Navegando pela minha cidade
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PENSO MAS NÃO EXISTO
Este stencil grafitado numa parede da Rua Alferes Malheiro tem-me dado que pensar. E isto porque gosto muito de tudo que sejam grafittis, setencils, e outras formas de expressão cultural e artística eminentemente urbana e marginal. Suja? Sim, pode sujar. Estraga? Sim, pode estragar. Não gostam? Sim podem não gostar. Mas eu gosto. Gosto da anarquia e do politicamente incorrecto. Gosto desta marginalidade artística e cultural. Liberta das escolas e dos manuais; dos estilos e das fases. Dos críticos oficiais e dos artistas conhecidos e reconhecidos. Porque interfere connosco; interfere comigo; interfere com a cidade. São a marca dos gritos; são o som da revolta; são as cicatrizes do amor; são as feridas da angústia; são a cor do desespero; são as flores da esperança; são o barómetro da idade; são o pulsar da cidadania subterrânea; são a irreverência de quem está vivo. É ilegal? Quero lá saber! Há tantas leis ilegais! Há tantas leis iníquas! Há tantas leis absurdas! Há tantas leis que sujam. Há tantas leis que matam! Matam e sujam o coração e a alma, que valem muito mais do que uma parede branca ou uma montra entaipada.
Só tenho pena que agora já comece a ter algum reconhecimento e até já lhe chamam street art em inglês e tudo. A burguesia acaba sempre por se apoderar da liberdade mais tarde ou mais cedo. A burguesia não é citadina e por isso não gosta da cidade. O burguês é o provinciano, o parolo das berças que veio viver para a cidade. Não tem raízes porque elas ficaram lá na terra. Não tem cultura porque não tem profundidade. Não tem nem chama nem garra nem paixões porque está cheio de si e dos seus relativismos convencionais e intolerantes. A sua pronúncia é simplesmente eufemística.
Mas esta frase que me faz pensar: mais ou menos penso mas não existo é um imenso gozo a Descartes e ao existencialismo ateu e marxista de Sartre. É assim: o artista diplomado faz da arte o absoluto, o grafitter relativiza-a. E por me fazer pensar cada vez existo mais na minha essência absoluta. E relativiza-me face ao Absoluto.
Mas tudo isto vem a propósito de uma pequenina frase pintada a spray de cor preta no canto de uma imensa parede grafitada com mil e uma cores: que eram caras de andy warhol; cães azuis sem pernas; palhaços sem circo; galinhas e aparelhos futuristas num caos com ordem ou não o fosse como ao princípio. Porque o grafitter tem mais ética e mais código de conduta que muitos empresários ou banqueiros. Tem mais respeito pela arte do outro que muito curador de museu de pintura. E essa pequena frase feita de duas palavras fascinou-me pela evidência da fragilidade do aprendiz e pela força do seu sentimento. E porque o amor tem sempre um nome. E o nome do amor tem sempre de ser gritado. Gritado na parede como se fosse gravado em mármore ou riscado a canivete no tronco de uma árvore. Este graffiter apaixonado não sabe de mármore nem de árvores, só conhece um canto livre de uma parede de um armazém abandonado e gritou apaixonadamente: AMO-TE KARINA.
Afonso Cabral
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