15/10/2011

Eles roubam tudo

Navegando pela minha cidade
O pequeno Fiat Panda estacionado em cima do passeio da Avenida do Conselho 

da Europa gritava que lhe roubavam Abril e que eles (os ladrões) semeiam sementes do passado que Abril venceu.

Gritava através de dois altifalantes bem agarrados de costas um para o outro, virados para sul e para norte como um cata-vento cheirando uma tempestade.

Pouca gente sabe onde fica a Avenida do Conselho da Europa, mas isso não interessa nada porque o Conselho da Europa também nunca se interessou em conhecer esta gente.

E aquele antigo grito: AGARRA QUE É LADRÃO! saía sibilino e profissional daquelas gargantas metálicas abertas como as de antigas e sujas cavernas.

Roubam nos salários e reformas, no subsídio de Natal, nos transportes e impostos!
Roubam o emprego aos que querem trabalhar, pondo-lhes à frente espessos muros.
Roubam aos pobres para dar aos ricos e encher, com o roubo, os cofres das grandes famílias, dos vampiros parasitas.
Roubam ao País a sua independência e levam o roubo à boca dos grandes da Europa e do Mundo!

E as palavras negras saíam daquelas cavernas como morcegos a revolutear pelo ar e poisavam nos corações, infectando-os com a inveja e ferindo-os com a injustiça.

Eram milhares de morcegos novos de asas negras de cetim, brilhando ao sol da tarde de início de Outono. São os filhos ou netos dos vampiros do Zeca Afonso que comiam tudo, comiam tudo e não deixavam nada.

Estes morcegos copy/paste também poisam depois de muitas voltas e reviravoltas por cima das casas, dos carros, dos semáforos e das árvores:

Eles poisam em toda a parte,
Poisam nas administrações das grandes empresas públicas e privadas,
Poisam nos bancos falidos fraudulentamente e nos bancos que, fraudulentamente levam à falência
as pequenas e médias empresas!

O meu coração, já com asas de bandeiras vermelhas, também se elevava e queria começar a gritar: Agarra que é ladrão! Que grande roubalheira! Também me estão a roubar a mim. A mim que sempre paguei todos os impostos! Miseráveis! Tirem as mãos dos meus bolsos e da minha carteira! Tenho seis filhos seus vampiros black satin! Deixem-me! Xô! Xô! Luz! Luz! Dêem-me luz para matar estes amantes da escuridão!

E daquelas duas cavernas metálicas em cima do Fiat Panda continuavam a sair bandos de palavras negras com asas de cetim:

Roubam aos que trabalham e vivem do seu trabalho,
Roubam aos que já trabalharam e, com o seu trabalho, ganharam
o direito a uma velhice digna.

Essa velhice já tão exaurida de presente que só vive num futuro mirífico dado pela esperança de ganhar o euromilhões, o totoloto ou nas raspadinhas. E ali, naquela papelaria da esquina, gasta-se o que é poupado na farmácia e na mesa. Porque sem essa ínfima hipótese – prática e estatisticamente quase inexistente – de ter, já não vale a pena ser. Porque também já lhes roubaram o conhecimento de que a dignidade - sim a dignidade - está dentro deles e não fora.

As palavras feitas vampiros continuam a sair aos borbotões como o sangue de uma garganta esfaqueada:

Roubam serviços públicos essenciais,
roubam o direito à saúde, á educação, à habitação
e roubam o direito à felicidade!

Alto! Isso é que não! Nunca o conseguirão!

Podem roubar-me tudo e são bem capazes disso. São muito espertos estes morcegos de asas de cetim que brilham tanto que até parecem de seda. Brilham nas suas cadeiras brilhantes e mesas brilhantes e negócios brilhantes. Tudo brilha mais na noite escura onde eles esvoaçam numa grotesca imitação de pássaros.

Tudo brilha mais quando dizem que é assim e estamos em democracia. Nesta democracia sufocante porque o povo está ao seu serviço e não o contrário. Quando se organizam em bandos e poisam em cima de todas as árvores mais altas conspurcam tudo lá em baixo, desertificando o solo onde os mujiques lhes beijam as mãos sujas.

É então que da alma me sai um grito de alegria, de vitória: Podem! Podem roubar-me tudo! Façam o favor, roubem à vontade; sirvam-se em baixela de prata do fruto do meu trabalho; bebam em cálices de cristal o meu sangue e o dos meus filhos! Façam o que quiserem, mas juro-vos que nunca me roubarão a felicidade!

Aí se quebra a vossa soberba e a vossa ganância! A minha felicidade é absolutamente inviolável.

É intangível. Tão completamente intangível que perdurará para além da minha morte.

Afonso Cabral

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