Navegando pela minha cidade
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de sempre. E porque só muito tardiamente me apaixonei pelo Jazz precisamente por causa da música dele, estou de luto como se ele tivesse morrido hoje, porque há vinte anos não o conhecia.
Dizem os psiquiatras que é muito importante “viver-se o luto” ou “fazer luto”, caso contrário, a dor fica atravessada no coração e é muito difícil depois engolir as coisas da vida. E a vida acaba por nos matar antes de morrermos.
Na Estrada da Circunvalação, no fim de uma curva de quem nela entra vindo do nó onde se inicia a Via Norte houve há anos um acidente em que morreu uma pessoa. Não sei quem foi, mas suponho que tenha sido um jovem ou uma jovem.
No exacto local onde se deu o acidente que deixou marcas durante muito tempo no separador metálico, alguém continua a pôr flores em frascos com água, até hoje.
As flores vão murchando e vão sendo substituídas por outras. E elas são como que um memorial; uma evocação; um ramo de desespero de quem não admite que ele seja quebrado porque se o for é que o seu filho (ou a sua filha) morre mesmo.
E assim ainda não morre, porque vive na dor absoluta como brasas permanentemente atiçadas pelo vento do tempo que se quer parado. Porque não o fazer seria uma traição ou mesmo um homicídio.
E as palavras que não se disseram enquanto havia tempo para as dizer vão lentamente ficando cheias de feridas e úlceras putrefactas acabando por infectar todas as outras que ainda têm de ser ditas.
Conheci um homem que andava sempre vestido de preto e que um dia me disse num arranco aos solavancos: … estava em casa a limpar a pistola… e ela disparou-se … e matei a minha filha … tinha cinco anos!
Este acidente tinha sido há mais de vinte anos. Era impossível ele desculpar-se e isso obrigava-o a vestir-se sempre de preto para que nunca se esquecesse ou se perdoasse.
Estas duas situações são exemplares do que é não se “fazer luto” ou não se “viver o luto”. E não o fazer é não aceitar a realidade porque ela é insuportável.
Se ao Homem não lhe tivesse sido dado o dom do choro e das lágrimas, não seria um ser humano. Porque é através desses dons que ele se purifica no altar da dor e da angústia existencial. Porque a tristeza é aliada do inimigo.
E também quanta dor pode existir por trás de uma gargalhada!
Pois é, eu hoje estou de luto pelo Miles Davis que morreu há vinte anos. Porque o luto faz-se, não se cultiva. Não se deve cultivar.
Era um homem tão apaixonado pela música que disse: “Tenho calafrios, uma mancha no pulmão, duas hérnias por causa do esforço físico e um nervo comprimido nas costas. A minha mão formiga quando fumo. Tenho muitos problemas, inclusive diabetes, mas se pudesse estar em palco o ano todo não pararia de tocar”[2].
E agora – em sua memória - vou ouvir Bye Bye Blackbird do Miles Davis Quintet with Jonh Coltrane.
Afonso Cabral
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