Tempo comum XXXI Semana
12 Dizia mais àquele que O tinha
convidado: «Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos,
nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os vizinhos ricos; para que não
aconteça que também eles te convidem e te paguem com isso. 13 Mas,
quando deres algum banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os
cegos; 14 e serás bem-aventurado, porque esses não têm com que
retribuir-te; mas ser-te-á isso retribuído na ressurreição dos justos».
Comentário:
Do que aqui se trata é a aplicação prática do aforismo
popular: "fazer o bem sem olhar a quem".
Isto implica, antes de mais, um verdadeiro sentido de desprendimento no que ao próximo se refere e, também, uma postura séria na consideração que todos nos devem merecer independentemente dos laços que possam unir-nos e da sua condição social ou outra.
(ama, comentário sobre Lc 14, 12-14
2013.11.04)
Leitura espiritual
HISTÓRIA DE UMA ALMA
Santa Teresinha do Menino Jesus
Manuscrito "A" - Parte III
…/4
Nessa noite de luz, começou o terceiro
período da minha vida, o mais bonito de todos, o mais cheio das graças do
Céu... Num instante, a obra que eu não pude cumprir em dez anos, Jesus a fez
contentando-se com a boa vontade que nunca me faltara. Como os apóstolos, podia
dizer-Lhe: "Senhor, pesquei a noite toda sem nada pegar". Ainda mais
misericordioso comigo do que com os discípulos, Jesus pegou Ele mesmo a rede,
lançou-a e retirou-a cheia de peixes... Fez de mim um pescador de almas, senti
um desejo imenso de trabalhar pela conversão dos pecadores, desejo que não
sentira tanto antes... Em suma, senti a caridade entrar no meu coração, a
necessidade de me esquecer para agradar e, desde então, fiquei feliz!... Num
Domingo, ao olhar uma foto de Nosso Senhor na Cruz, fiquei impressionada com o
sangue que caía de uma das suas mãos divinas. Senti grande aflição pensando que
esse sangue caía no chão sem que ninguém se apressasse em recolhê-lo. Resolvi
ficar, em espírito, ao pé da Cruz para receber o divino orvalho que se
desprendia, compreendendo que precisaria, a seguir, espalhá-lo sobre as
almas... O grito de Jesus na Cruz ressoava continuamente em meu coração:
"Tenho sede!" Essas palavras despertavam em mim um ardor desconhecido
e muito vivo... Queria dar de beber a meu Bem-amado e sentia-me devorada pela
sede das almas... Ainda não eram as almas dos sacerdotes que me atraíam, mas as
dos grandes pecadores. Ardia do desejo de arrancá-los às chamas eternas...
Para estimular o meu zelo, Deus
mostrou-me que os meus desejos lhe eram agradáveis. Ouvi falar de um grande
criminoso que acabava de ser condenado à morte por crimes horríveis. Tudo fazia
crer que morreria impenitente. Quis, a qualquer custo, impedi-lo de cair no
inferno"'. Para conseguir, usei de todos os meios imagináveis: sentindo
que, de mim mesma, nada poderia, ofereci a Deus os méritos infinitos de Nosso
Senhor, os tesouros da santa Igreja, enfim, pedi a Celina para mandar celebrar
uma missa nas minhas intenções, não ousando pedi-la eu mesma, temendo ser obrigada
a dizer que era para Pranzini, o grande criminoso. Não queria, tampouco,
dizê-lo a Celina, mas insistiu com tanta ternura que lhe confiei meu segredo;
longe de zombar de mim, pediu para ajudar a converter o meu pecador. Aceitei
com gratidão, pois teria desejado que todas as criaturas se unissem a mim para
implorar a graça para o culpado. No fundo do meu coração, tinha certeza de que
nossos desejos seriam atendidos. Mas, a fim de ter coragem para continuar a
rezar pelos pecadores, disse a Deus estar segura de que Ele perdoaria o pobre
infeliz Pranzini, que acreditaria mesmo que não se confessasse e não desse
sinal nenhum, de arrependimento, enorme era minha confiança na misericórdia
infinita de Jesus, mas pedia-lhe apenas um sinal de arrependimento, para meu
próprio consolo... A minha oração foi atendida ao pé da letra! Apesar da
proibição de papai de lermos jornais, não pensava desobedecer lendo as
passagens que falavam de Pranzini. No dia seguinte à sua execução, cai-me às
mãos o jornal La Croix. Abro-o apressada e o que vejo?... Ah! As minhas
lágrimas traíram a minha emoção e fui obrigada a me esconder... Pranzini não se
confessou, subiu ao cadafalso e preparava-se para colocar a cabeça no buraco
lúgubre quando, numa inspiração repentina, virou-se, apanhou um Crucifixo que
lhe apresentava o sacerdote e beijou por três vezes suas chagas sagradas!...
