04/01/2012

Implosão

Navegando pela minha cidade
Apesar de saber que a implosão ia dar em directo num canal da televisão tinha 

que ir ver. Pela televisão não é mesma coisa. Nunca é. Mas no dia anterior fui fazer o necessário reconhecimento do terreno. Ou seja, dos limites do perímetro de segurança.

Entrei no bairro do Aleixo pela Rua Diogo Botelho em direcção à Rua do Progresso onde encontrei dois ou três sexagenários à conversa no passeio (esta maneira de caracterizar seres humanos pela idade é quase zoológica ou botânica) e parei para perguntar onde era exactamente a Torre 5.

“Tenho aqui um croquis e o senhor vê já”. Dizendo isto um deles mete-me pela janela do carro uma folha A4 com a planta do bairro onde estão sinalizadas as torres com um circulo a marcador amarelo. É esta aqui? Perguntei apontando para a Torre 3. Um... não! essa é onde eu vivo! Indignado e escandalizado foi a resposta do homem arrancando-me o croquis das mãos. “É aquela mesmo à sua frente.”
De facto, a poucos metros de distância, a Torre 5 erguia-se nos seus treze andares de altura, igualzinha a todas as outras. Desci pela Rua da Mocidade até à Rua do Ouro que faz a marginal do rio Douro em frente à Afurada, junto à Cantareira.

Foi esse o sítio que escolhi e em que, no dia seguinte pelas nove da manhã – manhã fria e cinzenta - já lá estava para ver a implosão da Torre 5.
Se sempre que um homem se eleva, eleva toda a humanidade e se sempre que um homem se avilta e degrada, avilta e degrada toda a humanidade o mesmo se pode dizer dos edifícios numa cidade. Ou seja, quando aquelas Torres foram levantadas, levantaram a cidade e os seus habitantes de uma situação inferior.
E agora que uma delas ia ser implodida? Iria também implodir qualquer coisa na cidade ou já tinha sido implodido no coração de tantos e tantos toxicodependentes que usavam aquele bairro e, em particular, aquela torre, como inesgotável fonte de abastecimento da sua dependência degradante?

Essa é a chaga social visível do Aleixo. E tudo o resto? E as dezenas e dezenas de famílias honradas e honestas que contra toda a adversidade do meio ambiente lá vivem, sonham, amam e têm ilusões e esperanças justas e dignas?

E todos opinam. E eu tenho direito a não ter opinião. Porque ter opinião é formular um juízo para o qual não estou qualificado. Foi mais ou menos isto que disse a uma jornalista do Público que pelas dez e meia da manhã me abordou. Mas antes disse-lhe que estava ali para ver a implosão fora de mim, porque as dentro de mim já as conhecia. “Pois, mas isso é outra coisa”, disse-me a jornalista.

E há a polícia, e há pequenos helicópteros comandados por controlo remoto com uma câmara da RTP; e há as ambulâncias do INEM; e há carros de bombeiros e jipes da Protecção Civil e peritos em catástrofes e camiões e retroescavadoras alinhados para atacarem o entulho; e há Sua Excelência o Sr. Presidente da Câmara que, com o nosso dinheiro alugou um enorme barco da Douro Azul para assistir do meio do rio, porque se estivesse na Rua do Ouro teria ouvido o que alguns lhe gritavam: “bandido! ladrão! traficante!”; e há muita gente com máquinas de filmar e fotográficas para registar o momento da implosão como se fosse possível registar o impossível.

E há ex-moradores da Torre 5 e doutras torres que irão talvez para as Antas. Para longe do rio que há dezenas e dezenas de gerações lhes corre perto da vida. Para quanto mais longe melhor, porque aquele espaço agora já vale 15 milhões de euros e eles estragam a vista para a foz do condomínio de luxo que lá se fará.

Quatro ou cinco estoiros e em dois segundos a Torre 5 de treze andares e muitas vidas veio abaixo.  

Afonso Cabral                              


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