Nota: NUNC COEPI sente-se extremamente honrado por publicar em primeira mão, o notável texto que se segue.
DEUS-FAMÍLIA E A FAMÍLIA DE DEUS
Encontro Nacional de Responsáveis das Equipas de Nossa Senhora
(Fátima, 27 de Novembro de 2010)
Quando muito amavelmente fui convidado para tecer, neste Encontro Nacional de Responsáveis das Equipas de Nossa Senhora, algumas breves considerações sobre o matrimónio cristão como caminho de santidade[1], cometi dois erros de que, antes de mais me quero penitenciar ante esta tão ilustre, sábia e santa assembleia.
O meu primeiro pecado foi aceitar, quando a prudência e a mais elementar humildade teriam aconselhado uma prudente recusa, para a qual não seria difícil encontrar, senão uma razão válida, pelo menos um pretexto verosímil, que a boa-fé dos organizadores, a quem aproveito para agradecer a amabilidade do convite, certamente não iria rejeitar. Talvez levado por uma súbita precipitação, ou pelo desejo de não contrapor à delicadeza da proposta que me foi feita a grosseria de uma recusa, a verdade é que não declinei o desafio que me foi sugerido e que, sem falsa modéstia, devo reconhecer que ultrapassa as minhas capacidades. Às minhas vítimas, peço pois que me desculpem o atrevimento e que não se esqueçam de por mim rezarem, nem que mais não seja para que, de futuro, não se encontrem em tão aflitivo transe.
A segunda falta de que tenho que me acusar publicamente, é a de ter aceite dissertar tão brevemente sobre um tema que não só exigiria um orador mais competente e santo, como também um mais generoso tempo de exposição.
Conta-se que um estudioso da literatura inglesa foi convidado a abordar o tema da sua especialidade numa universidade norte-americana. Quando questionou o seu anfitrião sobre o tempo de que dispunha para a sua dissertação, foi-lhe dito que lhe estavam reservados oito minutos. Perplexo, retorquiu:
- Mas, como é que em oito minutos posso falar de toda a história da literatura inglesa?!
O seu anfitrião, o magnífico reitor da universidade estrangeira de que era hóspede, disse-lhe então, com ar de grande sabedoria:
- Olhe, se tem dificuldade em falar do seu tema em oito minutos e quer um conselho de amigo, fale muito devagar!
Pelos vistos, o professor americano não se tinha ainda apercebido de que os ditos oito minutos não eram excessivos, mas terrivelmente escassos para um razoável tratamento da questão proposta.
Outro tanto se poderia aqui dizer também em relação à família e ao matrimónio cristão, temáticas que, para uma sofrível abordagem filosófica, teológica e jurídica, exigiriam, como é óbvio, uma demorada análise[2]. Na impossibilidade de dispor de mais tempo do que o que me foi concedido, esta minha intervenção não irá além de alguns breves tópicos, na expectativa de que os ouvintes tenham por bem decifrar depois o que aqui se vai dizer de forma um tanto ou quanto telegráfica.
Ainda uma última advertência introdutória. Para o desenvolvimento do tema em epígrafe, não posso exibir nenhuma habilitação específica, na medida em que não sou teólogo encartado, não me dedico à filosofia, nem à sociologia, não cultivo o estudo da Bíblia e também não sou, em sentido profissional, um canonista. Neste sentido, esta abordagem não releva nenhuma especial competência do orador, salvo aquela sabedoria de experiência feita, como dizia o poeta, que decorre destes já quase vinte e cinco anos de intensa e exclusiva dedicação ao trabalho pastoral, quase sempre entre jovens universitários e casais. Foi portanto na escola da vida ou, melhor dizendo, na escola viva que é a Igreja que somos, que aprendi a conhecer e a amar o matrimónio cristão, primeiro na vida dos meus pais e, depois, na expressão gozosa, luminosa, dolorosa e gloriosa de tantos casais cristãos, «casais provados, casais venturosos, casais fiéis»[3], nomeadamente das Equipas de Nossa Senhora, que me ensinaram, com o exemplo da sua santidade, a grandeza da vocação matrimonial.
Sinto pois a obrigação de vos saudar com especial afecto e consideração, ao mesmo tempo que me reconheço, sem falsa humildade, vosso discípulo. Quero agradecer a vossa fidelidade a Deus e à Igreja e a vossa lealdade ao vosso compromisso matrimonial, recordando as muito expressivas palavras do Papa Paulo VI a casais deste Movimento: «preparais para a Igreja e para o mundo uma nova primavera, cujos primeiros rebentos nos fazem estremecer de alegria. Vendo-vos, tendo presentes no pensamento os milhões de casais espalhados por todo o mundo, sentimo-nos cheios de uma irreprimível esperança»[4].
2. O Gigante Egoísta ou a mentira de um deus em que não creio.
Permitam-me que remeta para a Santíssima Trindade o início desta exposição, muito embora um tão transcendente mistério pareça de todo alheio à realidade matrimonial, bem mais prosaica do que essa sublimidade divina. Mas a verdade é que não cabe nenhuma reflexão teológica que não nasça da nossa compreensão do mistério revelado de Deus, uno e trino. Atrever-me-ia até a dizer que um cristão que ainda não captou as implicações práticas e existenciais da Santíssima Trindade, desconhece o fundamento da sua fé e, por isso, é incapaz de dar razão da sua esperança[5].
