Tempo comum Semana XII
Nascimento de São
João Baptista
Evangelho: Lc 1, 57-66. 80
7 Completou-se para Isabel o tempo de
dar à luz e deu à luz um filho. 58 Os seus vizinhos e parentes
ouviram falar da graça que o Senhor lhe tinha feito e congratulavam-se com ela.
59 Aconteceu que, ao oitavo dia, foram circuncidar o menino e
chamavam-lhe Zacarias, do nome do pai. 60 Interveio, porém, sua mãe
e disse: «Não; mas será chamado João». 61 Disseram-lhe: «Ninguém há
na tua família que tenha este nome». 62 E perguntavam por acenos ao
pai como queria que se chamasse. 63 Ele, pedindo uma tabuinha,
escreveu assim: «O seu nome é João». Todos ficaram admirados.64 E
logo se abriu a sua boca, soltou-se a língua e falava bendizendo a Deus. 65
O temor se apoderou de todos os seus vizinhos, e divulgaram-se todas estas
maravilhas por todas as montanhas da Judeia. 66 Todos os que as
ouviram as ponderavam no seu coração, dizendo: «Quem virá a ser este menino?».
Porque a mão do Senhor estava com ele.
80 Ora o menino crescia e se fortificava
no espírito. E habitou nos desertos até ao dia da sua manifestação a Israel.
Comentário:
Sendo João da mesma idade de Jesus Cristo – apenas com
seis meses de diferença – verificamos que passou os primeiros trinta anos da
sua vida «habitando os desertos».
Tal como Aquele cujo caminho vem preparar, a
preparação do que lhe está cometido necessita de um longo tempo de
recolhimento.
Ao contrário, Jesus Cristo, vive esses mesmos trinta
anos no seio da família, actuando como qualquer jovem e, depois, homem vulgar e
corrente na pequena sociedade da Sua terra de origem.
Poderíamos então dizer que, João, é alguém muito
especial que escolhe viver afastado da sociedade, num retiro voluntário. O que
o espera é de tal forma grande e extraordinário que não pode deixar de ser
assim e, acresce, que não quer que durante esse tempo, as pessoas acorram a ele
porque o seu papel é de absoluta discrição e anonimato.
A PAZ NA FAMÍLIA
…/5
SITUAÇÃO
OU VOCAÇÃO
É inútil tentar resolver
essa “incapacidade de fazer família” com panos quentes:
assessoramento
psiquiátrico (fora de casos patológicos), aprendizado das dez “técnicas” de convívio
feliz publicadas – com a costumeira superficialidade – pelas revistas do
coração.
A solução, a única
solução, está em algo de muito mais profundo. Não há, em muitos rapazes e
moças, capacidade de “fazer família”, porque se perdeu a noção do que “é a
família”. Não há capacidade de criar amor familiar, porque se perdeu a noção do
verdadeiro amor. Não há capacidade de conseguir, no lar, um clima de bondade,
paciência, serenidade, alegria, caridade e paz, porque todos esses valores
positivos são virtudes ou fruto das virtudes e, hoje, a maioria das pessoas, em
vez de aprenderem virtudes, passam os anos a aprender interesses e
conveniências. Entram, assim, nas lutas da vida como um combatente moralmente
desarmado.
Que é, afinal, a família?
Hoje, mais do que nunca, é
preciso fazer ressoar, com a força de uma verdade jubilosa e de um apelo
premente, que o casamento e a família não são uma situação, nem uma solução,
mas uma vocação e uma missão.
Uma situação. Uma solução.
É assim que muitos dos que ainda concedem algum papel ao casamento e à família
costumam considerá-los. “Eu – pensam eles – situo-me profissionalmente,
situo-me familiarmente, e tento manter nos dois campos, enquanto for conveniente
para mim, a situação que, no momento, vejo como a solução mais conveniente”.
A família não é isso. É
algo muito maior. Para compreendê-la, escutemos uma das vozes que têm
proclamado com maior clareza o sentido divino, cristão, do casamento e da família.
Refiro-me ao Bem-aventurado Josemaría Escrivá. Contemplando ele, sob o foco luminoso
da fé, o sentido da existência humana, dizia: “Para que estamos no mundo?
