23/01/2015

Tratado do verbo encarnado 99

Questão 15: Das fraquezas atinentes à alma que Cristo assumiu com a natureza humana

Art. 6 — Se Cristo sofreu a tristeza.

O sexto discute-se assim. — Parece que Cristo não sofreu a tristeza.

1. — Pois, diz de Cristo a Escritura: Não será triste nem turbulento.

2. Demais. — Diz a Escritura: Não entristecerá ao justo coisa alguma, seja o que for que lhe acontecer. E a razão disto os estoicos davam-na dizendo, que ninguém se entristece senão pela perda dos seus bens, ora o justo não considera bens senão a justiça e a virtude, que não pode perder. Do contrário, estaria sujeito à fortuna, se se entristecesse quando perdesse os bens dela. Ora, Cristo era o justo por excelência, segundo a Escritura: Este é o nome que lhe chamaram, o Senhor nosso justo. Logo, não sofreu a tristeza,

3. Demais. — O Filosofo diz, que toda tristeza deve ser evitada como um mal. Ora, Cristo não tinha que evitar nenhum mal. Logo, não sofreu a tristeza.

4. Demais. — Como diz Agostinho, Nós nos entristecemos com o que nos contraria a vontade. Ora, Cristo não sofreu nada contra a sua vontade, pois, como diz a Escritura, foi oferecido porque ele mesmo quis. Logo, Cristo não sofreu a tristeza.

Mas, em contrário, diz o Senhor: A minha alma está numa tristeza mortal. E Ambrósio: Como homem, sofreu tristeza, pois, assumiu a minha tristeza, Pois, exprimo por certo a tristeza quando me refiro à cruz.

Como dissemos, o prazer da contemplação divina concentrava-se, por disposição do poder de Deus, na alma de Cristo, a ponto de não derivar para as potências sensitivas e, assim, excluir a dor sensível. Ora, como a dor sensível tem a sua sede no apetite sensitivo, assim também a tristeza, mas diferentemente, pelo seu motivo ou objecto. Pois, o objecto e o motivo da dor é uma lesão percebida pelo sentido do tacto, como quando alguém é ferido. Ora, o objecto e o motivo da tristeza é um dano ou um mal interiormente apreendido, pela razão ou pela imaginação, como dissemos na Segunda Parte, tal o caso de quem se entristece pela perda da graça ou do dinheiro. Ora, a alma de Cristo podia apreender interiormente uma coisa como nociva, tanto para si mesmo, como o foi a sua paixão e morte, quanto para os outros, como o pecado dos discípulos ou ainda dos Judeus que o mataram. Donde, assim como Cristo podia sofrer realmente a dor, também podia padecer realmente a tristeza, mas de maneira diferente de nós, daqueles três modos que assinalamos, quando tratamos em geral das paixões da alma de Cristo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Cristo não sofreu a tristeza, como paixão, no seu sentido perfeito, mas houve nele uma tristeza incoativa, como pro-paixão. Donde o dizer a Escritura: Começou a entristecer-se e a angustiar-se. — Ora, uma coisa é entristecer-se e outra começar a entristecer-se.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, os estoicos ensinavam que há na alma do sábio três eupatias, isto é, boas paixões, correspondentes às três perturbações - a cobiça, a alegria e o temor. Essas três eupatias correspondentes são: a cobiça, a vontade, a alegria, o gáudio, o medo, a cautela. Mas negavam que pudesse haver algo na alma do sábio de correspondente à tristeza, porque a tristeza supõe um mal já acontecido, ora, julgavam que nenhum mal podia atingir o sábio. E pensavam assim por só considerarem como bem o honesto, que torna os homens bons, e como sendo mal só o desonesto, que torna os homens maus. — Mas, embora o honesto seja o principal bem do homem, e o desonesto o mal principal, por dizerem respeito à razão, que é o principal no homem, há contudo, alguns bens humanos secundários, relativos ao corpo ou às coisas exteriores que servem ao corpo. E, assim sendo, pode haver tristeza na alma do sábio, quando o apetite sensitivo venha a apreender algum dos referidos males, não vai porém essa tristeza até perturbar a razão. E também a esta luz se entende que o justo não se contristará, seja o que for que lhe suceda, pois, nenhum acontecimento lhe perturba a razão, Donde, Cristo sofreu tristeza, quanto à pro-paixão, mas não quanto à paixão.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Toda tristeza implica o mal da pena, mas nem sempre o mal da culpa, senão só quando procede do afecto desordenado. Donde o dizer Agostinho: Quando estas paixões obedecem à razão recta e lhes cedemos em tempo e lugar oportunos, quem ousará chamar-lhes doenças ou paixões más?

RESPOSTA À QUARTA. — Nada impede que uma coisa contrária à vontade ser, em si mesma considerada e, contudo, querida, em razão do fim a que se ordena. Assim, não queremos em si mesmo um remédio amargo, mas enquanto ordenado à saúde. Ora, deste modo, a morte de Cristo e a sua paixão foram, consideradas em si mesmas, involuntárias e causas de tristeza, embora fossem voluntárias quanto ao fim, que é a redenção do género humano.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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