Antes ainda de evocar o mistério trinitário, vem a propósito citar um famoso conto de Oscar Wilde, o genial escritor irlandês que, depois de um muito atribulado percurso espiritual, veio a falecer no seio da nossa Igreja[6]. O Gigante Egoísta é, simultaneamente, o título da obra[7] e a designação da sua principal personagem: um terrível proprietário de uma imensa mansão, vedada por uns altíssimos muros. No seu soberbo jardim, onde abundavam as plantas mais exóticas, não havia vida, «de modo que havia sempre inverno ali e o vento norte, e o granizo e a geada e a neve dançavam por entre as árvores»[8], porque a inexistência de amor é mais dramática para as plantas do que a ausência da água, de que tanto necessitam para a sua subsistência.
Um dia, por um buraco na vedação que traçava o limite da propriedade, esgueiraram-se umas crianças que, muito a medo, se aventuraram por aqueles domínios proibidos «e as árvores sentiam-se tão contentes, por ver as crianças de volta, que se cobriram de botões e agitavam seus galhos gentilmente por cima das cabeças das crianças. Os pássaros revoluteavam e chilreavam, com deleite, e as flores riam, apontando as cabeças por entre a relva»[9].
Os miúdos voltaram lá mais vezes, sempre de olho atento à chegada do dono, cuja severidade receavam porque, em qualquer momento, as poderia surpreender e castigar pela sua abusiva invasão. O que tanto temiam, aconteceu um dia: enquanto corriam, brincavam e saltavam entre os canteiros ressuscitados pela sua presença e pela sua alegria, surgiu ao longe o terrível gigante.
Mal o viram, avançando para eles ameaçadoramente, fugiram a sete pés, atropelando-se uns aos outros, mas o mais pequenino dos intrusos não conseguiu acompanhar os seus colegas de brincadeiras proibidas e foi apanhado pelo dono do enorme parque, cujas imensas manápulas eram quase maiores do que ele. A primeira reacção do petiz foi de pavor: os seus olhos, muito abertos, fitavam o monstro, enquanto um fio de lágrimas escorria pela face, como que implorando um perdão que a proverbial severidade do gigante não consentia. Apesar do desfecho dramático que se adivinhava, a verdade é que a alma do mostrengo se comoveu e, inesperadamente, sorriu para aquela criança.
Depois, destruiu o inóspito muro que interditava a sua propriedade, para que todos os meninos pudessem correr à vontade por aquela magnífica quinta[10]. Até as flores e as árvores, antes tão sombrias, sorriram à chegada da primavera do amor, uma vez ultrapassado para sempre o inverno do egoísmo daquele colosso, que o choro de uma criança teve o condão de ressuscitar para a verdadeira vida.
A parábola de Oscar Wilde prossegue, mas o que aqui já foi lembrado basta para que se compreenda o seu sentido. Na realidade, este gigante egoísta mais não é do que uma versão literária de Deus: na sua primeira etapa, a de um deus solitário que, segundo as religiões pagãs, habita os confins do universo. Na sua última fase, o gigante pródigo de amor é, de algum modo, uma alegoria da revelação cristã de Deus.
Desculpem-me a irreverência, mas há um deus em que não acredito. É aquele primeiro gigante, o deus egoísta que veda aos homens, com o limite das suas prescrições, a fruição das flores e dos frutos do seu jardim. Esse deus que teima em não ouvir as queixas humanas, que não atende as orações das crianças, que não ouve as preces dos humildes, esse deus, é um deus em que eu não creio. Esse gigante solitário que é insensível à fome, à guerra, à injustiça e até à dor das mais inocentes de todas as criaturas é um deus em que não acredito.
E, contudo, esse deus implacável é o que domina ainda muitas mentes e não poucos corações. Foi porventura esse deus que Friedrick Nietzsche[11] declarou morto e que os ateus ingleses deram também por finado, quando fizeram circular nos autocarros do seu país o seguinte slogan: «Deus provavelmente não existe – goze a vida!».
Por paradoxal que possa parecer, muitos dos primeiros cristãos foram condenados à morte por serem ateus. A razão é fácil de explicar: como não adoravam as divindades pagãs, nem muito menos o imperador romano, a sua atitude foi tida por ímpia e blasfema, e ainda por crime de lesa-majestade. Tinham razão os que sentenciaram com a pena capital aqueles primeiros mártires, porque eles, verdadeiramente, na medida em que não criam num deus solitário[12] e vingativo, como o gigante egoísta, eram ateus. E eu, nesse mesmo sentido, sou-o também.
3. Deus-Família: a Santíssima Trindade.
O gigante egoísta primitivo corresponde, como se disse já, à ideia de Deus que têm muitos dos nossos contemporâneos. Infelizmente, talvez até alguns cristãos se revejam nesta lamentável concepção. E não me resta qualquer dúvida de que um tal entendimento do Ser divino é a mais terrível e diabólica tentação, a expressão mais diametralmente oposta da verdadeira natureza divina, tal como nos foi revelada em Cristo Nosso Senhor.
Com efeito, o discípulo que o Senhor amava disse que Deus é amor[13], expressão que serviu de título à primeira encíclica do Papa Bento XVI[14]. Ora esta afirmação é a que melhor define e resume, por assim dizer, a natureza divina. Se Deus é amor e, ao mesmo tempo a Igreja confessa que a unidade da substância divina se resolve na trindade das pessoas, como consta na definição dogmática da Santíssima Trindade, é porque um amor que não é comunhão não é digno desse nome[15].
De facto, o amor-próprio mais não é do que expressão de egoísmo, daquele mesmo egoísmo que é sinónimo da morte, porque só da relação com o outro nasce a vida. Se Deus fosse uma só pessoa, o seu amor seria necessariamente amor-próprio, ou seja, um sentimento egoísta, logo não seria, em sentido próprio, amor. A solidão do gigante é a expressão do seu egoísmo e, por isso, quando descobre o outro, descobre também o amor. Sem o outro, o gigante nunca teria deixado de ser egoísta, porque o seu amor não teria outro objecto que não fosse o seu próprio eu.
