Navegando pela minha cidade
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Senhor dos Passos
A Rua Escura é exactamente isso: escura. Escura e pobre. De uma pobreza medieval e de uma miséria contemporânea. Toda ela, do princípio ao fim, nunca apanha sol. Desde a Rua do Corpo da Guarda até se ramificar como uma raiz - em outras pobrezas e escuridões - nas Ruas da Bainharia, do Souto e dos Pelames. O Sol voa lá por cima acompanhado pelas gaivotas, rasando os telhados das casas altas e estreitas. Tão estreitas e tão altas que parece que se tocam nos beirais. Todas aquelas ruas parecem muito mais obra do reino mineral e vegetal do que do condado Portucalense. Mas é assim, parece que houve ali muito mais natureza do que racionalidade. E a força dessa natureza primitiva continua a larvar nas pedras e nas casas daquelas ruas. Só vive ali quem é pobre. E pobre há muito tempo. De uma pobreza de granito e exclusivista. Mas está viva e há lá muita gente com luz por dentro. E também muita gente quase morta e com um imenso vazio interior.
Logo no início da rua, encostado aos primeiros degraus de umas escadas de granito ergue-se o Oratório da Capela de São Sebastião. Lá dentro está a imagem em tamanho natural do Senhor dos Passos. Lá dentro, Jesus Cristo cai pela terceira vez a caminho do calvário com a cruz às costas. Um joelho por terra; a mão direita a agarrar a cruz, para que ela não caia e deixe de lhe pesar, e a mão esquerda que deveria estar a apoiar-se no chão, não o está. A mão caiu da longa manga da túnica e jaz em terra. Jaz com todos os dedos partidos menos o médio e o gesto obsceno surge e impõe-se gélido como um sacrilégio. Dois tocheiros ladeiam o Senhor do Passos: ao da esquerda, caiu-lhe o círio amarelo; ao da direita, o círio tombou e ficou apoiado na parede como um bêbado devasso. Uma sombra de pó e de solidão cobre tudo de abandono. Muitos vidros da porta de chapa foram partidos e no chão vêem-se umas moedinhas escuras de cêntimos que me fizeram lembrar umas trinta moedas de prata. Atiraram-nas lá para dentro como quem atira moedas na Fontana de Trevi. Pareceu-me então ouvir dizer o Senhor dos Passos dentro daquela prisão de granito: Ó geração incrédula! Até quando hei-de estar convosco? Até quando vos hei-de suportar?[1]. E comecei a subir as escadas que agora já me parecia que iam até ao calvário. Quando lá cheguei; quando cheguei ao cimo onde já não havia saída possível, pareceu-me que tinha caído numa armadilha mortal: naquele vazio granítico e murado, dezenas de embalagens de seringas pejavam o chão de pedra. Kits PREVENÇÃO SIDA com prazo de validade de Janeiro 2013 ofereceram uns momentos de paraíso a quem vive num inferno. Este Kit contém: 2 seringas; 2 filtros; 2 toalhetes; 2 recipientes (carica) 2 carteiras de ácido cítrico; 2 ampolas de água bidestilada; 1 preservativo. Quando o Senhor dos Passos chegar cá acima, a este calvário – pensei – só vai precisar de um martelo e de três pregos para ir para o Seu Paraíso.
Afonso Cabral
Nem sei o que comentar de tal modo é tocante este texto!
ResponderEliminarFaço minhas as palavras do meu irmão Joaquim e...acrescento (como diria Giovanni Guareschi) é belo e educativo!
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