Para amar a Deus com todo
o nosso coração e com toda a nossa alma, e para estender esse amor a todas as
criaturas [...]. Deus não deixa nenhuma alma abandonada a um destino cego; para
todas tem um desígnio, a todas chama com uma vocação pessoalíssima, intransferível”.
Também “o matrimónio é
caminho divino, é vocação” 7.
Esta afirmação categórica
– “o matrimónio é vocação” – feita por Mons. Escrivá já desde os começos dos
anos trinta, surpreendia e desconcertava, de início, os seus ouvintes.
Depois, quando penetravam
nessa verdade e lhe descobriam as consequências, deslumbrava-os e rasgava-lhes
empolgantes horizontes de vida.
“Há quase quarenta anos –
dizia o Bem-aventurado, em 1968 – que venho pregando o sentido vocacional do matrimónio.
Que olhos cheios de luz vi mais de uma vez quando – julgando eles e elas
incompatíveis na sua vida a entrega a Deus e um amor humano nobre e limpo – me
ouviam dizer que o matrimónio é um caminho divino na terra!”
Se o matrimónio é uma
vocação, quer dizer que é uma chamada de Deus para “algo”, ou seja, que é um
apelo divino para o cumprimento de uma missão. Ilustrando essa verdade, na
mesma ocasião, o Beato Josemaría continuava a dizer: “O matrimónio existe para
que aqueles que o contraem se santifiquem nele e santifiquem através dele: para
isso os cônjuges têm uma graça especial, conferida pelo sacramento instituído
por Jesus Cristo.
Quem é chamado ao estado
matrimonial encontra nesse estado – com a graça de Deus – tudo o que necessita
para ser santo, para se identificar cada dia mais com Jesus Cristo e para levar
ao Senhor as pessoas com quem convive.
“Por isso penso sempre com
esperança e com carinho nos lares cristãos, em todas as famílias que brotaram
do Sacramento do Matrimónio, que são testemunhos luminosos desse grande
mistério divino – Sacramentum magnum! (Ef 5, 32), sacramento grande – da união
e do amor entre Cristo e a sua Igreja. Devemos trabalhar para que essas células
cristãs da sociedade nasçam e se desenvolvam com ânsia de santidade [...]. Os
esposos cristãos devem ter consciência de que são chamados a santificar-se
santificando, de que são chamados a ser apóstolos, e de que o seu primeiro
apostolado está no lar. Devem compreender a obra sobrenatural que supõe a
fundação de uma família, a educação dos filhos, a irradiação cristã na
sociedade. Desta consciência da própria missão dependem, em grande parte, a
eficácia e o êxito da sua vida: a sua felicidade” 8.
VOCAÇÃO DIVINA, VOCAÇÃO DE
AMOR
“Compreender a obra
sobrenatural que supõe a fundação de uma família”, ter “consciência da própria
missão”.
Para muitas moças e
rapazes, frases como as que acabamos de ler devem parecer-lhes belas palavras
ou sonhos irreais. E, no entanto, desses ideais sobre o casamento e a família,
que eles ainda não entendem, “dependem, em grande parte, a eficácia e o êxito
da sua vida: a sua felicidade”.
O casamento e a família,
como qualquer outra vocação, significam para um cristão um chamamento pessoal
de Cristo, um apelo para segui-Lo.
Se alguém quiser vir após
mim – diz Jesus Cristo –, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt
16, 24). Estamos nos antípodas do utilitarismo egoísta. Em vez de dizer:
“Procure-se a si mesmo,
realize-se a si mesmo”, diz-nos: “Não pense em si, doe-se generosamente”.
Esse apelo à renúncia e ao
esquecimento próprio não é, absolutamente, uma tristonha anulação da
personalidade, nem um abafamento da alegria de viver. É exatamente o contrário:
as palavras de Cristo estão a mostrar-nos o rosto do amor. E o amor é a seiva vivificante
da família.
Será preciso lembrar que o
amor cristão se formula assim: Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei (Jo 13,
34)? Será que há alguma dúvida sobre como Ele, Cristo, nos amou? Ninguém tem
maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos (Jo 15, 13).