Sua alma foi receber a sentença misericordiosa Daquele que declarou que no Céu
haverá mais alegria por um só pecador arrependido do que por 99 justos que não
precisam de arrependimento!...
Obtive o "sinal" pedido, e
esse sinal era a reprodução fiel das graças que Jesus me fizera para atrair-me
a rezar pelos pecadores. Não foi diante das chagas de Jesus, vendo cair o seu
sangue divino, que a sede de almas entrou no meu coração? Queria dar-lhes de
beber esse sangue imaculado que devia purificá-las das suas sujeiras, e os
lábios do "meu primeiro filho" foram colar-se às chagas
sagradas!!!... Que resposta indizivelmente doce!... Ah! desde essa graça única,
o meu desejo de salvar as almas cresceu a cada dia. Parecia-me ouvir Jesus
dizendo como para a samaritana: "Dê-me de beber!" Era uma verdadeira
troca de amor; às almas, eu dava o sangue de Jesus; a Jesus, oferecia essas
mesmas almas refrescadas pelo seu divino orvalho. Dessa forma, eu parecia
desalterá-lo e mais lhe dava de beber, mais a sede da minha pequena alma
aumentava e era essa sede ardente que Ele me dava como a mais deliciosa bebida
do seu amor...
Em pouco tempo, Deus conseguira
fazer-me sair do círculo apertado no qual eu girava sem encontrar saída. Vendo
o caminho que Ele me fizera percorrer, a minha gratidão é grande, mas preciso
convir que, se o passo maior fora dado, muitas coisas restavam ainda a abandonar.
Livre dos escrúpulos, da sua sensibilidade excessiva, o meu espírito
desenvolveu-se. Sempre gostara do grandioso, do belo, mas naquela época fui
tomada de um desejo extremo de saber. Não satisfeita com as lições e as tarefas
que a minha mestra me dava, dedicava-me, sozinha, a estudos especiais de
história e de ciências. Os outros estudos deixavam-me indiferente, mas essas
duas áreas atraíam a minha atenção. Em poucos meses, adquiri mais conhecimentos
que durante meus anos de estudos. Ah! isso só era vaidade e aflição de
espírito... O capítulo da Imitação em que se fala das ciências voltava à minha
mente, mas achava o meio de prosseguir assim mesmo, dizendo-me que, estando na
idade de estudar, não havia mal nenhum em fazê-lo. Não creio ter ofendido a
Deus (embora reconheça ter passado nisso um tempo inútil), pois só ocupava um
certo número de horas que não queria ultrapassar a fim de mortificar meu desejo
excessivo de saber... Estava na mais perigosa idade para as moças, mas Deus fez
por mim o que relata Ezequiel em suas profecias: "passando perto de mim,
Jesus viu que havia chegado para mim o tempo de ser amada, Ele fez aliança
comigo e passei a ser sua... Estendeu sobre mim seu manto, lavou-me em perfumes
preciosos, revestiu-me de roupas bordadas, dando-me colares e joias sem preço...
Alimentou-me com a mais pura farinha, com mel e azeite abundante... então
passei a ficar bela aos olhos Dele e fez de mim uma poderosa rainha!..."
Sim, Jesus fez tudo isso para mim,
poderia retomar cada palavra do que acabo de escrever e provar que se realizou
em meu favor, mas as graças que relatei acima são prova suficiente. Vou apenas
falar da alimentação que me prodigalizou "com abundância". Havia
muito que me alimentava da "pura farinha" contida na Imitação, era o
único livro que me fazia bem, pois ainda não havia achado os tesouros
escondidos no Evangelho. Sabia de cor quase todos os capítulos da minha querida
Imitação, nunca me desfazia desse livrinho. No verão, levava-o no bolso; no
inverno, no meu regalo. O hábito tornou-se tradicional e, na casa da minha tia,
divertiam-se muito abrindo-o ao acaso e fazendo-me recitar o capítulo que se
apresentava aos olhos. Aos 14 anos, com o meu desejo de ciência, Deus achou
necessário acrescentar "à pura farinha mel e azeite em abundância".
