19/02/2015

Tratado do verbo encarnado 126

Questão 19: Da unidade de operação em Cristo

Art. 3 — Se a acção humana de Cristo podia ser meritória.

O terceiro discute-se assim. — Parece que a acção humana de Cristo não podia ser meritória.

1. — Pois, Cristo, antes da sua morte, já gozava da visão beatífica tal como agora a goza. Ora, quem goza da visão beatífica não pode merecer. Pois, a sua caridade é o prémio da bem-aventurança, porquanto nesta se funda o gozo da visão, portanto, não pode ser princípio de merecimento, porque o mérito não se confunde com o prémio. Logo, Cristo, antes da paixão não merecia, como actualmente não merece.

2. Demais. — Não merecemos o que nos é devido. Ora, por natureza Filho de Deus, Cristo tem direito à herança eterna que os outros homens merecem pelas suas boas obras. Logo, Cristo, que desde o princípio foi Filho de Deus, nada podia merecer para si.

3. Demais. — Se temos um bem principal, não merecemos propriamente o que desse bem resulta. Ora, Cristo tinha a glória da alma, da qual ordinariamente resulta a glória do corpo, como diz Agostinho, em Cristo, porém, por excepção, a glória da alma não derivava para o corpo. Logo, Cristo não mereceu a glória do corpo.

4. Demais. — A manifestação da excelência de Cristo não é um bem do próprio Cristo, mas, dos que o conhecem. Pois, como prémio aos seus amantes Cristo promete que há-de manifestar-se-lhes, como está no Evangelho: Aquele que me ama será amado de meu Pai e eu o amarei também e me manifestarei a ele. Logo, Cristo não mereceu a manifestação da sua grandeza.

Mas, em contrário, o Apóstolo diz: Feito obediente até a morte, pelo que Deus também o exaltou. Logo, obedecendo mereceu a sua exaltação e, portanto, algo para si mereceu.

Ter um bem, por si mesmo, é mais nobre que tê-lo por outrem, pois, como diz Aristóteles, a coisa que por si mesma é-o, é mais nobre que a que o é mediante outro. Ora, dizemos que tem uma causa por si mesmo quem de certo modo é causa dela, para si próprio. Ora, a causa primeira de todos os nossos bens como autor deles, é Deus. E, assim, nenhuma criatura tem qualquer bem por si mesma, segundo aquilo da Escritura: Que tens tu que não recebesses? Mas, podemos, de modo secundário, ser a causa de um bem que tenhamos, como um resultado da nossa colaboração com Deus, e então, o que temos pelo nosso próprio mérito nós temo-lo de certo modo por nós mesmos. Donde, o que temos por mérito o temos mais nobremente que o que temos sem mérito.

Ora, devemos atribuir a Cristo toda perfeição e toda nobreza. Logo e consequentemente, também ele terá por mérito o que os outros por mérito têm, salvo se se tratar daquilo cuja carência mais prejudique à dignidade e à perfeição de Cristo do que a aumente, pelo mérito. Por isso, Cristo não mereceu a graça, nem a ciência, nem a bem-aventurança da alma, nem a divindade, pois, como não merecemos senão o que não temos, havia Cristo, algum tempo, de ter carecido desses bens, ora, carecer deles mais diminui a dignidade de Cristo, do que a aumenta o merecê-las. A glória do corpo porém, ou de um bem semelhante, é menor que a dignidade de merecer, que pertence à virtude da caridade. Donde devemos concluir, que Cristo teve por mérito a glória do corpo e o que implica uma excelência exterior sua, como a ascensão, a veneração e bens tais. Donde é claro que podia merecer para si.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — O gozo, que é um acto de caridade, pertence à glória da alma, que Cristo não mereceu. Donde, de ter merecido pela caridade, não se segue a confusão do mérito e do prémio. Mas não mereceu pela caridade, enquanto era a sua caridade a de quem frui da visão beatífica, mas a do viandante. Pois, ao mesmo tempo foi viandante e vidente, como demonstramos. Logo, como já agora não é viandante, não está em estado de merecer.

RESPOSTA À SEGUNDA· — A Cristo, enquanto Filho de Deus e Deus por natureza é devida a glória divina e o domínio sobre todas as coisas, como ao primeiro e supremo Senhor. Nem por isso, contudo, deixa de lhe ser devida a glória, como a quem é bem-aventurado, e essa, de certo modo, devia tê-la sem mérito, e certamente outro, com mérito, como do sobredito se colige.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O redundar da glória, da alma para o corpo, resulta da ordenação divina, em conformidade com os méritos humanos. Assim, como merecemos pelo acto, que a alma exerce sobre o corpo, assim, também somos remunerados pela glória, redundante, da alma, para o corpo. E por isso, não somente a glória da alma, mas também a do corpo é susceptível de mérito, segundo o Apóstolo: Dará vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito, que habita em vós. E assim podia ser merecida por Cristo.

RESPOSTA À QUARTA. — A manifestação da excelência de Cristo inclui-se-lhe no bem, que lhe resulta do conhecimento dos outros, embora mais principalmente pertença ao bem dos que o conhecem, pelo ser que em si mesmos tem. Mas isso mesmo se refere a Cristo, enquanto membros dele.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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