A fé católica ensina que o único Deus é trino, porque é amor na relação do Pai e do Filho e do Espírito Santo: é o amor a razão pela qual o eterno Pai gera o seu Filho Unigénito e é o amor filial do Verbo o princípio de que procede a terceira Pessoa divina, à qual, entre outros nomes próprios, cabe também o de Dom e, precisamente, o de Amor. Não obstante a absoluta necessidade das relações inter-trinitárias, todas as processões das divinas Pessoas são motivadas pela liberalidade do amor, que é a total doação de cada Pessoa – por isso, tudo o que há na pessoa do Pai, há também na do Filho e na do Espírito Santo, porque as três são co-eternas e co-iguais, não obstante a sua distinção pessoal – e a comunhão das três na única essência, que é Deus[16].
O paradigma do amor humano e, portanto, do matrimónio e da família cristã, não pode ser encontrado senão no modelo da Santíssima Trindade, ou seja, na realidade viva do Deus vivo, que é Pai, Filho e Espírito Santo. A Santíssima Trindade, que é a expressão do Amor que é origem da vida, é o exemplo a que deve corresponder a vida familiar e, por maioria de razão, o matrimónio cristão.
À emergência social de casamentos atípicos, entendidos como um mero exercício de libertário hedonismo, há que contrapor o matrimónio cristão, que não obedece apenas nem principalmente a uma razão de auto-satisfação, mas de entrega e serviço, na consumação de uma doação total e irreversível, que é fecunda, ou seja, origem da família. Frente ao casamento individualista e infecundo da sociedade pós-moderna, a Igreja reivindica o matrimónio natural, fundado na complementaridade dos sexos e na geração, que é também o modelo institucional que convém ao homem e mulher, enquanto são, cada qual a seu modo, imagem e semelhança do Criador. Com efeito, também em Deus há uma união de que nasce a vida, na medida em que o Amor que Deus é[17], é o princípio de que procedem as próprias Pessoas divinas que, por isso, são, na unidade do Espírito Santo, Pai e Filho, ou seja, recebem nomes familiares, relativos à sua respectiva paternidade e filiação[18].
Conta-se que um medíocre aluno da catequese, sendo examinado sobre o mistério da Santíssima Trindade, conseguiu a custo referir as duas primeiras pessoas, mas não havia forma de se lembrar do Espírito Santo. Com o intuito de o fazer recordar a lição esquecida, o catequista ajudou-o a raciocinar nos seguintes termos:
- Então, se há um Pai e um Filho, quem é que falta?!
- A mãe! – respondeu, de imediato, o infeliz examinando.
Se há que reconhecer que, em termos catequéticos, não era essa a resposta correcta, é também verdade que ao mau aluno não lhe faltou intuição, porque entendeu a natureza familiar de Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – que é o modelo que a família humana deve imitar. «A família cristã» – como ensina o Catecismo da igreja Católica – «é uma comunhão de pessoas, vestígio e imagem da comunhão do Pai e do Filho e do Espírito Santo»[19].
Se a lei civil contempla vários tipos de casamentos, até ao ponto de considerar como conjugal uma união precária, ou até um aberrante pacto entre duas pessoas do mesmo sexo[20], importa salvaguardar a identidade do matrimónio cristão. Neste sentido, o que especifica o casamento católico é precisamente a sua essência trinitária, na medida em que não se esgota na mera satisfação pessoal, nem sequer na relação conjugal, porque exige sempre, pelo menos como intenção, a geração. É, portanto, um matrimónio-família.
4. A Igreja, família dos filhos de Deus.
Se a revelação da Santíssima Trindade contradiz a noção de um ser absoluto solitário e egoísta, como o gigante do conto de Oscar Wilde, a nossa participação nesse mistério desfaz a distância que, enquanto criaturas, poderia separar-nos do Criador. Ou seja, deita abaixo aquele alto muro que vedava às crianças da parábola os maravilhosos domínios do desumano proprietário.
Com efeito, Deus não só é família – porque é Pai, Filho e Espírito Santo – mas Deus é também e principalmente a nossa família. Não por mérito nosso, nem da nossa natureza, infinitamente inferior à do nosso Deus e Senhor, mas por graça da nossa elevação à ordem sobrenatural, pelo mérito da Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo[21]. É por Ele, com Ele e n´Ele que podemos chamar a Deus nosso Pai, porque é na sua filiação divina que também nós somos, ainda que de outro modo, verdadeiramente filhos de Deus[22].
A realidade deste novo estatuto é o cerne de toda a revelação cristã e, por isso, não espanta que o evangelista São João a refira como o cúmulo e a síntese de todas as graças da redenção em Cristo: «a todos os que o receberam, àqueles que crêem no seu nome, deu poder de se tornarem filhos de Deus; eles que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus»[23]. É também o discípulo que o Senhor amava com especial amor de predilecção quem manifesta, numa das suas cartas, o seu assombro pela realidade desta filiação que, mesmo sendo adoptiva, é real, porque decorrente de uma autêntica geração: «Considerai que amor nos mostrou o Pai: que sejamos chamados filhos de Deus – e nós o somos! […] Caríssimos, agora somos filhos de Deus»[24]. São Pedro, por sua vez, atesta o fundamento ontológico desta relação de filiação sobrenatural, quando afirma que, por obra e graça da acção de Cristo nas nossas almas, no momento da nossa regeneração baptismal, a criatura humana é elevada à condição sobrenatural, ou seja, verdadeiramente participa da natureza divina[25].
Com efeito, há geração quando há comunhão de essência, na medida em que quem gera transmite ao ser gerado a sua própria natureza, pelo que uma filiação que não implique participação na mesma natureza não será verdadeira, mas aparente. Ora a filiação divina do cristão não é fictícia, mas real e expressiva de uma verdadeira semelhança sobrenatural, que é diferente e superior à que corresponde à criatura racional enquanto imagem e semelhança do Criador[26].