Esse mel e esse azeite, fez-me encontrá-los nas conferências do padre Arminjon,
sobre o fim do mundo actual e os mistérios do mundo futuro. Esse livro havia
sido emprestado a papai pelas minhas queridas carmelitas; por isso,
contrariamente a meus hábitos (pois eu não lia os livros de papai), pedi para
lê-lo.
Essa leitura foi ainda uma das maiores
graças da minha vida. Fi-la à janela do meu quarto de estudo e a impressão que
tive é por demais íntima e doce para que possa expressá-la...
Todas as grandes verdades da religião,
os mistérios da eternidade, mergulhavam a minha alma numa felicidade que não
era da terra... Já pressentia o que Deus reserva a quem o ama (não com o olho
do homem, mas com o do coração) e, vendo que as recompensas eternas não tinham
proporção alguma com os leves sacrifícios da vida, quis amar, amar Jesus com
paixão, pedir-lhe mil marcas de amor, enquanto ainda podia... Copiei muitas
passagens sobre o amor-perfeito e a recepção que Deus deve fazer a seus eleitos
no momento em que Ele próprio se tornará a sua grande e eterna recompensa.
Repetia sem parar as palavras de amor que haviam abrasado o meu coração...
Celina tornara-se a confidente íntima dos meus pensamentos; desde o Natal,
podíamos compreender-nos, a distância de idade não existia mais, pois eu
tornara-me grande em tamanho e, sobretudo, em graça... Antes dessa época,
reclamava com frequência por não conhecer os segredos de Celina. Dizia-me que
eu era pequena demais, que precisaria crescer a altura de um banquinho para ela
ter confiança em mim... Gostava de subir nesse precioso banquinho quando estava
ao lado dela, e lhe dizia para falar-me intimamente, mas meu esforço era
inútil, uma distância nos separava ainda!...
Jesus queria fazer-nos avançar juntas
e, por isso, formou em nossos corações laços ainda mais fortes que os do
sangue. Tornou-nos irmãs de almas. Realizaram-se em nós essas palavras do
Cântico de são João da Cruz (falando com o Esposo, a esposa exclama):
"Seguindo vossas pegadas, as moças percorrem leves o caminho, o toque da
centelha, o vinho condimentado fazem-nas produzir aspirações divinamente
perfumadas". Sim, era com leveza que seguíamos as pegadas de Jesus, as
centelhas do amor que semeava profusamente em nossas almas, o vinho delicioso e
forte que nos dava de beber faziam desaparecer a nossos olhos as coisas
passageiras e dos nossos lábios saíam aspirações de amor inspiradas por Ele.
Como eram doces as conversações que tínhamos, toda noite, no mirante! O olhar
fixo no horizonte, observávamos a branca lua içando-se atrás das altas árvores...
os reflexos argênteos que se espalhavam sobre a natureza adormecida, as
brilhantes estrelas cintilando no azul profundo... o sopro ligeiro da brisa nocturna fazia flutuar as nuvens nevadas, tudo elevava nossas almas para o Céu,
o belo Céu do qual ainda só contemplávamos "o reverso límpido" ...
Não sei se estou enganada, mas
parece-me que a efusão das nossas almas assemelhava-se à de santa Mónica com
seu filho quando, no porto de Óstia, ficavam perdidos em êxtase à vista das
maravilhas do Criador!... Creio que recebíamos graças de uma categoria tão alta
como as concedidas aos grandes santos. Como diz a Imitação, às vezes Deus
comunica-se em meio a um vivo esplendor, outras vezes "suavemente velado,
por sombras e figuras. Era dessa última maneira que se dignava manifestar às
nossas almas, mas como era transparente e leve o véu que separava Jesus dos
nossos olhares!... A dádiva era impossível, já não havia necessidade da Fé e da
Esperança, o amor fazia-nos encontrar na terra Aquele que buscávamos.
"Tendo-o encontrado sozinho, dava-nos o seu beijo, a fim de que, no
futuro, ninguém pudesse desprezar-nos."
Graças tão grandes não haviam de ficar
sem frutos. E foram abundantes. A prática da virtude tornou-se para nós suave e
natural; no começo, o meu rosto deixava transparecer a luta, mas aos poucos
essa impressão desapareceu e a renúncia passou a ser fácil para mim, quase
espontânea. Jesus disse: "A quem possui dar-se-á mais e ficará na
abundância". Em troca de uma graça fielmente recebida, dava-me muitas
outras... Ele próprio se dava a mim na santa Comunhão mais vezes que eu teria
ousado esperar. Adoptei como regra de conduta comungar todas as vezes que fosse
autorizada pelo meu confessor e deixar a este resolver o número das minhas
comunhões, sem nunca interferir. Não tinha na época a audácia que tenho agora,
pois teria agido de outro modo. Tenho certeza de que uma alma deve dizer
claramente a seu confessor a atracção que tem para receber o seu Deus. Não é
para ficar no cibório de ouro que Ele desce do céu todos os dias'", mas
para encontrar um outro céu, infinitamente mais querido que o primeiro, o céu
da nossa alma, feito à sua imagem, o templo vivo da adorável Trindade!...
