Navegando pela minha cidade
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É sempre preciso ir porque há sempre coisas que só conseguimos ver com os nossos próprios olhos. Nesta mesma rua encontrei duas pessoas muito felizes e uma gaivota desesperada. A primeira, foi uma mulher à porta de uma serralharia cujo enorme portão está encimado por um arco feito de letras em ferro forjado que mais parecem flores de uma grinalda e que diz: QUINTA DE HERDEIROS DE ANTÓNIO DIOGO. Comando! Comando! Anda cá Comando! gritava ela para um cão preto que se via ao longe. Sabe, o meu marido foi comando da 12ª e 14ª Companhia de Comandos e por isso temos sempre um cão chamado Comando. No grande portão uma placa de metal com a silhueta de um cão dizia: cão feroz solto. É muito mansinho, havia de o ter visto num programa da televisão deitado em cima de uma criança, dizia ela. E os olhos azuis brilhavam de orgulho e amor pelo marido que tinha sido comando em Angola e que tinha estado quatro anos na tropa e agora estava reformado.
A segunda foi um homem de oitenta anos que me disse: havia de ver a minha casa! Havia de ir a minha casa! É uma maravilha de uma casa. Em Novembro do ano passado acabei de a pagar. Estive vinte e cinco anos a pagá-la. A seguir ao 25 de Abril fizemos aqui uma cooperativa e a minha casa é linda. Tenho seis netos que são a alegria da minha vida. Estão todos formados. Fui lá abaixo apanhar estas couvitas e laranjas que são uma delícia. Amanhã vou plantar um campo de batata com o meu irmão. Sabe, a reforma não chega. E aquele homem de oitenta anos que no ano passado tinha acabado de pagar a casa da cooperativa e que tinha chorado a morte de dois irmãos, pareceu-me imensamente feliz e em paz consigo mesmo.
Na verdade, não é a riqueza das ruas que faz a felicidade dos homens.
A gaivota tinha sido apanhada por ter partido uma asa e estava fechada num antigo galinheiro toda suja de lama, arrastando as asas pelo chão numa indignidade e tristeza pungentes. Tinha tido todo um mar imenso sob o qual planava majestosa como um anjo de brancura saído da leveza da espuma. Tinha podido voar dentro do vento que sempre lhe atravessava as asas e o coração. Tinha sido grande. Tinha sido um reflexo divino. Mas um dia, cansada do verde das ondas e do sal da liberdade, entrou num Pêgo –“ na parte profunda de um rio”[3] – que era Negro como um poço e partiu uma asa.
Connosco – os homens – também é assim, também algo se parte em nós, quando negamos a nossa transcendência e descemos aos abismos da condição humana e do desespero. Também perdemos a capacidade de voar dentro do vento sobre a superfície das águas[4].
E aquela gaivota, para sua maior desgraça, ouvia de dia e de noite – a menos de um metro de distância – a água borbulhante do rio Tinto que, furiosamente, corria para o rio Douro e depois para o mar. O mar da sua saudade.
Afonso Cabral
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