Também São Paulo centra toda a esperança cristã na realidade desta filiação, que é obviamente o grande título de glória do cristão: «ora nós sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus, para o bem daqueles que, segundo o Seu desígnio, foram chamados. Porque os que Ele conheceu na Sua presciência, também os predestinou para serem conformes á imagem do Seu Filho, para que Ele seja o primogénito entre muitos irmãos. E aqueles que predestinou, também os chamou, e aqueles que chamou também os justificou e aqueles que justificou, também os glorificou»[27].
Se tivermos em conta que os judeus entendiam que era desrespeitoso invocar o Santo Nome de Deus e que, por isso substituíam-no por expressões sinónimas, como Senhor dos Exércitos, Altíssimo, etc., compreende-se o enorme escândalo que causou Nosso Senhor, não só quando afirmou que Ele era o Filho de Deus[28], mas também quando disse que, ao rezarmos ao Criador, deveríamos tratá-lo familiarmente por Pai[29] e falar-Lhe com toda a confiança e a intimidade própria de um diálogo filial[30].
É no contexto desta privilegiada relação com Deus que se deve entender também a especial exigência de perfeição a que está obrigado, por força da sua condição, o cristão. A graça da sua sobrenatural participação na natureza divina[31], alimentada pelos Sacramentos da Igreja e pela oração, é título que o habilita para a perfeição da caridade, ou seja, para a santidade: «sede pois perfeitos, como o vosso Pai celestial é perfeito»[32]. Não é utópico o ideal da santidade cristã, como também não é excessiva a imposição da unidade e da indissolubilidade conjugal, muito embora estes objectivos sejam humanamente falando, inacessíveis. Contudo, não o são para o cristão que vive na graça divina e que, ciente da sua condição de filho de Deus, encontra nessa sua participação da natureza divina a força de que necessita para o fiel cumprimento da sua missão eclesial.
Nosso Senhor Jesus Cristo foi categórico quando se expressou, de forma inequívoca, sobre as capacidades naturais do ser humano: «sem Mim, nada podeis fazer»[33]. O propósito da santidade cristã não é exequível apenas com as virtudes naturais, nem pode ser acometido só com a força da razão e da vontade humana que, por mais excelentes que sejam, ficam sempre muito aquém da perfeição da santidade. Mas o que a força da natureza racional não consegue, por si só, alcançar, é atingível pelos meios sobrenaturais. Assim o afirma taxativamente São Paulo, na carta aos filipenses, quando afirma que tudo pode n’Aquele que o conforta[34].
5. A Família de Deus.
Se é verdade que Deus é Família, na medida em que a fé católica ensina que o único Senhor é Pai, Filho e Espírito Santo, também importa não esquecer que o próprio Deus, ao vir a este mundo, quis nascer, viver e morrer no seio de uma família que, por esse motivo, se pode chamar, com toda a propriedade, a família de Deus.
Muitas vezes, quando se considera a família do Filho de Deus, tende-se a sobrevalorizar o que nessa estrutura social houve de excepcional, em prejuízo do que nessa família foi, pelo contrário, muito natural. É evidente que não se pode ignorar a forma absolutamente excepcional como Maria, a Mãe de Jesus, concebeu no seu seio imaculado ou como, mantendo-se virgem, deu á luz o seu Filho primogénito[35], o Filho unigénito do eterno Pai[36]. Também não se pode omitir o modo sobrenatural como o seu marido, José, foi elucidado em relação à concepção de sua mulher, por forma a entender que o que em Maria se tinha realizado era obra do Espírito Santo[37]. Mas, para além destas imprescindíveis intervenções divinas, a vida da Sagrada Família viveu o que é próprio e comum às restantes famílias, precisamente para que pudesse servir de exemplo e modelo para todas as famílias, sobretudo as cristãs.
Ao contrário do que o qualificativo de «sagrada» poderia levar a crer, a vida familiar de Jesus, Maria e José não beneficiou de nenhum estatuto especial, em virtude do qual estivessem isentos das agruras a que estão expostas as nossas famílias. Se algum privilégio lhe foi dado, para além da graça de ser o lar do próprio Filho de Deus, foi principalmente a bênção da Cruz, pois não houve contrariedade ou privação que não se abatesse sobre aquela bendita família de Nazaré.
Maria e José, já depois de legalmente casados, sofreram a terrível ameaça de uma dolorosa separação, que só in extremis foi evitada pela aparição de um Anjo ao amargurado esposo[38]. O nascimento do filho de Maria, que o seria também, legalmente, de José, em vez de ser um momento de alegria e de felicidade familiar, como costuma acontecer em todos os lares, foi um autêntico drama, não apenas pela ausência das mais elementares condições materiais, mas também pela solidão então experimentada e pela posterior perseguição, que obrigou a família a expatriar-se[39]. A Sagrada Família experimenta então o desterro, ou seja, uma vida errante, pelo menos até que foi possível encontrar uma morada e um ofício que permitisse a modesta sustentação do recém-nascido e de seus pais[40]. Nem as vicissitudes a que são expostos, por regra, os progenitores dos adolescentes, foram poupadas a Maria e José que, cheios de angústia, perderam, sem culpa própria, o seu Filho, para O encontrarem apenas três dias depois, ensinando no templo[41].
