Evangelho: Jo 20, 1. 11-18
No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao
sepulcro, de manhã, sendo ainda escuro, e viu a pedra retirada do sepulcro.
11 Entretanto, Maria estava da parte de fora do
sepulcro a chorar. Enquanto chorava, inclinou-se para o sepulcro 12 e viu dois
anjos vestidos de branco, sentados no lugar onde fora posto o corpo de Jesus,
um à cabeceira e outro aos pés. 13 Eles disseram-lhe: «Mulher, porque choras?».
Respondeu-lhes: «Porque levaram o meu Senhor e não sei onde O puseram». 14
Ditas estas palavras, voltou-se para trás e viu Jesus de pé, mas não sabia que
era Jesus. 15 Jesus disse-lhe: «Mulher, porque choras? A quem procuras?». Ela,
julgando que era o hortelão, disse-Lhe: «Senhor, se tu O levaste, diz-me onde O
puseste; eu irei buscá-l'O». 16 Jesus disse-lhe: «Maria!». Ela, voltando-se,
disse-Lhe em hebreu: «Rabboni!», 17 Jesus disse-lhe: «Não Me retenhas, porque
ainda não subi para Meu Pai; mas vai a Meus irmãos e diz-lhes que subo para Meu
Pai e vosso Pai, para Meu Deus e vosso Deus». 18 Foi Maria Madalena anunciar
aos discípulos: «Vi o Senhor!», e as coisas que Ele lhe disse.
Comentário:
A Madalena
reconheceu Jesus pela voz, que tão bem conhecia.
E, nós? Como o
reconheceremos?
Por vezes, talvez
demasiadas vezes, não reconhecemos Jesus naquele que está junto de nós e, no
entanto, qualquer ser humano é feito à Sua imagem e semelhança.
Quer dizer que, em
cada pessoa podemos – e devemos – ver Cristo, esse mesmo Cristo que procuramos
afanosamente, esperando um sinal que nos indique que é Ele mesmo.
(ama, comentário sobre Jo 20, 11-18,
2013.07.22)
Leitura espiritual
Documentos do Magistério
CONGREGAÇÃO
PARA A DOUTRINA DA FÉ
A MENSAGEM DE FÁTIMA
…/4
O
«SEGREDO» DE FÁTIMA
COMENTÁRIO
TEOLÓGICO 2
Neste contexto, torna-se
agora possível compreender correctamente o conceito de «revelação privada», que
se aplica a todas as visões e revelações verificadas depois da conclusão do
Novo Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de
Fátima. Ouçamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica sobre isto também: «No
decurso dos séculos tem havido revelações ditas “privadas”, algumas das quais
foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...)
“completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais
plenamente numa determinada época da história» (n. 67). Isto deixa claro duas
coisas:
1. A autoridade das
revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública: esta
exige a nossa fé; de facto, nela, é o próprio Deus que nos fala por meio de
palavras humanas e da mediação da comunidade viva da Igreja. A fé em Deus e na
sua Palavra é distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza
de que é Deus que fala, cria em mim a segurança de encontrar a própria verdade;
uma certeza assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de
conhecimento. É sobre tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao
morrer.
2. A revelação privada é
um auxílio para esta fé, e manifesta-se credível precisamente porque faz apelo
à única revelação pública. O Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento
XIV, afirma a tal propósito num tratado clássico, que se tornou normativo a
propósito das beatificações e canonizações: «A tais revelações aprovadas não é
devida uma adesão de fé católica; nem isso é possível. Estas revelações
requerem, antes, uma adesão de fé humana ditada pelas regras da prudência, que
no-las apresentam como prováveis e religiosamente credíveis». O teólogo
flamengo E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma sinteticamente
que a aprovação eclesial duma revelação privada contém três elementos: que a
respectiva mensagem não contém nada em contraste com a fé e os bons costumes,
que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam autorizados a prestar-lhe
de forma prudente a sua adesão [E. Dhanis, Sguardo su Fatima e bilancio di una
discussione, em: La Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente
397]. Tal mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o
Evangelho na hora actual; por isso, não se deve transcurar. É uma ajuda que é
oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir
a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio
Cristo. Quando se afasta d'Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar
por outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então
ela certamente não provém do Espírito Santo, que nos guia no âmbito do
Evangelho e não fora dele. Isto não exclui que uma revelação privada realce
novos aspectos, faça surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue
antigas. Mas, em tudo isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a
esperança e a caridade, que são, para todos, o caminho permanente da salvação.
Podemos acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade
popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas.