Manuscrito "A" - Parte IV
Jesus, que via meu desejo e a rectidão
do meu coração, permitiu que durante o mês de maio meu confessor me dissesse
para comungar quatro vezes por semana e, findo esse belo mês, acrescentou mais
um dia toda vez que houvesse uma festa. Doces lágrimas caíram dos meus olhos ao
sair do confessionário, parecia-me que era o próprio Jesus quem queria dar-se a
mim, pois eu ficava muito pouco tempo em confissão, nunca falava dos meus
sentimentos interiores. O caminho pelo qual andava era tão recto, tão claro, que
não precisava de outro guia que Jesus... Comparava os directores a espelhos
fiéis que reflectiam Jesus nas almas e dizia que para mim Deus não usava
intermediário, mas agia directamente!...
Quando um jardineiro cerca de cuidados
uma fruta que quer fazer amadurecer prematuramente, nunca é para deixá-la na
árvore, mas para apresentá-la numa mesa brilhantemente servida. Era com uma
intenção semelhante que Jesus prodigalizava suas graças a sua florzinha... Ele
que, nos dias da sua vida mortal, exclamava: "Pai, bendigo-vos por ter
escondido essas coisas aos sábios e aos prudentes e tê-las revelado aos
humildes", queria revelar em mim sua misericórdia, porque eu era pequena e
fraca, inclinava-se para mim, instruía-me em segredo das coisas do seu amor.
Ah! se sábios que passaram a vida estudando tivessem vindo interrogar-me, teriam,
sem dúvida, ficado espantados ao ver uma criança de 14 anos compreender os
segredos da perfeição, segredos que toda a ciência não pudera lhes revelar,
pois para possuí-los é preciso ser pobre de espírito!...
Como diz são João da Cruz em seu
cântico: "Não tinha guia nem luz, fora aquela que brilhava em meu coração,
essa luz guiava-me com mais segurança que a do meio-dia para o lugar onde me
aguardava Aquele que me conhece perfeitamente''. Esse lugar era o Carmelo.
Antes de "descansar à sombra Daquele que eu desejava", devia passar
por muitas provações, mas o chamamento divino era tão intenso que, mesmo que
tivesse de atravessar as chamas, o teria feito para ser fiel a Jesus... Para
encorajar-me em minha vocação, só encontrei uma alma, foi a da minha Madre
querida... o meu coração encontrou no dela um eco fiel e, sem ela, não teria,
sem dúvida, chegado à praia abençoada onde ela fora acolhida cinco anos antes
sobre as margens impregnadas do orvalho celeste... Sim, havia cinco anos que
estava afastada de vós, querida Madre, pensava vos ter perdido, mas no momento
da provação foi a vossa mão que me indicou o caminho a seguir... Precisava
desse alívio, pois minhas visitas ao Carmelo haviam-se tornado sempre mais
penosas, não podia falar do meu desejo de ingresso sem sentir-me rejeitada.
Achando-me jovem demais, Maria fazia tudo para impedir o meu ingresso; vós,
Madre, para pôr-me à prova, procuráveis, algumas vezes, diminuir meu ardor;
enfim, se eu não tivesse tido verdadeiramente a vocação, teria desistido logo
no início, pois encontrei obstáculos logo que comecei a responder ao chamamento
de Jesus. Não quis contar a Celina o meu desejo de entrar tão nova no Carmelo e
isso fez-me sofrer mais, pois era-me muito difícil esconder dela alguma
coisa... Esse sofrimento não durou muito tempo. Logo a minha irmãzinha querida
soube da minha determinação e, longe de tentar desviar-me do projecto, aceitou
com coragem admirável o sacrifício que Deus lhe pedia. Para compreender-lhe a
amplitude, é preciso saber até que ponto éramos unidas... era, por assim dizer,
a mesma alma que nos fazia viver; havia alguns meses que gozávamos juntas da
mais doce vida que moças pudessem almejar; tudo a nosso redor respondia aos
nossos gostos, usufruíamos da maior liberdade. Enfim, dizia que nossa vida era
o Ideal da felicidade na terra... Apenas tínhamos tido tempo de gozar desse
ideal de felicidade, e devíamos, livremente, desviar-nos dele. A minha Celina
querida não se rebelou um instante. Como não era ela que Jesus chamava em
primeiro lugar, podia ter reclamado... tendo a mesma vocação, era a vez de ela
partir!... mas, como no tempo dos mártires, os que ficavam nas prisões davam
alegremente o ósculo da paz a seus irmãos que partiam para combater na arena e
consolavam-se pensando que, talvez, fossem reservados para lutas ainda maiores.