As dificuldades sem conta por que passou a Sagrada Família são tanto mais significativas quanto Jesus possuía, desde o momento da sua concepção, todos os poderes que são atributo da sua divindade. Mas nem sequer esses seus poderes excepcionais foram de alguma valia para seus pais, porque Nosso Senhor fez questão de não fazer nenhum milagre para seu proveito, nem para o bem de Maria Santíssima ou do Santo Patriarca. Com efeito, o primeiro milagre de Jesus é realizado já depois de ter abandonado a casa familiar em Nazaré e de ter iniciado a sua vida pública e, ainda que feito a instâncias de sua Mãe, não foi feito sequer em seu benefício[42].
Não deixa de ser impressionante que Jesus, que ressuscitou Lázaro[43], o filho da viúva de Naim[44] e a filha de Jairo[45], não tivesse impedido a morte de São José ou, uma vez esta acontecida, o não tivesse chamado de novo à vida. Se, para que a viúva de Naim não ficasse só, lhe devolveu com vida o seu filho morto, porque não deu a Maria o consolo da companhia do seu esposo, sabendo Jesus que sua Mãe iria ficar sozinha, depois da sua morte e posterior ascensão aos Céus?! Não merecia Nossa Senhora muito mais do que aquela desconhecida mãe de um filho qualquer?! E, se o amor de Jesus pelo seu amigo Lázaro, bem como a súplica humilde e insistente de Marta e Maria, foi razão suficiente para o restituir à vida depois de morto, porque o não foi o seu amor filial por São José, de quem gostaria muito mais do que do seu amigo Lázaro?! Porque não bastaram, para o efeito, as lágrimas de dor e de saudade de sua Mãe?!
Jesus, que multiplicou os pães e os peixes e alimentou, de uma só vez, milhares de pessoas[46], nunca fez nenhum gesto extraordinário que suprisse o trabalho de seus pais no que respeitava ao sustento familiar. Jesus, que com uma simples ordem, encheu até ao topo seis talhas de bom vinho[47], nunca recorreu à sua omnipotência para rechear a despensa da sua morada familiar. Jesus, que prometeu à samaritana uma água viva que jorra para a vida eterna[48], nunca ofereceu à sua Mãe a graça de um abastecimento domiciliário e gratuito de água natural, que a teria dispensado do dever quotidiano de se abastecer no poço mais próximo. Jesus, que levantando-se na barca, imperou sobre os ventos e as ondas do mar, fazendo que cessasse nesse mesmo instante a tempestade que sobre a embarcação se abatia[49], nada fez para defender os seus pais da cruel perseguição que Herodes, por sua causa, moveu contra a sua família[50]. Jesus, que prometeu reconstruir o templo de Jerusalém em três dias[51], não recorreu à sua omnipotência para providenciar uma modesta morada para a sua família, quando em Belém lhe foi recusada qualquer pousada[52]. Também no Egipto e em Nazaré, não consta que o todo-poderoso tenha suprido com o seu poder as necessidades de uma casa para si e para os seus pais, que tiveram que a adquirir com o suor do seu rosto.
E até mesmo quando só, nu, crucificado entre dois malfeitores, desprezado e pelos seus próprios discípulos abandonado, Jesus morre na Cruz, não usa as suas prerrogativas divinas para providenciar o sustento de sua Mãe. Ele, que nesse momento teve poder para conceder o Céu ao ladrão arrependido[53], não ofereceu sequer um pedaço de terra a Nossa Senhora, que dele poderia carecer para o seu sustento. Não tendo Jesus irmãos de sangue que O pudessem substituir nas suas obrigações filiais depois da sua ascensão ao Céu, viu-se na contingência de confiar Nossa Senhora ao único apóstolo que lhe restava[54] e que o Senhor amava com especial predilecção, o qual, por ser também o discípulo adolescente, mais do que um apoio para Maria, iria porventura ser para Nossa Senhora mais um novo motivo de preocupações e de cuidados maternais.
6. A «equipa» de Nossa Senhora e São José.
Talvez seja um pouco temerário afirmar que Nossa Senhora e São José constituíam uma equipa do vosso Movimento, mas não restam dúvidas de que os dois foram, em certa medida, uma equipa, na medida em que o casal foi, conjuntamente, protagonista da maior aventura matrimonial e familiar jamais ocorrida à face da terra. Como essa singular equipa era a de Maria, não será infundado considerar que ambos foram, em certo sentido, a Equipa de Nossa Senhora[55].
Como modelo que são para todos os casais cristãos e, em especial, para todos os equipistas, que não em vão se denominam de Nossa Senhora, é bom que se medite no percurso e vivência deste bem-aventurado casal e que dessa reflexão se retirem ensinamentos que iluminem as actuais experiências conjugais e familiares.
Para este efeito, uma primeira observação se impõe: a de esclarecer que, não obstante a excelsa dignidade da Mãe de Deus e do seu castíssimo esposo, a sua vida familiar foi também sujeita às provações que afligem muitos dos casais modernos, bem como às dificuldades que sofrem as famílias do nosso tempo. Com efeito, Maria e José não só tiveram que fazer frente a inumeráveis inimigos externos, como também tiveram que experimentar dolorosas tensões internas, não só ao nível do próprio relacionamento conjugal, como também no que respeita à relação com o seu filho, Jesus. Muito embora tenha sido uma família especialíssima, é uma referência muito válida e actual para todas as famílias, cujas dificuldades, por dramáticas e originais que possam parecer, são sempre uma réplica, mais ou menos perfeita, das vicissitudes padecidas pela família de Jesus, Maria e José. Neste sentido, os mistérios gozosos, luminosos, dolorosos e gloriosos do Santo Rosário são também, de algum modo, as histórias das famílias cristãs, à imagem e semelhança da Sagrada Família de Nazaré.
É verdade que, no seio da família de Deus, nunca se deu nenhum pecado, porque o não podia fazer o seu Filho Unigénito, nem sua Mãe Imaculada, nem certamente o seu fidelíssimo marido. Mas não se pense contudo que, por esse motivo, entre os membros desta família nunca houve nenhum desentendimento ou quaisquer dificuldades de relacionamento.