Isto não exclui que aquelas tenham influência também na própria liturgia, como
o demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado Coração de
Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se afirmar que, na relação entre
liturgia e piedade popular, está delineada a relação entre revelação pública e
revelações privadas: a liturgia é o critério, a forma vital da Igreja no seu
conjunto alimentada directamente pelo Evangelho. A religiosidade popular significa
que a fé cria raízes no coração dos diversos povos, entrando a fazer parte do
mundo da vida quotidiana. A religiosidade popular é a primeira e fundamental
forma de «inculturação» da fé, que deve continuamente deixar-se orientar e
guiar pelas indicações da liturgia, mas que, por sua vez, a fecunda a partir do
coração.
Desta forma, passámos já
das especificações mais negativas, e que eram primariamente necessárias, à
definição positiva das revelações privadas: Como podem classificar-se de modo
correcto a partir da Escritura? Qual é a sua categoria teológica? A carta mais
antiga de S. Paulo que nos foi conservada e que é também o mais antigo escrito
do Novo Testamento, a primeira Carta aos Tessalonicenses, parece-me oferecer
uma indicação. Lá, diz o Apóstolo: «Não extingais o Espírito, não desprezeis as
profecias. Examinai tudo e retende o que for bom» (5, 19-21). Em todo o tempo é
dado à Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de ser examinado, não
pode ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia,
no sentido da Bíblia, não significa predizer o futuro, mas aplicar a vontade de
Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro.
Aquele que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que
deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda da cegueira da
vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de Deus enquanto exigência e
indicação para o presente. Neste caso, a predição do futuro tem uma importância
secundária; o essencial é a actualização da única revelação, que me diz
respeito profundamente: a palavra profética ora é advertência ora consolação,
ou então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste sentido, pode-se relacionar o
carisma da profecia com a noção «sinais do tempo», redescoberta pelo Vaticano II:
«Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis
interpretar o tempo presente?» (Lc 12, 56). Por «sinais do tempo», nesta
palavra de Jesus, deve-se entender o seu próprio caminho, Ele mesmo.
Interpretar os sinais do tempo à luz da fé significa reconhecer a presença de
Cristo em cada período de tempo. Nas revelações privadas reconhecidas pela
Igreja — e portanto na de Fátima —, trata-se disto mesmo: ajudar-nos a
compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a justa resposta para os
mesmos.
A estrutura antropológica
das revelações privadas
Tendo nós procurado, com
estas reflexões, determinar o lugar teológico das revelações privadas, devemos
agora, ainda antes de nos lançarmos numa interpretação da mensagem de Fátima,
esclarecer, embora brevemente, o seu carácter antropológico (psicológico). A
antropologia teológica distingue, neste âmbito, três formas de percepção ou
«visão»: a visão pelos sentidos, ou seja, a percepção externa corpórea; a
percepção interior; e a visão espiritual (visio sensibilis, imaginativa,
intellectualis). É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc, não se trata
da percepção externa normal dos sentidos: as imagens e as figuras vistas não se
encontram fora no espaço circundante, como está lá, por exemplo, uma árvore ou
uma casa. Isto é bem evidente, por exemplo, no caso da visão do inferno
(descrita na primeira parte do «segredo»
de Fátima) ou então na visão descrita na terceira parte do «segredo»,
mas pode-se facilmente comprovar também noutras visões, sobretudo porque não
eram captadas por todos os presentes, mas apenas pelos «videntes». De igual
modo, é claro que não se trata duma «visão» intelectual sem imagens, como
acontece nos altos graus da mística. Trata-se, portanto, da categoria
intermédia, a percepção interior que, para o vidente, tem uma força de presença
tal que equivale à manifestação externa sensível.
Este ver interiormente não
significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da
imaginação subjectiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de
algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o
não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos «sentidos
internos». Trata-se de verdadeiros «objectos» que tocam a alma, embora não pertençam
ao mundo sensível que nos é habitual. Por isso, exige-se uma vigilância
interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa da
forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que enchem a
alma. A pessoa é levada para além da pura exterioridade, onde é tocada por
dimensões mais profundas da realidade que se lhe tornam visíveis. Talvez assim
se possa compreender por que motivo os destinatários preferidos de tais aparições
sejam precisamente as crianças: a sua alma ainda está pouco alterada, e quase
intacta a sua capacidade interior de percepção. «Da boca dos pequeninos e das
crianças de peito recebeste louvor»: esta foi a resposta de Jesus — servindo-se
duma frase do Salmo 8 (v. 3) — à crítica dos sumos-sacerdotes e anciãos, que
achavam inoportuno o grito hossana das crianças (Mt 21, 16).
Como dissemos, a «visão
interior» não é fantasia, mas uma verdadeira e própria maneira de verificação.
