Navegando pela minha cidade
|
Lisboa tem a corte, o poder e o capital. O Porto tem o trabalho, o engenho e a arte.
E digo isto, não por um bairrismo provinciano, mas porque é uma realidade que se impõe histórica e quotidianamente. É uma verdade mais do que axiomática, é um teorema demonstrável em qualquer sítio, em qualquer rua.
Se não, vejamos: entremos numa rua qualquer, por exemplo na Rua de Santa Catarina.
Entrei ontem nesta rua vindo da Praça da Batalha onde o velhinho cinema Águia D’Ouro, depois de anos e anos de solidão e de esquecimento de todos os filmes que projectou, está a ser restaurado e irá renascer em forma de hotel low cost.
Já tinha passado o alto da Rua 31de Janeiro quando começo a ouvir – naquela manhã azul e suave de princípios de Maio – as notas de um carrilhão numa melodia tão angelical que fez parar toda a gente que passava.
Cada toque de sino atravessava a rua e sobrevoava-a como se fosse uma andorinha. E a essa seguiam-se outras e outras andorinhas que me passavam pela alma deslizando numa espécie de lamento mudo ou alegria mística.
E o céu ficou mais azul e mais perto, assim riscado pelas notas dos sinos, que em bando louvavam Maria. Era meio-dia em ponto. Era a hora do Angelus. Os sinos tocavam a Ave Maria de Shubert.
Ali, na antiga Rua da Bela Princesa – na cidade da Virgem - louvava-se a Nossa Rainha.
Depois deste real encantamento procurei o relógio de carrilhão, procurei esse bando de sinos que voaram pela rua e pelo meu coração em louvor da Rainha do Meio Dia.
E encontrei-os, muito quietos e pousados em duas filas verticais e paralelas de 9 sinos cada, na fachada que dobra a esquina da Rua de Santa Catarina com a Rua Passos Manuel da antiga casa dos Grandes Armazéns Nascimento e que hoje pertence à C&A e à FNAC.
Esse extraordinário edifício foi construído pelo grande arquitecto portuense (os grandes arquitectos não são todos portuenses?) Marques da Silva.
Das inúmeras obras de arte com que este artista marcou o Porto, destaco o Teatro São João; a estação de São Bento; o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular e a Casa e Jardins de Serralves. Só por estas emblemáticas quatro obras se pode dizer que moldou o Porto.
No alto, em cima de cada uma das fachadas impera o lema: PRO LABORE.
Este carrilhão foi mandado fazer pela firma holandesa C&A que teve a grandeza de o ter animado com quatro figuras portuenses em tamanho natural que – enquanto o carrilhão toca – saem de uma janela, acenam ao povo e voltam a entrar.
São elas: São João Baptista, o Infante Dom Henrique, Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco.
A Rua é rica em memórias de poetas e escritores: no segundo andar do antigo nº 458 casou Camilo Castelo Branco com Ana Plácido; na casa com o nº 208 nasceu e morreu o romancista e poeta Arnaldo Gama e na casa com o nº 467 nasceu o autor de SÓ. Não é pouco.
Quando me vinha embora, e depois de ter passado por um palhaço que enchia balões com forma de salsicha; por dois tipos com ar de gigolos a venderem réplicas de óculos Ray Ban e de um pedinte que se arrastava apoiado em dois cajados, ouvi uns fracos e trémulos toques de uma Melódica e vi que a mulher que a tocava não tinha olhos. Literalmente. Onde eles deviam estar só havia pele lisa. A débil música que saía da Melódica era a Casa Portuguesa.
Se isto tudo não é trabalho, engenho e arte, então o que é?
Quod erat demonstrandum
Afonso Cabral
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.