Os Evangelhos dão conta de duas situações trágicas, aqui já sucintamente referidas: primeiro, ao nível do casal, quando José pensa muito seriamente abandonar Nossa Senhora, por entender que não deve permanecer a seu lado quando der à luz a um filho que não é dele[56]; e, depois, no que respeita à relação com o filho, quando Maria e José perdem Jesus e só O encontram depois de três dias de angustiosa busca[57].
Qualquer uma destas situações trágicas não se deveu a nenhum inimigo externo, mas a circunstâncias de certo modo imputáveis aos próprios membros da Sagrada Família, na medida em que Maria, por hipótese, poderia ter informado o seu marido da origem divina da sua virginal concepção[58], ou Jesus poderia ter tomado a iniciativa de explicar a seus pais que era vontade de Deus que permanecesse vários dias no templo, antes de regressar a Nazaré, propósito a que seguramente Nossa Senhora e São José dariam, com gosto, o seu consentimento, evitando-se assim a terrível prova a que foram ambos expostos durante todo o tempo em que ignoraram o paradeiro do seu divino filho[59].
Se nada teria custado a Maria pôr São José a par da anunciação do Anjo, nem a Jesus comunicar aos seus pais da terra o mandato recebido do seu Pai do Céu, porque o não fizeram, se os próprios, mais e melhor do que ninguém, sabiam que, actuando da forma como agiram, iriam fazer sofrer terrivelmente precisamente aqueles de quem mais gostavam?!
Nós somos a razão pela qual Jesus e Nossa Senhor não procederam como seria mais lógico e natural. Com efeito, só assim nos podiam ensinar a não perder a fé, nem a esperança, nem a caridade quando as nossas famílias são provadas por dificuldades semelhantes. A vida conjugal passa por um período crítico? Ao marido, ou à mulher, ocorre a tentação de abandonar o lar? Pois bem, é chegada a hora do casal, que o Senhor permite que seja provado com essa tribulação, se inspirar no exemplo de heróica fidelidade de Maria e de José e, consequentemente, reforçar a sua união, porque «a caridade é paciente, é bondosa; a caridade não é invejosa, não é arrogante, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda ressentimento pelo mal sofrido, não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade»[60].
A família sofre a inexplicável ausência ou ingratidão de um filho? Que os pais se revejam então na angustiante dor de Maria e de José e, como eles, procurem no templo o seu filho extraviado, ou seja, pela sua perseverante, confiada e humilde oração, procurem a reconciliação e acolham esse seu pródigo filho, porque a caridade «tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, [e] tudo suporta»[61].
Sem ânimo de esgotar o tema, nem a paciência das pessoas que fazem o favor de me ouvir, atrever-me-ia a dizer que também a relação conjugal dos esposos de Nazaré não foi, como se costuma dizer, um mar de rosas ou, se o foi, não faltaram os correspondentes espinhos. Porquê? Por uma razão muito simples e que também é a causa de muitas desavenças e desentendimentos conjugais: os diferentes modos de ser de Nossa Senhora e de São José. Eram ambos santos, sem qualquer dúvida, mas a imensa virtude de cada um deles, a seu modo, não impediu que cada qual tivesse que lutar para compreender e amar o outro, precisamente porque os seus temperamentos eram muito diferentes. Ainda que Maria e José partilhassem o objectivo da santidade, no comum empenho da mútua fidelidade e generosa entrega à geração, não foram poupados às dificuldades inerentes à diversidade das suas personalidades tão díspares. É aliás muito natural que assim seja, pois o modo de ser masculino difere do feminino, muito embora ambos sejam iguais em dignidade e santidade.
Ainda que escassas, as alusões bíblicas às características mais relevantes das personalidades de Maria e José permitem chegar a uma conclusão curiosa, qual é a da sua muito acentuada diversidade.
Com efeito, quase sempre que Nossa Senhora é protagonista de algum acontecimento evangélico, é-nos dado ouvir a sua voz: estabelece uma longa conversa com o Arcanjo São Gabriel no momento da Anunciação[62]. Quando a Mãe de Jesus vai visitar a sua prima Santa Isabel, a voz da sua saudação chega imediatamente aos ouvidos da mãe do Baptista, talvez até antes de estabelecido qualquer contacto visual[63]. À exultação de sua parenta, que elogia a Mãe do seu Senhor, a humilde donzela de Nazaré responde com um extenso e lindíssimo cântico de acção de graças, que quotidianamente a Igreja repete no ofício de Vésperas[64]. Quando Jesus se perde e é depois achado no templo, é Maria quem lhe dirige a palavra[65]. Em Caná da Galileia, é também Nossa Senhora quem fala[66], chamando a atenção do seu Filho para a ausência de vinho que, se não fosse milagrosamente suprida, poderia ter reduzido aquele banquete nupcial à dramática dimensão de um verdadeiro copo-de-água, no seu sentido mais literal … E não é apenas com Jesus que fala, pois também dirige a palavra aos criados, aos quais pede que façam tudo o que o Mestre lhes disser[67].
Estes exemplos chegam para concluir que Maria, como aliás a grande maioria das filhas de Eva, era muito faladora, virtude que nela, como também em tantas outras mulheres, não releva nenhum defeito, mas uma muito feminina qualidade.
Assim o reconheceram dois infelizes maridos, em diálogo que, com a vénia das senhoras aqui presentes, me atrevo a reproduzir. Dizia um, em tom de queixa:
- A minha mulher é capaz de estar uma hora inteira a falar do mesmo assunto!
- Pois a minha – retorquiu o outro marido – para falar tão pouco nem precisa de nenhum tema!
