Porque hoje começa a Primavera [1] decidi ir à Rua das Flores. Esta rua, que antigamente se chamava Santa Catarina das Flores, é a rua onde nasceu a minha família.
Calcetada em 1542, passou a ser uma das principais ruas da cidade, a par da Rua Nova (actual Rua do Infante D. Henrique), sendo mesmo escolhida por nobres e burgueses para nela construírem luxuosos palacetes, nela se passando muitos dos factos que fizeram a história quinhentista e seiscentista do Porto. Ainda hoje é considerada a mais tripeira das ruas portuenses, com belas construções de vários séculos e as suas típicas varandas, as mais belas que o Porto tem[2].
Porque hoje começa a Primavera eu só queria escrever sobre aquilo que é sempre um maravilhoso e misterioso recomeço, um renascer radioso; uma explosão de flores, de verde e de luz.
E aquela rua que já foi conhecida por Rua do Ouro do Porto – pela quantidade de ourivesarias que lá havia - tem fechado lojas umas atrás das outras sendo substituídas por montras entaipadas ou por lojecas que vendem pedras e cristais semi-preciosos com um magnetismo próprio para cada tipo de pessoa ou por outras que vendem todo o género de incensos capazes de resolver qualquer problema, medo ou angústia da existência humana. E apesar de isto ser garantido e ser barato elas estavam completamente vazias. Porque hoje começa a Primavera.
Vão-se os anéis mas fiquem os dedos. Ou seja, já não se vende ouro, mas a Casa das Sementes M. J. Coelho encheu-se de clientes à procura de plantas, bolbos e toda a espécie de sementes. Porque hoje começa a Primavera.
Cabaças penduradas nas paredes com girassóis de papel a saírem lá de dentro e grandes tabuleiros de esferovite com pequenos alvéolos cheios de húmus fresco donde brotam pequeninas alfaces, couves, meloas, beringelas, pimentos, tomate e cebolinho. Tudo exposto em diversos patamares feitos por umas escadas que não vão dar a sítio nenhum ou talvez aonde o Inverno acaba. Porque hoje começa a Primavera
Atrás do balcão um homem alto e velho aviava os fregueses com uma deferência antiga e compassiva solicitude.
Porque hoje começa a Primavera ela era ali vendida em pacotinhos de papel cheios de minúsculas sementes de nabo, de cebola, de cenoura ou de salsa que enchiam as prateleiras como se fossem livros de uma biblioteca botânica.
E em toda a loja havia paz e uma certeza de futuro que não sei se era a esperança ou o sol a bater nas vidraças das montras. Porque hoje começa a Primavera.
Porque hoje começa a Primavera a montra temática – sempre impecavelmente arranjada - do alfarrabista Chaminé da Mota parecia um jardim de livros: Cravos, Rosas e Crisântemos; Le Bom Jardinier; Bolbos e Raízes de Flores da Holanda; Botânica recreativa; A Popular Guide to Gardening; Catálogo geral para 1968-1969 de A Sementeira de Alípio Dias & Irmão; O Jardim – Manual do jardineiro amador.
Porque hoje começa a Primavera dei comigo a pensar se aquela pessoa que eu tinha ouvido num programa de televisão nessa manhã – enquanto tomava um café - a dizer que a Páscoa era uma tradição, também diria o mesmo da Primavera. Se também era uma tradição ou uma autêntica realidade.
Porque hoje começa a Primavera acho que ela é uma espécie de Páscoa da Natureza: uma ressurreição. E a Páscoa é uma Primavera da Humanidade.
Afonso Cabral
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