30/04/2014

Tratado dos vícios e pecados 75

 Questão 85: Dos efeitos do pecado e, primeiro, da corrupção do bem da natureza.

Art. 6 — Se a morte e as demais misérias do corpo são naturais ao homem.

(IIª-IIªª, q. 164, a. 1, ad 1; II Sent., dist. XXX, q. 1, a. 1; III. Dist. XVI q. 1. a. 1; IV, dist. XXXVI, a. 1, ad 2; IV Cont. Gent., cap. LII; De Malo, q. 5. a. 5; Ad Rom., cap. V, lect III; Ad Hebr., cap. IX, lect. V).

O sexto discute-se assim. — Parece que a morte e as demais misérias do corpo são naturais ao homem.

1. — Pois, o corruptível difere genericamente do incorruptível, como diz Aristóteles. Ora, o homem é do mesmo género que os brutos, que são naturalmente corruptíveis. Logo, também ele é naturalmente corruptível.

2. Demais. — Tudo o que é composto de princípios contrários é corruptível, quase tendo em si mesmo a causa da corrupção própria. Ora, tal é o corpo humano. Logo ele é naturalmente corruptível.

3. Demais. — O quente naturalmente consome o húmido. Ora, a vida humana conserva-se pelo calor e pela humidade. E como as operações vitais se exercem pelo acto do calor natural, como diz Aristóteles, resulta que a morte e as demais misérias do corpo são naturais ao homem.

Mas, em contrário. — 1. Tudo o natural ao homem foi Deus quem o fez. Ora, Deus não fez a morte, como diz a Escritura (Sb 1, 13). Logo, ela não é natural ao homem.

2. Demais. — O conforme à natureza não pode ser considerado pena nem mal, a todo ser é conveniente o que lhe é natural. Ora, a morte e as demais misérias do corpo são a pena do pecado original, como já se disse (a. 5). Logo, não são naturais ao homem.

3. Demais. — A matéria proporciona-se à forma, e todas as coisas, ao seu fim. Ora, o fim do homem é a bem-aventurança perpétua, como já se disse (q. 2, 7; q. 5, a. 3-4). E também a forma do corpo humano é a alma racional, que é incorruptível, como já se demonstrou na Primeira Parte (q. 75, 6). Logo, o corpo humano é naturalmente incorruptível.

Podemos considerar um ser corruptível de dois modos: relativamente à natureza universal, e à particular. — A natureza particular é a virtude activa e conservativa própria do ser. E sendo assim, toda corrupção e deficiência é contra a natureza, como diz Aristóteles; pois, a virtude referida busca a existência e a conservação do ser a que pertence.

Por outro lado, a natureza universal é a virtude activa existente num princípio universal da natureza, p. ex., em algum dos corpos celestes ou em alguma substância superior, o que leva alguns a darem a Deus a denominação de natureza naturante. E essa virtude busca o bem e a conservação do universo, exigindo esta última que se alternem a geração e a corrupção das coisas. E sendo assim, as corrupções e as deficiências dos seres são naturais; não certamente pela inclinação da forma, princípio da existência e da perfeição; mas pela da matéria, atribuída proporcionalmente a uma determinada forma, conforme a distribuição do agente universal. E embora toda forma tenda a perdurar no ser, o quanto possível perpetuamente, contudo nenhuma forma de ser corruptível pode conseguir a perpetuidade de existência. Excepto a alma racional, por não estar, como as outras formas, sujeita de modo nenhum à matéria corpórea; antes, é dotada da sua actividade imaterial própria, como já demonstramos na Primeira Parte (q. 75, a. 2). Donde, quanto à sua forma, é natural ao homem, mais que aos outros seres corruptíveis, a incorrupção. Mas como essa forma está ligada à matéria, composta de princípios contrários, da inclinação da matéria resulta a corruptibilidade do todo. E a esta luz, o homem é naturalmente corruptível, segundo a natureza da matéria, abandonada a si mesma, e não segundo a natureza da forma.

Ora, as três primeiras objecções fundam-se na matéria; e as outras três, na forma. Por onde, para solvê-las, devemos considerar que a forma do homem, a alma racional, é, pela sua incorruptibilidade, proporcionada ao seu fim, que é a felicidade perpétua. O corpo humano porém, corruptível, considerado na sua natureza, é de certo modo proporcionado à sua forma, e naturalmente, outro, não. Pois, podemos levar em conta, em qualquer matéria, uma dupla condição: escolhida pelo agente, e a não escolhida, por se fundar na condição natural da matéria. Assim, o ferreiro, para fazer uma faca, escolhe matéria dura e dúctil, capaz de adelgaçar-se e tornar-se apta à incisão. E nessas condições o ferro é matéria proporcionada à faca. Mas, pela sua natural disposição, o ferro é frágil e contrai a ferrugem; e essa disposição não a escolhe o artífice, antes a repudiaria, se pudesse. Donde, tal disposição da matéria não é proporcionada à intenção do artífice nem ao fim da arte. Semelhantemente, o corpo humano é pela sua compleição equilibrada, a matéria escolhida pela natureza para órgão convenientíssimo ao tacto e às outras potências sensitivas e motoras. Mas é corruptível, por causa da condição da matéria. E essa corruptibilidade a natureza não a escolheu; antes, se pudesse, escolheria matéria incorruptível. Deus porém, a quem está sujeita toda a natureza, supriu, na instituição do homem, essa deficiência da natureza, dando ao corpo uma certa incorruptibilidade, pelo dom da justiça original, como dissemos na Primeira Parte (q. 97, a. 1). E por isso se diz que Deus não fez a morte, e que a morte é a pena do pecado.

Donde é clara a RESPOSTA ÀS OBJECÇÕES.
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Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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