07/02/2012

O Povo

Navegando pela minha cidade
Não preciso de me apoiar nas estatísticas tão bem trabalhadas, recolhidas e expostas no programa Pordata do António Barreto [i]; basta-me a memória da minha vida para saber como foi grande a evolução económica e social do nosso povo nos últimos trinta ou quarenta anos.
Se foi muito significativa a melhoria económica e social em trinta ou quarenta anos, maior o foi em mais de cento e cinquenta anos, embora o gráfico desta evolução tenha várias descidas abruptas e largos períodos de estagnação.
Dito isto, porque estamos a entrar num período de recessão (descida) colossal; porque tive de ir à Praça Sá Carneiro e - sem perceber como - a certa altura estava na Alameda Eça de Queiroz, lembrei-me de um artigo deste escritor; e porque a natureza do homem é exactamente a mesma, acho oportuno transcrever esse artigo intitulado O Povo que foi editado no Distrito de Évora há mais de cento e cinquenta anos.

Ei-lo: 
“Há no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligência serene e lúcida, com dedicações profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem, que sofrem, que se lamentam em vão.
Estes homens, são o Povo.
Estes homens estão sob o peso do calor e do sol, transidos pelas chuvas, roídos do frio, descalços, mal nutridos; lavram a terra, revolvem-na, gastam a sua vida, a sua força, para criar o pão, o alimento de todos.
Estes são o Povo, e são os o que nos alimentam.
Estes homens vivem nas fábricas, pálidos, doentes, sem família, sem doces noites, sem um olhar amigo que os console, sem ter o repouso do corpo e a expansão da alma, e fabricam o linho, o pano, a seda, os estofos.
Estes homens são o Povo, e são os que nos vestem.
Estes homens vivem debaixo das minas, sem o sol e as doçuras consoladoras da Natureza, respirando mal, comendo pouco, sempre na véspera da morte, rotos, sujos, curvados, extraem o metal, o minério, o cobre, o ferro, e toda a matéria das indústrias.
Estes homens são o Povo e são os que nos enriquecem.
Estes homens, nos tempos de lutas e de crises, tomam as velhas armas da Pátria, e vão, dormindo mal, com marchas terríveis, à neve, à chuva, ao frio, nos calores pesados, combater e morrer longe dos filhos e das mães, sem ventura, esquecidos, para que nós conservemos o nosso descanso opulento.
Estes homens são o Povo, e são os que nos defendem.
Estes homens formam as equipagens dos navios, são lenhadores, guardadores de gado, servos mal retribuídos e desprezados.
Estes homens são os que nos servem.
E o mundo oficial, opulento, soberano, o que faz a estes homens que o vestem, que o alimentam, que o enriquecem, que do defendem, que o servem?
Primeiro, despreza-os; não pensa neles, não vela por eles, trata-os como se tratam os bois; deixa-lhes apenas uma pequena porção dos seus trabalhos dolorosos, não lhes melhora a sorte, cerca-os de obstáculos e de dificuldades, forma-lhes em redor uma servidão que os prende e uma miséria que os esmaga, não lhes dá protecção; e terrível coisa, não os instrui: deixa-lhes morrer a alma.
É por isso que os que têm coração e alma, e amam a Justiça, devem lutar e combater pelo Povo.
E ainda que não sejam escutados, têm na amizade dele uma consolação suprema."
É a falta desta dimensão humana e social; de verdadeiro interesse pelos mais fracos e mais pobres que muitos analistas têm considerado que está na génese da actual crise económica e financeira.


[i]Afonso Cabral

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