Tempo comum XII Semana
Evangelho: Mt 7, 1-5
«Não julgueis, para que
não sejais julgados; 2 pois, segundo o juízo com que julgardes,
sereis julgados; e com a medida com que medirdes, vos medirão também a vós.3
Porque olhas tu para a palha que está no olho de teu irmão, e não notas a trave
no teu olho? 4 Como ousas dizer a teu irmão: Deixa-me tirar-te do
olho uma palha, tendo tu uma trave no teu? 5 Hipócrita, tira
primeiro a trave do teu olho, e então verás para tirar a palha do olho de teu
irmão.
Comentário:
Palhas
e traves, coisas pequenas e coisas grandes, nos outros os defeitos são sempre
muito maiores que os nossos ao passo que as virtudes que possuímos são sempre
maiores que as dos outros.
Usamos
sempre as lentes de aumento para os erros dos outros e para as virtudes que
julgamos ter.
Assim,
a nossa visão é desfocada, impede-nos de ver a realidade e, por isso nos
deixamos dominar pelo amor-próprio.
Peçamos
ao Senhor a graça de uma visão justa e equilibrada.
A PAZ NA FAMÍLIA
…/4
A FAMÍLIA EM PERSPECTIVA
EGOÍSMO E REALIZAÇÃO
Como acabamos de ver, o
egoísmo é o rumo errado da família. Sob a tirania do “eu”, a paz familiar
torna-se impossível.
À primeira vista, essa
afirmação parece óbvia, sobretudo depois de termos contemplado os efeitos
devastadores do egoísmo no lar. No entanto, para muitas pessoas, não parece tão
óbvia assim.
Por que o egoísmo haveria
de ser o rumo errado do casamento e da família? É um fato incontestável que um
número elevadíssimo de pessoas julga hoje, na prática, que o egoísmo não só não
é errado, como é e deve ser o rumo natural da vida familiar e da vida em geral.
Só que, em vez de falarem em egoísmo, falam em realização. Detestam a palavra egoísmo
e adoram a palavra realização. Há, porém, um pequeno detalhe: dentro da sua filosofia
de vida, egoísmo e realização significam exatamente a mesma coisa.
Para a maioria das
pessoas, com efeito, o casamento, a família – algum tipo de família –, faz
parte importante do seu programa de realização pessoal. É natural que os jovens
pensem no futuro e planejem o que julgam que os poderá “realizar”,
trazendo-lhes bem-estar, crescimento, auto-estima e felicidade. Propõem-se,
para isso, umas metas profissionais, e também a meta de um amor humano, da constituição
de uma família que encarne os seus sonhos e aspirações.
Até aqui, não há nada a
objectar. Acontece, contudo, que esses rapazes e moças – sem nem darem por isso
– situam a família dentro de um programa de realização pessoal que está viciado
na sua própria raiz pela mentalidade materialista, característica do mundo actual.
Cada vez mais, o mundo
desliza para uma civilização utilitarista e hedonista, que entende a realização
do indivíduo como o máximo acúmulo de benefícios úteis e de prazeres, com a
mínima despesa possível de renúncias e sacrifícios; um mundo em que o relacionamento
com as outras pessoas visa, principalmente, o “proveito” e o “prazer” pessoal;
em suma, um mundo em que o relacionamento interpessoal tem a forma, o peso e a medida
do interesse individual.
O “utilitarismo
hedonista”, conhecido vulgarmente com o nome de “direito-de-ser feliz”, acaba,
então, por justificar tudo: larga-se abruptamente o marido ou a mulher, quando manter-se
fiel “custa”; parte-se facilmente para uma nova união, à caça da felicidade (de
“sentir-se bem”, de encontrar-se “a si mesmo”), ainda que, com isso, se deixem
os filhos privados de um verdadeiro lar e machucados com traumas irreversíveis;
ou, então, foge-se do sacrifício de ter que criá-los, como faz o chupim, pelo
simples sistema de não tê-los ou de matá-los no ventre materno quando, ainda
dentro dele, começam a incomodar.
No meio desse radical
egoísmo, subsiste, contudo, em muitos casos o desejo de ter uma família..., mas
só na medida em que for útil para a realização pessoal; subsiste o desejo de
ter filhos, mas somente se isso dá gosto aos pais; e o de não tê-los – este é
bem mais frequente –, se há o receio de que perturbem as ascensões
profissionais (especialmente a “realização independente” da mulher), ou o
lazer, ou as viagens internacionais, ou a posse e consumo de mais bens materiais.
