Navegando pela minha cidade
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Só posso dizer – para não gritar - que tudo isto é uma autêntica barbaridade. E é bárbaro porque os seres humanos são pessoas e as pessoas não são espécimes. E é duplamente bárbaro porque uma exposição não é um teatro anatómico nem uma aula de fisiologia de uma faculdade de medicina. O corpo humano é a parte visível e palpável do ser humano que é sempre único, irrepetível e insubstituível.
Acreditando que alguns homens tenham optado por doarem os seus corpos para a ciência médica só posso concluir que caíram num embuste miserável e num logro criminoso.
Que dignidade e que respeito há em pegar num corpo humano e depois de o ter despido das poucas roupas que deveria ter tido, despojá-lo completamente da sua pele? Pois é, os homens foram completamente esfolados como se fossem coelhos ou cordeiros e retalhados às postas até ao osso; abertos ao meio como frangos numa churrasqueira. Intestinos, coração, pulmões, braços, pernas e mãos espalhados num cenário de horror como um mercado no Iraque depois de um terrorista se ter suicidado com explosivos. Dizem que só fica a cabeça. A única e pequena diferença é a falta do sangue a empapar a terra e do cheiro a pólvora e a medo. De resto é exactamente igual, mas já tudo metido em caixas de acrílico muito transparentes, limpas e iluminadas. A um deles, depois de o terem despido, esfolado e lhe terem arrancado quase toda a carne, puseram-no na posição de um atleta imediatamente antes de arrancar para uma corrida de cem metros. E os olhos - o pouco que resta dele - fixam a meta numa angústia infinita. Pode haver maior escárnio? Outro - como se de um manequim se tratasse - posa de mãos nas ilhargas a apresentar um fato feito de si próprio, da sua própria carne, dos seus próprios tendões e dos seus próprios ossos. E olha em frente. Olha sempre em frente - preservado em borracha líquida de silicone - tal como uma raposa mal empalhada num café de província ou uma galinhola numa vitrina de um museu de ornitologia. E o seu olhar é de espanto, de susto e de medo.
E mais de cem mil pessoas; cem mil homens, mulheres e crianças foram ver este horror macabro. A onze euros e cinquenta cêntimos por bilhete (custo médio aos fins de semana e feriados) temos que a facturação foi superior a um milhão cento e cinquenta mil euros.
E mais de cem mil pessoas foram ver e a cidade não gemeu nem chorou por esta absoluta indecência feita ao corpo humano; que é sagrado e foi profanado e exposto da forma mais impudica possível: até à alma! Para sempre.
O meu grito fica-me preso na garganta e só consigo recordar em absoluto silêncio uma profecia do Livro dos Salmos sobre Deus que iria encarnar num corpo humano: Matilhas de cães me rodearam, cercou-me um bando de malfeitores. Trespassaram as minhas mãos e os meus pés, posso contar todos os meus ossos.
Nota: Por me recusar a dar um cêntimo para o bolso destes taxidermistas de seres humanos, descrevi o que vi na internet.
Afonso Cabral
2011.02.08
Este notável escrito do Afonso não é só para ler mais ou menos com pausa.
ResponderEliminarÉ, na minha opinião, para ler várias vezes, com muito vagar e meditando nas "verdades como punhos" que nele constam.
Noutros tempos - não muito longínquos - se apresentavam em barracas de feira, seres humanos que a natureza tinha criado disformes e, inclusive, se fizeram filmes sobre o mesmo tema - lembro-me do "Homem Elefante".
Claro que, hoje em dia não há essas barracas de feira abertas à curiosidade mórbida de pessoas sem categoria nenhuma, mas, hoje em dia, a "barraca de feira" recebe o nome pomposo de EXPOSIÇÂO com uma suposta finalidade cultural.
Também não me atrevi a dispensar os onze euros da visita,porque, como aconteceu ao Afonso, me horrorizou o que vi na NET.
E as crianças? Que culpa têm de que os "grandes" não tenham critério?