São José, pelo contrário, e como também é timbre do género masculino, opta sempre por um prudente silêncio. Tem aparições de Anjos, quase sempre nocturnas, mas, que se saiba, nunca lhes respondeu nada[68]. Volta atrás na sua decisão de deixar Maria, mas não constam quaisquer palavras suas nesse sentido[69]. Os habitantes de Belém não lhe dão pousada?! Pois bem, retira-se em silêncio com Nossa Senhora para um estábulo, onde vem ao mundo o Senhor do mundo[70]. Há que partir, sem demora, para o Egipto, porque Herodes quer matar o recém-nascido Rei dos Judeus? Então, levanta-se de noite, toma o Menino e sua Mãe e parte para o exílio, sem que, mais uma vez, tenha dito nada a este propósito[71]. É também José o interlocutor do Anjo que informa que, morto Herodes, já podem regressar à sua pátria mas, de novo, o emissário celeste não recebe nenhuma resposta do Santo Patriarca, que se limita a cumprir, silenciosamente, a ordem divina[72]. Mesmo quando, com Maria, encontra Jesus adolescente ensinando no templo, não se ouve a sua voz, pois o diálogo estabelece-se apenas entre a Mãe e o Filho[73].
A verdade é que em todos os Evangelhos não consta uma única palavra proferida pelo Santo Patriarca! Nem uma! Já alguma vez alvitrei que algum dos quatro evangelistas, a propósito ou despropósito de alguma cena alusiva à Sagrada Família, bem poderia ter tido a bondade de ter atribuído alguma fala a São José, nem que fosse apenas uma simples interjeição como, por hipótese, um mísero “Pois!”. Que mal viria ao mundo se a Bíblia nos dissesse, por exemplo, que São José disse: ‘Pois!’?! Mas a verdade é que nem um simples “pois” há de José nos quatro Evangelhos!
Que quer isto dizer?! Pois bem, que Nossa Senhora e São José, sendo ambos excelentes e muito santos, eram muito diferentes e tiveram que se compreender e amar como eram na realidade, e não como se calhar cada um deles gostaria que o outro fosse. Se não fosse irreverente, atrever-me-ia a dizer que Maria, que daria continuamente graças a Deus pela pessoa magnífica que era o seu marido, algumas vezes, se calhar, desejou que ele fosse um pouco mais conversador, sobretudo naquelas longas jornadas a caminho do Egipto, em que provavelmente José, como era seu hábito, nada dizia … Pelo contrário, José estaria habitualmente fascinado pela presença e pela companhia encantadora de Nossa Senhora, ainda que, uma vez por outra, talvez preferisse que ela não falasse tanto … Mas estou certo que, não obstante estes inevitáveis desencontros, ambos seriam felicíssimos e procurariam em tudo honrar a Deus agradando o cônjuge, esquecendo-se cada um de si próprio e das suas preferências pessoais: Maria, falando um pouco menos do que lhe apetecia, e José intervindo um pouco mais do que na realidade tinha vontade…
7. Conclusão.
Caríssimos responsáveis pelas Equipas de Nossa Senhora: foi de propósito que não falei de vós, nem dos «casais provados, casais venturosos, casais fiéis»[74], do vosso salutar Movimento, porque nada tenho para vos ensinar e tudo para aprender das vossas vidas. Olho-vos com santa inveja e dou graças a Deus pela vossa fidelidade matrimonial, pela vossa heróica unidade, pela vossa generosa disponibilidade para gerar e educar os filhos, que são também e principalmente filhos de Deus, nesta sua grande família que é a Igreja.
O exemplo da vossa esforçada fidelidade a Cristo e do vosso abnegado apostolado familiar é uma bênção para o mundo e para a Igreja e para mim, sacerdote, um poderoso estímulo para que eu também me entregue ao sagrado ministério para que fui chamado, não obstante a minha indignidade pessoal.
Antes de dar por terminada esta minha intervenção, de que desde já vos peço que me desculpem, permiti que vos faça um duplo pedido.
Em primeiro lugar, neste começo do terceiro milénio da era cristã e nesta hora decisiva para a história da humanidade e do nosso país, apelo para que sejais particularmente fiéis a Cristo e à sua Igreja, resistindo às investidas do inimigo com firmeza na fé[75], estando sempre prontos a dar razão da vossa esperança[76]. Neste mesmo ano de graça de 2010, tivemos a dita de receber o Santo Padre nesta Terra de Santa Maria e, em particular, nesta bendita Cova da Iria. Que a amável lembrança da sua paternal presença nos anime a perseverar fielmente unidos à sua pessoa e intenções, fazendo sempre eco aos seus ensinamentos e ao magistério da Igreja. Permaneçamos também sempre unidos aos nossos Bispos. Se o nosso país mereceu ser distinguido com o honroso título de Nação Fidelíssima, compete-nos agora a nós honrar essa exigente distinção, cumprindo assim, pela nossa parte, a promessa de Nossa Senhora do Rosário de Fátima de que, em Portugal, nunca se perderia o dogma da fé[77].
Em segundo lugar, não deixeis sós os vossos pastores, mas acompanhai-os com as vossas orações, com os vossos sacrifícios, com a vossa correcção fraterna e com o bálsamo da vossa caridade. Não permitais nunca nenhuma crítica; respeitai e acolhei os vossos irmãos sacerdotes e pedi continuamente ao Senhor para que nos conceda a graça da perseverança final, para que um dia, pela sua infinita misericórdia e pelas vossas preces, possamos receber o prémio que o Senhor da messe prometeu aos servos bons e fiéis[78].
