Navegando pela minha cidade |
A Rua do Monte dos Burgos é uma das principais artérias a norte da cidade com acesso à Circunvalação. É uma rua de trânsito intenso pois é uma das principais entradas e saídas da cidade. A cerca de vinte metros dos semáforos do cruzamento desta rua com a Circunvalação há uma casa que está abandonada há bem mais de vinte anos. É uma casa típica dos anos trinta ou quarenta com rés-do-chão e primeiro andar. A entrada principal é no primeiro andar por onde se chega subindo uma escada exterior de granito. No cimo há um pequeno alpendre e a porta da entrada. Na parede exterior, debaixo do alpendre tem um painel de azulejos com uma cena campestre que poderia ter sido tirada do filme As Pupilas do Senhor Reitor. À esquerda da porta de entrada, por cima dos primeiros degraus da escada, há uma janela de uma das salas da casa.
Ao longo dos anos tenho assistido à lenta degradação típica de uma casa desabitada. Primeiro foram as ervas e as plantas daninhas que crescendo e secando com o passar das estações do ano e que em camadas sucessivas criaram um matagal misturado com plásticos, papeis, garrafas e lixo que o vento e as pessoas para lá iam atirando através das grades do portão. Depois foram as janelas e vidros partidos que caíram de podres e deram entrada às pombas que dela fizeram um prolífico pombal; e depois os toxicodependentes que a transformaram numa casa de chuto.
Durante o passar dos anos em que eu ia assistindo a esta decadência, ia também pensando que com as pessoas acontece algo muito semelhante se nos deixarmos desabitar. Ou seja, se vamos concedendo espaço ao nosso egoísmo; se vamos alinhando com a maioria; se vamos fazendo concessões ao laxismo; se nos deixamos ir na corrente; se não actualizamos a nossa formação; se nos deixamos dominar pelo relativismo reinante; se não limpamos as nossas ervas daninhas. Enfim, usando uma frase muito conhecida: quando não vivemos conforme pensamos acabamos a pensar conforme vivemos.
Mas um dia alguém fez alguma coisa naquela casa desabitada. De um dia para o outro todas as janelas e portas foram tapadas com tijolos. A casa foi entaipada. E aquela casa que era um pombal e um refúgio para desgraçados passou a ser como que uma espécie de sepulcro vazio. Passou a ser uma casa totalmente desalmada. E assim ficou durante muitos e muitos anos. Até ao Natal passado.
Num dia de Dezembro, a janela tinha vidros e lá dentro via-se bem uma árvore de Natal com bolas de todas as cores e tudo. A porta de entrada estava perfeita com todos os seus relevos, entalhes, puxador, ranhura de entrada para o correio e uma grande Coroa do Advento pendurada. Uma imensa assinatura prateada tapava o bucólico painel de azulejos como se fosse o oiro, o incenso e a mirra.
O que aconteceu foi que um grafitter – um artista dessa arte urbana e marginal de que eu tanto gosto - tinha pintado isto tudo sobre os tijolos que entaipavam a janela e a porta fazendo – momentaneamente – o efeito de tromp l’oeil.
E eu dei por mim a pensar que também muitas pessoas desabitadas enchem as suas casas de luzes e luzinhas a piscar numa árvore e penduram pais natal por fora. E que isto também produzia um efeito de tromp l’âme e que não era menos falso que o natal grafittado nos tijolos que entaipavam aquela casa.
Mas foi então que ouvi no meu coração o Menino Jesus a dizer-me suavemente: Foi para esses que eu nasci.
Afonso Cabral
Belíssimo e profundo!
ResponderEliminarObrigado.
Bem sei que sou suspeito já que conheço a verve literária do Afonso.
ResponderEliminarSinto-me muito bem com o convite que fiz e foi aceite, em colaborar em NUNC COEPI.
Atrevo-me a esperar que a colaboração quinzenal passe...a semanal!
Um abraço amigo e grato
António