Fá-lo, porém, com as limitações que lhe são próprias. Se, na visão exterior, já
interfere o elemento subjectivo, isto é, não vemos o objecto puro mas este
chega-nos através do filtro dos nossos sentidos que têm de operar um processo
de tradução; na visão interior, isso é ainda mais claro, sobretudo quando se
trata de realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte. O sujeito,
o vidente, tem uma influência ainda mais forte; vê segundo as próprias
capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que
lhe são acessíveis. Na visão interior, há, de maneira ainda mais acentuada que
na exterior, um processo de tradução, desempenhando o sujeito uma parte
essencial na formação da imagem daquilo que aparece. A imagem pode ser captada
apenas segundo as suas medidas e possibilidades. Assim, tais visões não são em
caso algum a «fotografia» pura e simples do Além, mas trazem consigo também as
possibilidades e limitações do sujeito que as apreende.
Isto é patente em todas as
grandes visões dos Santos; naturalmente vale também para as visões dos
pastorinhos de Fátima. As imagens por eles delineadas não são de modo algum
mera expressão da sua fantasia, mas fruto duma percepção real de origem
superior e íntima; nem se hão-de imaginar como se por um instante se tivesse
erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua essencialidade pura,
como esperamos vê-lo na união definitiva com Deus. Poder-se-ia dizer que as
imagens são uma síntese entre o impulso vindo do Alto e as possibilidades
disponíveis para o efeito por parte do sujeito que as recebe, isto é, das
crianças. Por tal motivo, a linguagem feita de imagens destas visões é uma
linguagem simbólica. Sobre isto, diz o Cardeal Sodano: «Não descrevem de forma
fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam
sobre a mesma linha de fundo factos que se prolongam no tempo numa sucessão e
duração não especificadas». Esta sobreposição de tempos e espaços numa única
imagem é típica de tais visões, que, na sua maioria, só podem ser decifradas a
posteriori. E não é necessário que cada elemento da visão tenha de possuir uma
correspondência histórica concreta. O que conta é a visão como um todo, e a
partir do conjunto das imagens é que se devem compreender os detalhes. O que
efectivamente constitui o centro duma imagem só pode ser desvendado, em última
análise, a partir do que é o centro absoluto da «profecia» cristã: o centro é o
ponto onde a visão se torna apelo e indicação da vontade de Deus.
Uma
tentativa de interpretação do «segredo» de Fátima
A primeira e a segunda
parte do «segredo» de Fátima foram já discutidas tão amplamente por específicas
publicações, que não necessitam de ser ilustradas novamente aqui. Queria apenas
chamar brevemente a atenção para o ponto mais significativo. Os pastorinhos
experimentaram, durante um instante terrível, uma visão do inferno. Viram a
queda das «almas dos pobres pecadores». Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo
qual tiveram de passar por esse instante: para «salvá-las» — para mostrar um
caminho de salvação. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de Pedro
que diz: «Estais certos de obter, como prémio da vossa fé, a salvação das
almas» (1, 9). Como caminho para se chegar a tal objectivo, é indicado de modo
surpreendente para pessoas originárias do ambiente cultural anglo-saxónico e
germânico - a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para compreender isto,
deveria bastar uma breve explicação. O termo «coração», na linguagem da Bíblia,
significa o centro da existência humana, uma confluência da razão, vontade,
temperamento e sensibilidade, onde a pessoa encontra a sua unidade e orientação
interior. O «coração imaculado» é, segundo o evangelho de Mateus (5, 8), um
coração que a partir de Deus chegou a uma perfeita unidade interior e,
consequentemente, «vê a Deus». Portanto, «devoção» ao Imaculado Coração de
Maria é aproximar-se desta atitude do coração, na qual o fiat — «seja feita a
vossa vontade» — se torna o centro conformador de toda a existência. Se
porventura alguém objectasse que não se deve interpor um ser humano entre nós e
Cristo, lembre-se de que Paulo não tem medo de dizer às suas comunidades:
«Imitai-me» (cf. 1 Cor 4, 16; Fil 3, 17; 1 Tes 1, 6; 2 Tes 3, 7.9). No
Apóstolo, elas podem verificar concretamente o que significa seguir Cristo.
Mas, com quem poderemos nós aprender sempre melhor do que com a Mãe do Senhor?