Com que pena ouvia eu, recentemente, o que me contava um rapaz recém-casado,
entusiasmado com a ideia de ter logo um filho.
Uma jovem vizinha de
apartamento, recém-casada também, ao saber do seu entusiasmo, fez um trejeito
de nojo e comentou: “Filhos? Nunca! Só «enchem»!”
TRÊS DESVIOS E UM BRADO DE
ALERTA
Se pensarmos bem,
perceberemos que esses egoístas procuram a paz e a felicidade por três vias
tortas – desvios e não caminhos –, que não podem proporcionar a paz simplesmente
porque são uma radical inversão dos valores, porque são uma “desordem”, no sentido
mais profundo dessa palavra.
Lembremo-nos de que a paz,
como dizia Santo Agostinho, é a tranquilidade na ordem. A paz, com efeito, vem
da harmonia, da ordem equilibrada e certa, quer no interior do ser humano, quer
nas suas relações com Deus e com o próximo: da ordem dos valores, dos amores,
dos deveres, da ordem entre o que é apenas um meio e o que é um fim, entre o que
tem valor absoluto e o que tem valor relativo, entre o que é eterno e o que é
transitório.
Pois bem, a verdadeira
ordem “humana” postula três coisas: colocar o amor acima do prazer, o dever
moral acima do gosto pessoal, e Deus e o próximo acima dos interesses mesquinhos
do “eu”. A sociedade utilitarista e hedonista, no entanto, preconiza o
contrário: apregoa que deve colocar-se o prazer acima do amor, o gosto acima do
dever moral, e o “eu” acima de Deus e dos outros. Nesse quadro de valores invertidos,
a paz da alma, que precisa do ar saudável da ordem para subsistir, não acha
como respirar e se extingue. São muito ilustrativas as biografias de grandes
desfrutadores (gente famosa na tela dos cinemas e das televisões, e nos
cadernos especiais dos jornais e revistas), que – após terem feito a experiência
de seis, sete ou mais casamentos, todos esfrangalhados – acabam procurando em vão
nas drogas ou no álcool a paz que destruíram com o seu egoísmo.
É natural que, em face
dessa civilização do interesse e da fruição, o Papa João Paulo II erga a sua
voz – como um brado de alerta e de esperança – em defesa da “civilização do amor”.
O diagnóstico que faz na sua Carta às famílias é de uma lucidez transparente:
“O utilitarismo é uma civilização da produção e do desfrute, uma civilização
das «coisas» e não das «pessoas»; uma civilização em que as pessoas se usam
como se usam as coisas.
No contexto da civilização
do desfrute, a mulher pode tornar-se para o homem um objeto, os filhos um
obstáculo para os pais, a família uma instituição embaraçosa para a liberdade
dos membros que a compõem [...]. Na base do utilitarismo ético, está, como se sabe,
a procura desenfreada do «máximo» de felicidade: mas de uma felicidade
utilitarista, vista apenas como prazer, como imediata satisfação e vantagem
exclusiva do próprio indivíduo, fora das exigências objetivas do verdadeiro bem
ou mesmo contra elas” 5.
UMA SOCIEDADE HUMANA?
Na sua segunda visita ao
Brasil, João Paulo II teve, no dia 17 de outubro de 1991, um encontro com o
laicato católico em Campo Grande. Falou-lhes da família e, entre outras coisas,
dizia-lhes: “Não percais nunca a consciência de que, do fortalecimento e da
santidade da família, depende a inteira saúde do corpo social, pois a família,
por desígnio de Deus, é e será sempre a «célula primeira e vital da sociedade»”
6.
Uma sociedade sadia é um
“organismo” formado por famílias sadias. A paz e o bem do mundo, em grande
parte, são o reflexo da paz e do bem das famílias. E o contrário também é
verdade: muitas famílias sem paz dão como resultado um mundo inquieto, desconjuntado
e agressivo, um mundo sem paz.
Por isso, presta-se um
imenso desserviço à sociedade quando, deixando a família na sombra, se
apresenta o bem social, simplesmente, como a soma dos bens particulares dos indivíduos.
