOSTA À SEGUNDA· — A Cristo,
enquanto Filho de Deus e Deus por natureza é devida a glória divina e o domínio
sobre todas as coisas, como ao primeiro e supremo Senhor. Nem por isso,
contudo, deixa de lhe ser devida a glória, como a quem é bem-aventurado, e essa,
de certo modo, devia tê-la sem mérito, e certamente outro, com mérito, como do
sobredito se colige.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O redundar da
glória, da alma para o corpo, resulta da ordenação divina, em conformidade com
os méritos humanos. Assim, como merecemos pelo acto, que a alma exerce sobre o
corpo, assim, também somos remunerados pela glória, redundante, da alma, para o
corpo. E por isso, não somente a glória da alma, mas também a do corpo é
susceptível de mérito, segundo o Apóstolo: Dará
vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito, que habita em vós. E
assim podia ser merecida por Cristo.
RESPOSTA À QUARTA. — A manifestação da
excelência de Cristo inclui-se-lhe no bem, que lhe resulta do conhecimento dos
outros, embora mais principalmente pertença ao bem dos que o conhecem, pelo ser
que em si mesmos tem. Mas isso mesmo se refere a Cristo, enquanto membros dele.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.