Chegamos assim finalmente
à terceira parte do «segredo» de Fátima, publicado aqui pela primeira vez
integralmente. Como resulta da documentação anterior, a interpretação dada pelo
Cardeal Sodano, no seu texto do dia 13 de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente
à Irmã Lúcia. A propósito, ela começou por observar que lhe foi dada a visão,
mas não a sua interpretação. A interpretação, dizia, não compete ao vidente,
mas à Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a Irmã Lúcia disse que
tal interpretação corresponde àquilo que ela mesma tinha sentido e que, pela
sua parte, reconhecia essa interpretação como correcta. Sendo assim,
limitar-nos-emos, naquilo que vem a seguir, a dar de forma profunda um
fundamento à referida interpretação, partindo dos critérios anteriormente
desenvolvidos.
Do mesmo modo que tínhamos
indentificado, como palavra-chave da primeira e segunda parte do «segredo», a
frase «salvar as almas», assim agora a palavra-chave desta parte do «segredo» é
o tríplice grito: «Penitência, Penitência, Penitência!» Volta-nos ao pensamento
o início do Evangelho: «Pænitemini et credite evangelio» (Mc 1, 15). Perceber
os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da
conversão, da fé. Tal é a resposta justa a uma época histórica caracterizada
por grandes perigos, que serão delineados nas sucessivas imagens. Deixo aqui
uma recordação pessoal: num colóquio que a Irmã Lúcia teve comigo, ela disse-me
que lhe parecia cada vez mais claramente que o objectivo de todas as aparições
era fazer crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade; tudo o mais
pretendia apenas levar a isso.
Examinemos agora mais de
perto as diversas imagens. O anjo com a espada de fogo à esquerda da Mãe de
Deus lembra imagens análogas do Apocalipse: ele representa a ameaça do juízo
que pende sobre o mundo. A possibilidade que este acabe reduzido a cinzas num
mar de chamas, hoje já não aparece de forma alguma como pura fantasia: o
próprio homem preparou, com suas invenções, a espada de fogo. Em seguida, a
visão mostra a força que se contrapõe ao poder da destruição: o brilho da Mãe
de Deus e, de algum modo proveniente do mesmo, o apelo à penitência. Deste
modo, é sublinhada a importância da liberdade do homem: o futuro não está de
forma alguma determinado imutavelmente, e a imagem vista pelos pastorinhos não
é, absolutamente, um filme antecipado do futuro, do qual já nada se poderia
mudar. Na realidade, toda a visão acontece só para chamar em campo a liberdade
e orientá-la numa direcção positiva. O sentido da visão não é, portanto, o de
mostrar um filme sobre o futuro, já fixo irremediavelmente; mas exactamente o
contrário: o seu sentido é mobilizar as forças da mudança em bem. Por isso, há
que considerar completamente extraviadas aquelas explicações fatalistas do
«segredo» que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de 13 de Maio de 1981
teria sido, em última análise, um instrumento do plano divino predisposto pela
Providência e, por conseguinte, não poderia ter agido livremente, ou outras
ideias semelhantes que por aí andam. A visão fala sobretudo de perigos e do
caminho para salvar-se deles.
As frases seguintes do
texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o carácter simbólico da
visão: Deus permanece o incomensurável e a luz que está para além de qualquer
visão nossa. As pessoas humanas são vistas como que num espelho. Devemos ter
continuamente presente esta limitação inerente à visão, cujos confins estão
aqui visivelmente indicados. O futuro é visto apenas «como que num espelho, de
maneira confusa» (cf. 1 Cor 13, 12). Consideremos agora as diversas imagens que
se sucedem no texto do «segredo». O lugar da acção é descrito com três
símbolos: uma montanha íngreme, uma grande cidade meia em ruínas e finalmente
uma grande cruz de troncos toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da
história humana: a história como árdua subida para o alto, a história como
lugar da criatividade e convivência humana e simultaneamente de destruições
pelas quais o homem aniquila a obra do seu próprio trabalho. A cidade pode ser
lugar de comunhão e progresso, mas também lugar do perigo e da ameaça mais
extrema. No cimo da montanha, está a cruz: meta e ponto de orientação da
história. Na cruz, a destruição é transformada em salvação; ergue-se como sinal
da miséria da história e como promessa para a mesma.