O indivíduo seria, assim, a única coisa que interessaria. Não se pensa que o indivíduo
deva pôr-se a serviço do bem comum, a começar pelo bem da família, mas julga-se
que a família é que tem de ficar subordinada ao bem-estar do indivíduo: se a
família serve para a sua “realização”, bem; se não serve, ele a quebra, como um
palito usado, e a joga fora.
Muitos não reparam na
medonha falsificação que há nessa mentalidade. A sociedade não é,
absolutamente, uma somatória de indivíduos, um agregado de sujeitos isolados,
sem outra relação entre eles que os acordos que consigam fazer para conjugar os
seus egoísmos.
A sociedade “humana” não
existe sem a família, que é o ambiente natural e sadio de onde surge o “homem
humano” de que falava Guimarães Rosa. A sociedade só é “sociedade” na medida em
que é uma constelação de famílias, da mesma maneira que um organismo sadio é
uma união de órgãos e células sãos. Por isso, o bem da família, a proteção à
família, é um dos deveres mais graves – se não o mais grave – dos governantes e
dos responsáveis pela formação da opinião pública. Todos os atentados
ideológicos ou práticos contra a família e contra os valores familiares são uma
traição à dignidade da pessoa humana e um crime contra a sociedade.
Ninguém ignora que essa
traição está sendo praticada com febril insistência e agressividade. Mediante
uma orquestração sistemática dos meios de comunicação social, a família é
bombardeada, ridicularizada, “cafonizada”, vista ironicamente como uma espécie em
extinção, como instituição obsoleta, inimiga das liberdades individuais, do
progresso, da mentalidade moderna, da necessária libertação de tabus. Basta
ligar a maior parte das telenovelas, visitar uma videoteca, folhear jornais de
grande circulação e revistas de todo o tipo, para achar diariamente a apologia
do sexo livre hedonista (homossexual ou heterossexual, praticado por adultos,
por adolescentes e por crianças convenientemente “educadas” pelas sexologias
oficiais), da aventura descomprometida, da separação por motivos fúteis, da deslealdade
justificada pelo simples prazer, do aborto e de tantos outros dinamitadores do
bem da família.
E os poderes públicos? E
os legisladores? Uns silenciam, outros vão na onda daquilo que os meios de
comunicação, manipulando falsamente os dados, apresentam como opinião da
maioria; e, pouco a pouco, vão-se abrindo fendas profundíssimas, vão-se
acobertando aberrações, vão-se escancarando legalmente portas para sistemas de
vida demolidores da família.
CORDAS ARREBENTADAS
Por que são cada vez mais
frequentes os casamentos meteóricos, que não chegam a durar um ano ou dois e,
por vezes, nem sequer uns poucos meses? É pura e simplesmente porque o “egoísmo
utilitarista” predominante arrebentou as boas cordas do coração de jovens e
menos jovens, deixando só as cordas mais desafinadas, aquelas que – vibradas
pelo orgulho e pelo comodismo – tocam a música monótona que canta: “Direito,
direito, eu tenho direito! Tenho o direito de ser feliz, tenho o direito de que
as coisas sejam a meu gosto, tenho o direito de não sofrer, de não ter que
aguentar!”
Por isso, ante a menor
contrariedade, as cordas do hedonista chiam, irritadas: “Ela perturba-me! Não
me faz feliz!”, “Ele não quer que eu faça as coisas do meu jeito, pisa na minha
independência! Ele – ou ela – dá trabalho, exige sacrifício, ousa solicitar
renúncias!
Não é o que esperava
quando me casei! Ele, ela, não me dá, não me «proporciona», não me «abastece»,
não «alimenta» as minhas vontades, não me permite «consumir» o tipo de satisfações
que o meu apetite voraz anseia!”
É natural que as famílias
constituídas por pessoas assim, incapazes de amar, incapazes de dar, carentes
de toda a generosidade, vão caindo uma após outra, ao primeiro vento contrário,
como as folhas no outono. Essa incapacidade de ser fiel, que muitos meios de
comunicação apresentam como liberdade, na realidade é uma atrofia que inabilita
para amar: um “autismo” moral, que é a doença típica do homem e da mulher que
se autoproclamam “avançados”, “modernos”, mas que estão vazios de tudo, exceto
de si mesmos.
(cont.)
__________________________
Notas:
(4)
Leão Tolstoi, Obra completa, vol. III, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1993,
págs. 917-918;
(5)
Carta às famílias, n. 13;
(6) Palavra do Santo Padre ao Brasil, Paulinas,
São Paulo, 1991, pág. 128;
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