Navegando pela minha cidade
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Eu celebro. Eu comemoro. Eu não esqueço. Se estiver só não me importa nada, assim o prefiro, porque mais vale só do que mal acompanhado.
Com esta memória no pensamento dirigia-me para a Rotunda da Boavista para – mais uma vez - ver de perto o fantástico monumento que celebra outras batalhas e outra vitória: a vitória sobre a segunda invasão francesa em que, no alto daquela imensa coluna, a águia imperial francesa é esmagada pelo leão inglês. Cá em baixo, o povo português luta, empurra canhões num esforço desesperado, sofre, morre e afoga-se aos milhares no desastre da ponte das barcas.
Ao chegar ao cruzamento da Avenida da França com a Rua Domingos Sequeira, mesmo junto aos semáforos, vejo uma estátua viva.
Absolutamente imóvel, um homem de pés calçados nuns grandes sapatos castanhos sem atacadores estava também em cima de uma pequena coluna que era uma lata vazia de pêssegos em calda virada ao contrário: Brover – Abricots au sirop légère – lia-se no rótulo da lata.
Outra pequena lata de salsichas tipo Frankfurt no chão tinha três ou quatro moedas e esperava por mais.
O homem-estátua tinha a cara e as mãos pintadas de branco; uma linha de eye liner realçava-lhe a negrura dos olhos, bem como uma linha preta no bordo do lábio inferior lhe pintava uma expressão de profunda tristeza e solidão; por cima de uma camisa escura e suja vestia um colete e por cima deste, um casaco coçado velho e sem botões.
Em cima daquela pequena coluna feita de uma lata de pêssegos em calda a estátua inclinava-se, curvando-se numa espécie de vénia estendendo com elegância a mão direita. Na esquerda, junto ao corpo, tinha um pequeno letreiro de cartão onde em letras maiúsculas estava escrito: TENHO FOME.
Aproximei-me dele, e de maneira a que ele visse bem, procurei na carteira uma moeda de um euro. Coloquei a moeda na velha lata de salsichas de Frankfurt, cumprimentei-o e elogiei-o dizendo: boa tarde; deve ser muito difícil ficar assim tão quieto, sem se mexer; o senhor é uma óptima estátua.
Um pequeno sorriso desenhou-se na brancura da cara e um olhinho preto virou-se de soslaio para mim. E disse baixinho numa voz doce: estou habituado.
Que personagem é a sua estátua? Perguntei, enquanto os carros passavam durante o tempo em que a luz do semáforo estava verde e por isso não haveria a possibilidade de receber qualquer moeda.
Era para ser o Charles Chaplin, mas falta-me a bengalinha e o chapéu de coco. Também pinto. No outro dia tinha um Cristo pintado no chão, a giz, mas enervei-me, enervei-me muito e estraguei tudo. Vou para Lisboa. Lá o negócio é bom.
Depois de durante o sinal vermelho ter ido recolher algumas moedas com que lhe acenaram de dois ou três carros, voltei a perguntar-lhe: Onde dorme?
Numa pensão. Respondeu com uma firmeza e um tom quase que de dignidade ofendida por – talvez – ter pensado que eu pensaria ou poderia ter pensado que ele dormiria na rua.
O cartão onde estava escrita a sua simples mensagem; a sua explicação; o seu pedido; a sua razão, dobrava-se e desdobrava-se na mão esquerda como o tique inconsciente de quem roda um anel ou uma aliança há muitos anos usada.
TENHO FOME. E lembrei-me do filme A Quimera do Ouro e da elegância com que o Charlot - morrendo de fome – comia as próprias botas e enrolava os atacadores no garfo - como quem enrola o melhor fettuccini - nunca perdendo a alegria e a esperança.
E ao afastar-me, ia pensando também na elegância daquele homem que ganhava a vida a fazer de estátua que era para ser o Charlot e que num pequeno letreiro dizia que tinha fome. Mas, fome de quê? De alimento? De amor? De justiça?
Afinal aquele quase Charlot podia ser qualquer um de nós que respondesse afirmativamente a alguma destas interrogações.
Afonso Cabral
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