Navegando pela minha cidade
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Esta atracção obedeceu à misteriosa magia que Herman Melville descreveu no maior romance da literatura americana: “Embora inconscientemente, quase todos os homens sentem, numa altura ou noutra da vida, a mesma atracção pelo Oceano… Há magia neste facto! Que o mais distraído dos homens se lance nas reflexões mais abstractas – se esse homem começar a andar é mais do que certo que os seus passos o levarão infalivelmente para a água, se a água existir na região… Sim, porque toda a gente sabe que a meditação e a água se encontram indissoluvelmente ligadas.”[1]
E água não falta no Porto. Ainda ontem muito cedo um moedinhas queixando-se do frio me dizia: temos o mar todo e o rio que nos cerca, por isso este frio; e esfregava as mãos e soprando-as para que o bafo as aquecesse um pouco.
E aquele bafo transformado numa pequena nuvem de vapor que lhe enluvava as mãos; aquela procura de um pouco de calor que só lhe podia vir de si próprio pareceu-me que o assemelhava tragicamente aos náufragos das Caxinas.
Na Avenida do Brasil fui até ao fim do molhe que mais parece a proa de um navio de pedra acabado de levantar ferro e a entrar pelo mar adentro, rumo à América. O mar respirava mansamente em baixa-mar e as gaivotas que se levantavam das rochas eram – na suave brancura dos seus voos – como que espuma libertada das ondas.
Era muito mar. Era muito mar e muito frio. Assim falava um dos caxineiros da Virgem do Sameiro depois de ter sido salvo. O mar estava à espera de comer, mas deu-se um milagre e não comeu também disse uma mulher das Caxinas.
Andando na direcção da foz do rio Douro passei em frente da casa onde António Nobre morreu de tuberculose aos 33 anos de idade. Quase dentro do mar enfrentando as ondas, o lobo-do-mar em bronze agarra a roda da proa com a mão esquerda e agarrando com a direita uma bóia leva-a para trás de modo a lhe dar lanço e força para a atirar a alguém que se está a afogar. É a estátua O Salva-Vidas do mestre Henrique Moreira que quase faz de nós que passamos, outros náufragos desesperados.
A força, a coragem e a heroicidade daquele homem de bronze, encharcado de mar num pequeno bote, é para mim a imagem perfeita de qualquer pescador das Caxinas. Desses que há gerações vivem e morrem no mar. Desses que são tão diferentes e únicos que até têm nomes que só ali existem: Maio, Carrela, Arranhado, Coentrão, Marafona, Maravalhas, Postiga, Bicho Novo, Cascão, Maranha, Barandas, Gigas, Carocho, Nicho, Vianez, Chinchão, Casquilho, Sarrão, Ferrucho, Pelingreiro, Taranto, Contrão, Agonia, Espogeira, Retirado, Maresia.[2]
Só homens assim têm a coragem de proclamar a sua fé viril sem respeitos humanos. Sem medo da troça dos pusilânimes e do sarcasmo descrente dos orgulhosos.
Em 1900 “ depois de mais um heróico salvamento de náufragos, a Real Sociedade Humanitária quis condecorar o velho lobo-do-mar (Manuel dos Santos Vila Cova “O Caramelho” patrão do Salva-Vidas) e ainda os três filhos – Liro, José e Adriano. Para tal convidou-os a irem receber as medalhas, organizando uma grandiosa solenidade. Os nossos homens não apareceram.”[3]
Dizia o Caramelho: As veneras são para os homens da terra, para nós, os do mar, chega a satisfação enorme de ajudar o camarada nas horas de perigo. A nós, pescadores, quem recompensa é Deus, a Senhora da Guia, a Senhora da Bonança, o Senhor do Socorro e o Nosso Senhor dos Navegantes.[4]
Mais de um século depois, José Manuel Coentrão – mestre da traineira Virgem do Sameiro – disse: Acredito que foi a fé que nos manteve vivos. Havia um terço na balsa, que é do pescador que ainda está no hospital. Rezámos muito a Nossa Senhora de Fátima. Eu rezava em voz alta e os outros oravam em silêncio.[5]
Afonso Cabral
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