12/07/2011

Humanismo (Afonso Cabral)

Navegando pela minha cidade
Eram três ou quatro e cada um tinha uma grande bola - pretendendo ser de ferro - agarrada por uma corrente ao respectivo tornozelo. As bolas de ferro tinham coladas notas de 200 euros e outras notas de dez e vinte euros agarravam-se com alfinetes em diversas partes das suas roupas.

Eram três ou quatro jovens talvez à rasca mas com a generosidade típica da idade da generosidade. Queriam mais qualquer coisa e estavam em campanha pelo Partido Humanista numa solidão rodeada de turistas num dos cantos da Praça da Liberdade.

Denunciavam o deus dinheiro que os acorrentava, aprisionava, e escravizava. A eles e a nós. Com uma paródia de oração escrita numa grande cartolina exposta num cavalete denunciavam o ídolo que os dominava:

Ó Deus Dinheiro…
Tu que tudo compras e pagas
escondendo os profundos temores
à solidão e à pobreza,
à doença e à morte;

Tu que tudo compensas ilusoriamente
Seja a dor do corpo seja ou o sofrimento da mente,
Fazendo-nos sentir seguros,
Importantes e desejados.

E este grito de angústia e revolta contra uma vida sem sentido quando dominada pelo dinheiro ou pela falta dele teve a minha simpatia.

Enquanto, parado em frente do cavalete lia aquela moquerie, pensava na frase dita a um jovem - também aprisionado pela riqueza - por quem conhecia o valor infinito dos homens: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me”[1]. “O jovem, porém, tendo ouvido estas palavras, retirou-se triste, porque tinha muitos bens”[2].

E daquele pequeno grupo que troçava idolatrando o dinheiro, destacou-se uma rapariga de olhos pretos que, vendo o meu interesse, se me dirigiu dizendo: “Tome, tem aqui uma cópia e um flyer do partido; o que acha?”. O panfleto dizia: MAIS DEMOCRACIA; MAIS ECONOMIA SOLIDÁRIA; MAIS DIREITOS HUMANOS E NÃO-VIOLÊNCIA

“Sabe-me a pouco” respondi-lhe.
“Acha pouco?” perguntou.
“Mas como é, e ficamos sozinhos aqui na terra? Não somos filhos de ninguém?” perguntei-lhe eu, provocando.
“Como?” exclamou ela.
“Sim, não somos criaturas? Não fomos criados?”
“Ah! Sim claro, somos todos irmãos; a humanidade” respondeu.
“Mas, não vê que para sermos irmãos temos de ter a mesma filiação?” disse-lhe.

E aquela rapariga abriu os olhos sorridentes e simpáticos dizendo: “Sim … sim, claro, mas o sistema é que está em causa…”

E o panfleto rezava: Falamos de uma revolução Não-Violenta, de cariz universal; de uma nova sensibilidade que nasce das aspirações mais profundas do Ser Humano. Falamos de uma nova mística social, em que cada um é um rebelde transformador do mundo em direcção a uma Nação Humana Universal.

E como um osso que se parte ou uma nevralgia, dolorosamente aquilo ecoava a Rousseau, Conte e Marx. Como que uma espécie de velho testamento de uma religião laica; de agnosticismo praticante.

Uma religião que liga o homem ao homem porque ele é o absoluto, a medida de todas as coisas. Horizontal.

“Existe uma evidente ausência de vontade de aperfeiçoar o inato, de propor formas nobres ao barro informe das tendências humanas fundamentais. O resultado está à vista: vulnerabilidade e depressões psíquicas crescentes, falta de projectos de vida sérios e firmes em muitos adolescentes, incapacidade de pensar pessoal e livremente, poder desmedido dos meios de comunicação de massas sobre populações espiritual e intelectualmente indefesas.”[3]

Ou seja, a desistência de voar; a negação da Vertical de nós mesmos.

“Só acreditando em Deus podemos acreditar plenamente no homem.”[4]

Afonso Cabral


[1] Mt, 19-21,22
[2] Mt, 19 – 22,23
[3] Justo Mullor – DEUS ACREDITA NO HOMEM – Colecção Éfeso –Diel – Lisboa 2006 – pág. 56
[4] Ibid. pág. 350

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.