Com Cristo, um amor
inédito entrou no mundo, um amor que o mundo pagão desconhecia totalmente. Era
um amor à medida do Amor de Deus, que os cristãos designaram com uma palavra
nova: “agápe”, em grego; “caritas” – caridade –, em latim. Era um amor à imagem
e semelhança do amor de Cristo.
O que fizemos desse amor?
No mundo de hoje, é
preciso reaprendê-lo; é urgente – para todos, mas especialmente para os jovens
– redescobrir a beleza inefável do Amor com maiúscula, que vem de Deus (1 Jo
44, 7). A nossa alma tem uma necessidade vital de experimentar o deslumbramento
feliz de São João, quando exclamava: Nisto conhecemos o amor: em que Jesus deu
a sua vida por nós, e também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos (1 Jo
3, 16). Desse João Apóstolo que, com quase cem anos de idade, acrescentava, extasiado:
Nós conhecemos o amor de Deus e acreditamos nele!... Se Deus nos amou assim, também
nós nos devemos amar-nos uns aos outros (1 Jo 4, 11.16).
Não duvidemos: é aí, e
somente aí, nas profundezas do amor cristão, que finca as suas raízes a paz
familiar.
A SABEDORIA DE SÃO TOMÁS
Antes de terminar esta
panorâmica – “a família em perspectiva” –, talvez valha a pena acrescentar
ainda, como complemento útil, umas breves reflexões. São considerações que
procedem de boa fonte, de São Tomás de Aquino.
Na sua Suma Teológica, a
certa altura, o santo doutor, na esteira de Aristóteles, formula várias
perguntas sobre o amor e – como se estivesse a dizer a coisa mais óbvia do mundo
– escreve que há dois tipos de amor:
Um é o que chama amor de
concupiscência (que não significa só o amor sexual, pois a palavra latina
concupiscentia designa os desejos em geral). Dá-se esse amor quando “em vez de
querer o bem de quem amamos, queremos que ele seja um bem para nós, como quando
dizemos que amamos o vinho ou um cavalo...” São Tomás parece brincar, mas fala com
a maior seriedade. Não sei se o que vou dizer não será rude demais, mas creio
que o amante egoísta, descrito nas páginas anteriores, encara a esposa – ou o
marido, ou os filhos, ou os pais – com a mesma mentalidade com que degusta um
vinho ou experimenta o trote de um cavalo.
O outro tipo de amor –
acrescenta São Tomás – é o que se chama amor de amizade.
“Não é – diz – um amor
qualquer, mas o amor que possui a benevolência, isto é, o amor que existe
quando amamos alguém de tal maneira que queremos o seu bem” 9.
Pronto. Poucas palavras
para enormes verdades. Há um amor que busca só o bem e o interesse próprios. Há
outro amor que busca e trabalha pelo bem da pessoa amada. Este último – amor de
amizade –, vivificado pela capacidade de querer que nos infunde o Espírito Santo
(cf. Rom 5, 5), é o amor cristão. E é só com esse tipo de amor que se faz, de
verdade, família e nela se consegue a paz.
Enquanto escrevo estas
últimas linhas, vem-me ao pensamento – e comove-me novamente – a lembrança de
um casal amigo, excelentes pessoas, unidas e fiéis após longos anos de
convívio. Com uma lucidez plácida e simples, o marido, bom cristão, dizia-me:
“O senhor sabe? Depois de
tantos anos, cheguei à conclusão de que o amor entre marido e mulher só é amor
mesmo quando os dois se tornam amigos, quando são dois bons amigos.
O verdadeiro amor é
amizade”.
E, com isto, finalizamos a
nossa digressão sobre a “família em perspectiva”.
As considerações gerais
que acabamos de fazer serão o ponto de partida para as que faremos a seguir
comentando atitudes e gestos concretos que, brotando do amor, podem construir a
paz familiar.
(CONT.)
___________________________
Notas:
(7)
Josemaría Escrivá, Questões atuais do cristianismo, 3a. ed., Quadrante, São
Paulo, 1986, n. 106;
(8)
ibid., n. 91; ver também, do mesmo autor, a homilia O Matrimónio, vocação
cristã, em É Cristo que passa, 2a. ed., Quadrante, São Paulo, 1975, ns. 22-30;
(9)
São Tomás de Aquino, Suma teológica, II-II, q. XXIII, art. 1, concl.;
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