Assim, Celina deixou a sua Teresa afastar-se e ficou sozinha para o glorioso e
sangrento combate ao qual Jesus a destinava como a privilegiada do seu amor!...
Celina passou a ser a grande
confidente das minhas lutas e dos meus sofrimentos. Tomou parte como se se
tratasse da sua própria vocação. Não receava oposição por parte dela, mas não
sabia que meios adoptar para informar a papai... Como dizer-lhe para deixar a
sua rainha ir embora depois de ter sacrificado as três mais velhas?... Ah!
quantas lutas íntimas sofri antes de sentir a coragem para lhe comunicar!...
Precisava decidir-me, ia fazer 14 anos e meio, apenas seis meses nos separavam
da bela noite de Natal em que resolvera ingressar, na mesma hora em que, no ano
anterior, tinha recebido "minha graça". Escolhi o dia de Pentecostes
para fazer a minha grande confidência e, o dia todo, supliquei aos santos
Apóstolos que intercedessem por mim, que me inspirassem as palavras... Não eram
eles, afinal, que deviam ajudar a criança tímida que Deus destinava a se tornar
o apóstolo dos apóstolos pela oração e pelo sacrifício?... Foi de tarde, na
volta das Vésperas, que encontrei a ocasião para falar com meu paizinho
querido. Tinha ido sentar à beira da cisterna e ali, de mãos juntas,
contemplava as maravilhas da natureza. O sol, cujo fogo tinha perdido o ardor,
dourava a copa das altas árvores onde os passarinhos cantavam alegremente sua
oração vesperal. A bela figura de papai tinha expressão celeste, sentia que a
paz inundava seu coração. Sem dizer uma única palavra, fui sentar-me a seu
lado, já com os olhos lacrimejantes, ele olhou-me com ternura e, pegando minha
cabeça, encostou-a no seu peito dizendo: "Que tens, minha rainhazinha?...
conte-me..." Levantando-se, como para dissimular a sua própria emoção,
andou lentamente, segurando sempre a minha cabeça no seu peito. Em meio às
minhas lágrimas, confidenciei o meu desejo de ingressar no Carmelo. Então, as
lágrimas dele vieram misturar-se às minhas, mas não disse uma palavra para
desviar-me da minha vocação, contentando-se apenas em observar que eu era ainda
muito nova para tomar uma decisão tão séria. Defendi tão bem minha causa que,
com sua natureza simples e recta, convenceu-se de que o meu desejo era o de
Deus e, na sua fé profunda, exclamou que Deus lhe fazia uma grande honra
pedindo-lhe assim suas filhas. Continuamos por longo tempo o nosso passeio.
Aliviado pela bondade com a qual meu incomparável pai tinha acolhido as
confidências, o meu coração expandia-se no dele. Papai parecia gozar dessa
alegria tranquila nascida do sacrifício aceite. Falou-me como um santo e gostaria
de lembrar-me das palavras dele a fim de escrevê-las aqui, mas conservei-as tão
sublimadas que se tornaram intraduzíveis. O que recordo perfeitamente é da
acção simbólica que meu rei querido cumpriu sem o perceber. Aproximando-se de
um muro baixo, mostrou-me florzinhas brancas semelhantes a lírios em miniatura
e, colhendo uma dessas flores, entregou-a a mim, explicando o cuidado com que
Deus a fizera e a conservara até aquele momento; ouvindo-o falar, pensava ouvir
a minha história, tal era a semelhança entre o que Jesus fizera a sua florzinha
e a Teresinha... Recebi essa florzinha como uma relíquia e vi que, ao colhê-la,
papai arrancara as raízes todas sem quebrar uma. Parecia destinada a viver
ainda, numa outra terra, mais fértil que o tenro limo onde vivera suas
primeiras manhãs... Era essa mesma acção que papai acabava de fazer para mim
alguns instantes antes, permitindo-me subir a montanha do Carmelo e deixar o
manso vale testemunho dos meus primeiros passos na vida.
(cont.)
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