Em seguida devemos tratar das misérias
atinentes à alma.
E nesta questão discutem-se dez
artigos:
Art. 1 — Se em Cristo houve pecado.
Art. 2 — Se em Cristo houve o atractivo
do pecado.
Art. 3 — Se em Cristo houve
ignorância.
Art. 4 — Se a alma de Cristo era
passível.
Art. 5 — Se Cristo sofreu
verdadeiramente a dor sensível.
Art. 6 — Se Cristo sofreu a tristeza.
Art. 7 — Se em Cristo houve temor.
Art. 8 — Se em Cristo houve admiração.
Art. 9 — Se em Cristo havia a ira.
Art. 10 — Se Cristo, enquanto
viandante neste mundo simultaneamente gozava da visão beatífica.
Art.
1 — Se em Cristo houve pecado.
O primeiro, discute-se assim. --
Parece que em Cristo houve pecado.
1. — Pois, diz a Escritura: Deus, Deus
meu, meu, porque me desamparaste? Os clamores dos meus pecados são causa de
estar longe de mim a salvação. Ora, as palavras foram ditas pela própria pessoa
de Cristo, como o mostram as que ele proferiu na cruz. Logo, parece que Cristo
cometeu pecados.
2. Demais. — O Apóstolo diz que em
Adão todos pecaram, porque nele estavam originalmente. Ora, Cristo também
estava originalmente em Adão. Logo, nele pecou.
3. Demais. — O Apostolo diz: À vista
de tudo quanto ele padeceu e em que foi tentado, é poderoso para ajudar também
aqueles que são tentados. Ora, nós precisávamos do seu auxílio sobretudo contra
o pecado. Logo, parece que nele houve pecado.
4. Demais. — O Apóstolo diz que Deus é
aquele que não havia conhecido pecado, isto é, Cristo, o fez pecado por nós.
Ora, verdadeiramente é aquilo que Deus faz. Logo, em Cristo houve
verdadeiramente pecado.
5. Demais. — Como diz Agostinho, no
homem Cristo o Filho de Deus se deu a nós como um exemplo para a vida. Ora, o
homem precisa de exemplo não só para viver rectamente, mas também para fazer
penitência dos pecados, Logo, parece que em Cristo devia haver pecado para que,
fazendo penitência deles, nos desse o exemplo da penitência.
Mas, em contrário, o Evangelho: Qual
de Vós me arguirá de pecado?
Como dissemos, Cristo
assumiu os nossos defeitos para que satisfizesse por nós e comprovasse a
verdade da natureza humana e nos desse exemplo de virtude. E por essas três
razões é manifesto que não devia assumir a miséria do pecado. - Primeiro,
porque, o pecado em nada concorre para a satisfação, antes, impede a virtude da
satisfação, pois, como diz a Escritura, o Altíssimo não aprova os dons dos
iníquos. - Semelhantemente, também pelo pecado não se mostra a verdade da
natureza humana, pois ele não pertence à natureza humana de que Deus é causa,
antes, é contra a natureza, introduzido pelo contágio do diabo, como diz
Damasceno. - Terceiro, porque, pecando, não podia dar exemplo de virtude, pois,
o pecado contraria a virtude. Por isso Cristo de nenhum modo assumiu a miséria
do pecado, nem do original nem do actual, segundo a Escritura: O que não
cometeu pecado nem foi achado engano na sua boca.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— Como diz Damasceno, podemos afirmar de dois modos alguma causa de Cristo. De
um modo, referente à sua propriedade natural e hipostática, como quando dizemos
que Deus se fez homem e sofreu por nós. De outro modo, quanto à sua propriedade
pessoal e num sentido relativo, como quando dizemos alguma causa de nossa
pessoa aplicando-a a ele, a qual de nenhum modo lhe convém em si mesmo
considerado. Por isso, entre as sete regras de Ticónio, enunciadas por
Agostinho, a primeira respeita, ao Senhor e ao seu corpo, pois que as pessoas
de Cristo e da Igreja consideram-se uma só pessoa. E, a esta luz, Cristo,
falando das pessoas dos seus membros, diz: Os clamores dos meus pecados, não
querendo com isso significar que no próprio chefe houvesse pecados.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz
Agostinho, Cristo não existia em Adão e nos outros patriarcas absolutamente do
mesmo modo pelo qual nós nele existimos. Pois, nós existimos em Adão pelo germe
da nossa natureza e pela substância do nosso corpo porque, como ele próprio o
diz no mesmo lugar, devemos distinguir na nossa origem a substância corpórea,
visível, e a razão seminal, invisível. Mas Cristo assumiu da carne da Virgem a
substância visível da sua carne, ao passo que a sua concepção original tem uma
causa muito diferente do sémen viril e muito superior a ele. Por isso não
existiu em Adão pelo sémen original, mas só pela substância do corpo. E
portanto não recebeu activamente a natureza humana de Adão, mas só materialmente,
pois que, activamente recebeu-a do Espírito Santo, assim como também o próprio
Adão recebeu o seu corpo, materialmente, do limo da terra, mas, activamente, de
Deus. Donde, Cristo não pecou em Adão, em quem só existiu pela matéria.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo, com a
sua tentação e a sua paixão veio em nosso socorro, satisfazendo por nós. Ora, o
pecado não coopera para a satisfação, ao contrário, impede-a, como dissemos. Donde,
importava não que em si tivesse pecado, mas que fosse absolutamente puro dele,
do contrário, a pena que sofreu ter-lhe-ia sido devida pelo próprio pecado.
RESPOSTA À QUARTA. — Deus fez Cristo
pecado, não para que tivesse em si o pecado, mas por ter feito hóstia pelo
pecado, como diz a Escritura: Eles comerão dos pecados do meu povo, isto é, os
sacerdotes que, segundo a lei, comiam as vítimas oferecidas pelo pecado. E,
deste modo, diz a Escritura: O Senhor carregou sobre ele a iniquidade de todos
nós, pelo ter entregue como vítima pelo pecado de todos os homens. Ou o fez
pecado por ter a semelhança da carne do pecado, na expressão do Apóstolo. E
isto por causa do corpo passível e mortal que assumiu.
RESPOSTA À QUINTA. — Um penitente pode
dar exemplo louvável não pelo pecado que cometeu, mas por ter voluntariamente
sofrido uma pena pelo pecado. E assim Cristo deu o exemplo máximo aos
penitentes, querendo sofrer uma pena, não por qualquer pecado próprio, mas pelo
pecado dos outros.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.
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