Em seguida devemos tratar do que o
Verbo de Deus consumiu, ao assumir a natureza humana. E primeiro do que
respeita à perfeição. Segundo, do que respeita aos defeitos.
No primeiro ponto consideram-se três
outros. Primeiro, da graça de Cristo. Segundo, da sua ciência. Terceiro, do seu
poder.
Quanto à graça de Cristo dá ela lugar
a duas considerações. Primeiro, da sua graça enquanto um homem particular.
Segundo, da sua graça enquanto Chefe da Igreja. Pois, da graça da união já
tratamos.
Na primeira questão discutem-se treze
artigos:
Art. 1 — Se na alma assumida pelo
Verbo havia a graça habitual.
Art. 2 — Se em Cristo havia virtudes.
Art. 3 — Se em Cristo existiu a fé.
Art. 4 — Se em Cristo existia a
esperança.
Art. 5 — Se em Cristo existiam os
dons.
Art. 6 — Se em Cristo houve o dom do
temor.
Art. 7 — Se em Cristo havia as graças
gratuitas.
Art. 8 — Se Cristo teve a profecia.
Art. 9 — Se Cristo tinha a plenitude
da graça.
Art. 10 — Se a plenitude da graça é
própria de Cristo.
Art. 11 — Se a graça de Cristo era
infinita.
Art. 12 — Se a graça de Cristo podia
aumentar.
Art. 13 — Se a graça habitual em
Cristo era uma consequência da união.
Art.
1 — Se na alma assumida pelo Verbo havia a graça habitual.
O primeiro discute-se assim. — Parece
que na alma assumida pelo Verbo não havia a graça habitual.
1. — Pois, a graça é uma certa
participação da divindade na criatura racional, segundo a Escritura: Pelo qual
nos comunicou as mui grandes e preciosas graças que tinha prometido, para que
sejamos feitos participantes da natureza divina. Ora, Cristo é Deus, não
participativa, mas verdadeiramente. Logo, nele não houve graça habitual.
2. Demais. — A graça é necessária ao
homem para proceder bem, segundo o Apóstolo: Tenho trabalhado mais copiosamente
que todos eles, não eu contudo, mas a graça de Deus comigo. E também para
alcançar a vida eterna, segundo ainda o Apóstolo: A graça de Deus é a Vida
perdurável. Ora, a Cristo, só pelo facto de ser naturalmente o Filho de Deus,
era-lhe devida a herança da vida eterna, e também por ser o Verbo, pelo qual
todas as coisas foram feitas, tinha a faculdade de proceder bem em todas as
coisas. Logo, não precisava, em virtude da sua natureza humana, de outra graça,
senão da união com o Verbo.
3. Demais. — O que opera a modo de
instrumento não precisa de nenhum hábito para as suas operações próprias,
porque o hábito se funda no agente principal. Ora, a natureza humana, em
Cristo, era como o instrumento da divindade, no dizer de Damasceno. Logo, não
devia de haver, em Cristo, nenhuma graça habitual.
Mas, em contrário, a Escritura:
Descansará sobre ele o Espírito do Senhor, do qual se diz que está no homem
pela graça habitual, como se demonstrou na Primeira Parte. Logo, em Cristo
havia a graça habitual.
Devemos admitir em Cristo a
graça habitual, por três razões. — Primeiro, por causa da união da sua alma com
o Verbo de Deus. Pois, quanto mais próximo está um ser da causa que influi
sobre ele, tanto mais participa da sua influência. Ora, o influxo da graça vem
de Deus, segundo a Escritura: O Senhor dará a graça e a glória. Por isso era
conveniente em máximo grau que a sua alma recebesse o influxo da graça divina.
— Segundo, por causa da nobreza da sua alma, cujas operações deviam tocar a
Deus de muito perto pelo conhecimento e pelo amor, e para isso é preciso a
natureza humana ser elevada pela graça. — Terceiro, por causa das relações de
Cristo com o género humano. Pois, Cristo enquanto homem é o mediador entre Deus
e os homens, no dizer do Apóstolo. Por isso deveria ter uma graça capaz de
redundar nos outros, conforme o Evangelho: Todos nós participamos de sua
plenitude.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— Cristo é verdadeiramente Deus pela pessoa e pela natureza divina. Mas, como
com a unidade de pessoa subsiste a distinção das naturezas, conforme do
sobredito se colige, a alma de Cristo não é por sua essência divina. Por onde,
havia de se tornar divina por participação, que é segundo a graça.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A Cristo,
enquanto por natureza filho de Deus, é devida a herança eterna, que é a própria
beatitude incriada, pelo acto incriado do conhecimento e do amor de Deus, ato
que é o mesmo pelo qual o Pai se conhece e ama a si mesmo. E desse acto a alma
não era capaz por causa da diferença de natureza. Por isso, era necessário que
se alçasse a Deus por um acto criado de fruição. O que não pode ser senão pela
graça. — Semelhantemente, enquanto Verbo de Deus, tinha a faculdade de proceder
bem em tudo, por operação divina. Mas, como além da operação divina, devemos
admitir nele a operação humana, conforme a seguir se demonstrará, era mister
que tivesse a graça habitual, que torna perfeita a sua referida operação.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A humanidade de
Cristo é o instrumento da divindade, não, evidentemente, como um instrumento
inanimado, que de nenhum modo, age, mas é manejado por outro, mas como um
instrumento animado pela alma racional, que é manejado por outro mas de modo que
também age. E portanto, para a sua acção própria era necessário tivesse a graça
habitual.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.
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