Aparecem lá, depois,
pessoas humanas: o Bispo vestido de branco («tivemos o pressentimento que era o
Santo Padre»), outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e, finalmente,
homens e mulheres de todas as classes e posições sociais. O Papa parece
caminhar à frente dos outros, tremendo e sofrendo por todos os horrores que o
circundam. E não são apenas as casas da cidade que jazem meio em ruínas; o seu
caminho é ladeado pelos cadáveres dos mortos. Deste modo, o caminho da Igreja é
descrito como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violência,
destruições e perseguições. Nesta imagem, pode-se ver representada a história
dum século inteiro. Tal como os lugares da terra aparecem sinteticamente
representados nas duas imagens da montanha e da cidade e estão orientados para
a cruz, assim também os tempos são apresentados de forma contraída: na visão,
podemos reconhecer o século vinte como século dos mártires, como século dos
sofrimentos e perseguições à Igreja, como o século das guerras mundiais e de
muitas guerras locais que ocuparam toda a segunda metade do mesmo, tendo feito
experimentar novas formas de crueldade. No «espelho» desta visão, vemos passar
as testemunhas da fé de decénios. A este respeito, é oportuno mencionar uma
frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu ao Santo Padre no dia 12 de Maio de
1982: «A terceira parte do “segredo” refere-se às palavras de Nossa Senhora:
“Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e
perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que
sofrer, várias nações serão aniquiladas”».
Na Via Sacra deste século,
tem um papel especial a figura do Papa. Na árdua subida da montanha, podemos
sem dúvida ver figurados conjuntamente diversos Papas, começando de Pio X até
ao Papa actual, que partilharam os sofrimentos deste século e se esforçaram por
avançar, no meio deles, pelo caminho que leva à cruz. Na visão, também o Papa é
morto na estrada dos mártires. Não era razoável que o Santo Padre, quando,
depois do atentado de 13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira
parte do «segredo», tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve muito
perto da fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvação com as
palavras seguintes: «Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o
Papa agonizante deteve-se no limiar da morte» (13 de Maio de 1994). O facto de
ter havido lá uma «mão materna» que desviou a bala mortífera demonstra uma vez
mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são forças que
podem influir na história e que, em última análise, a oração é mais forte que
as balas, a fé mais poderosa que os exércitos.
A conclusão do «segredo»
lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo
deriva de antigas intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar
permeável à força sanificante de Deus uma história de sangue e de lágrimas.
Anjos recolhem, sob os braços da cruz, o sangue dos mártires e com ele regam as
almas que se aproximam de Deus. O sangue de Cristo e o sangue dos mártires são
vistos aqui juntos: o sangue dos mártires escorre dos braços da cruz. O seu
martírio realiza-se solidariamente com a paixão de Cristo, identificando-se com
ela. Eles completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos seus
sofrimentos (cf. Col 1, 24). A sua própria vida tornou-se eucaristia,
inserindo-se no mistério do grão de trigo que morre e se torna fecundo. O
sangue dos mártires é semente de cristãos, disse Tertuliano. Tal como nasceu a
Igreja da morte de Cristo, do seu lado aberto, assim também a morte das
testemunhas é fecunda para a vida futura da Igreja. Deste modo, a visão da
terceira parte do «segredo», tão angustiante ao início, termina numa imagem de
esperança: nenhum sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja sofredora, uma
Igreja dos mártires torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus.
Não se trata apenas de ver os que sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como
Lázaro, que encontrou a grande consolação e misteriosamente representa Cristo,
que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro; mas há algo mais: do sofrimento das
testemunhas deriva uma força de purificação e renovamento, porque é a
actualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a
sua eficácia salvífica.
Chegamos assim a uma
última pergunta: O que é que significa no seu conjunto (nas suas três partes) o
«segredo» de Fátima? O que é nos diz a nós? Em primeiro lugar, devemos supor,
como afirma o Cardeal Sodano, que «os acontecimentos a que faz referência a terceira
parte do “segredo” de Fátima parecem pertencer já ao passado». Os diversos
acontecimentos, na medida em que lá são representados, pertencem já ao passado.
Quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do
mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima
não oferece tais satisfações à nossa curiosidade, como, aliás, a fé cristã em
geral que não pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O que
permanece — dissemo-lo logo ao início das nossas reflexões sobre o texto do
«segredo» — é a exortação à oração como caminho para a «salvação das almas», e
no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.
Queria, no fim, tomar uma
vez mais outra palavra-chave do «segredo» que justamente se tornou famosa: «O
meu Imaculado Coração triunfará». Que significa isto? Significa que este
Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que
as pistolas ou outras armas de qualquer espécie. O fiat de Maria, a palavra do
seu Coração, mudou a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador:
graças àquele «Sim», Deus pôde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece
para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo
continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade se deixa continuamente
desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um coração humano e deste
modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o
mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então, está expresso nesta
frase: «No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o mundo» (Jo
16, 33). A mensagem de Fátima convida a confiar nesta promessa.
Joseph
Card. Ratzinger
Prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé
_____________________
Notas:
Texto
original:
(8)
Na transcrição, respeitou-se o texto original mesmo quando havia erros e
imprecisões de escrita e pontuação, os quais, aliás, não impedem a compreensão
daquilo que a vidente quis dizer.
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