Peço-vos ainda que, com santa ousadia, fomenteis, nas Equipas de Nossa Senhora, muitas vocações. Suscitai entre os vossos filhos e os filhos dos casais vossos amigos, vocações para os seminários diocesanos, bem como para a vida religiosa, para as missões e para a plena entrega a Deus no meio do mundo. Respeitando sempre a sua inteira liberdade e evitando absolutamente qualquer forma de coacção, rezai para que os vossos filhos e filhas, a quem Deus chama por caminhos de santidade, aspirem aos bens do alto[79]. Educai-os na virtude e na oração, na prática sacramental da confissão frequente e da comunhão, não só com a vossa palavra mas também com o exemplo da vossa vida cristã coerente, de tal forma que possam um dia responder afirmativamente ao chamamento divino.
O único avô que não conheci[80], porque morreu vinte anos antes de que eu nascesse, era engenheiro electrotécnico em Lisboa e, apesar e não ter familiares próximos que fossem sacerdotes, ensinou os seus nove filhos a pedirem a Deus a graça de vocações na família. A essa sua petição se ficou certamente a dever a vocação do meu tio sacerdote dominicano; a minha, de padre secular incardinado na prelatura do Opus Dei; e a de um sobrinho meu, jesuíta, que se prepara para a ordenação presbiteral.
Queridos casais, responsáveis das Equipas de Nossa Senhora! Porque Deus é Família, sede no mundo imagem e semelhança do amor que Deus é! Porque sois a Família de Deus, sede como Jesus, Maria e José! «Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé!»[81]. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens[82], para que vendo-vos e vendo as vossas famílias, glorifiquem Jesus Cristo, Nosso Senhor, que é Deus com o Pai na unidade do Espírito Santo[83]. Assim seja!
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
[1] Um dos ensinamentos mais significativo do Concílio Vaticano II foi precisamente o chamamento universal à santidade: «Os cristãos, de qualquer estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade» (Constituição dogmática Lumen gentium, 40, AAS 57, 1965, 45: e Catecismo da Igreja Católica, 2ª edição, Gráfica de Coimbra, Coimbra 1999, nº 2013). É de justiça recordar que desta doutrina conciliar foi profético precursor, desde 1928, São Josemaria Escrivá de Balaguer, fundador do Opus Dei.
[2] Do fundador das Equipas de Nossa Senhora, cfr Henri Caffarel, Espiritualidade conjugal, Uma palavra suspeita, Lucerna, Parede 2009; Nas encruzilhadas do amor, Lucerna, São João do Estoril, 2008; e Na presença de Deus, Cem cartas sobre a oração, Lucerna, São João do Estoril, 2008.
[3] Paulo VI, Discurso às Equipas de Nossa Senhora, 4 de Maio de 1970, cit. in Henri Caffarel, As Equipas de Nossa Senhora, Crescimento e Missão dos Casais Cristãos, Ed. Principia e Equipas de Nossa Senhora, s.a., pág. 107.
[4] Ibidem.
[5] Cfr 1Pd 3, 15.
[6] Cfr. James Layer, Ensaio Biográfico-crítico, in Oscar Wilde, Obra completa, Ed. José Aguilar Ltda. , Rio de Janeiro, 1961, págs. 13-46.
[7] Cfr. Oscar Wilde, O Gigante Egoísta, in Oscar Wilde, Obra completa, cit., págs. 244-247.
[8] Idem, pág. 245.
[9] Ibidem.
[10] Cfr Idem, pág. 246.
[11] Cfr. Bento XVI, Carta Encíclica Deus caritas est, Roma 25-12-2005, nº 3.
[12] «Deus é um só, mas não solitário» (Fides Damasi, DS 71; cit. in Catecismo da Igreja Católica, 2ª edição, cit., nº 253.
[13] Cfr 1Jo 4, 8. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, 2ª edição, cit., nº 218-221.
[14] Bento XVI, Carta Encíclica Deus caritas est, cit.
[15] «A própria essência de Deus é Amor. Ao enviar, na plenitude dos tempos, o seu Filho único e o Espírito de Amor, Deus revela o seu segredo mais íntimo. Ele próprio é eternamente permuta de amor: Pai, filho e Espírito Santo; e destinou-nos a tomar parte nessa comunhão» (Catecismo da Igreja Católica, 2ª edição, cit., nº 221).
[16] Cfr Catecismo da Igreja Católica, 2ª edição, cit., nº 249-256.
[17] Cfr 1Jo 4, 8.
[18] Cfr Catecismo da Igreja Católica, 2ª edição, cit., nº 255.
[19]Idem, nº 2205. «A sua actividade procriadora e educativa é o reflexo da obra criadora do Pai. É chamada a partilhar da oração e do sacrifício de Cristo. A oração quotidiana e a leitura da palavra de Deus fortalecem nela a caridade. A família cristã é evangelizadora e missionária» (Ibidem).
[20] Sobre esta questão, cfr Pedro Vaz Patto e Gonçalo Portocarrero de Almada, Porque não casamento entre pessoas do mesmo sexo, Alêtheia, Lisboa 2009.
[21] «Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou do alto dos Céus, com toda a bênção espiritual em Cristo, escolhendo-nos n’Ele, antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados a Seus olhos, pelo amor que nos predestinou para sermos Seus filhos adoptivos por meio de Jesus Cristo, por Sua graça esplendorosa, pela qual nos tornou gratos no Amado» (Ef 1, 3-6).
[22] Por esta razão, Nosso Senhor Jesus Cristo nunca se refere a Deus Pai como sendo o nosso Deus e Pai comum, porque, ainda que o seja, o não é do mesmo modo. Assim, por exemplo, quando ressuscitado aparece a Maria Madalena, diz-lhe: «ainda não subi para Meu Pai, mas vai a Meus irmãos e diz-lhes que subo para Meu Pai e vosso Pai, para Meu Deus e vosso Deus» (Jo 20, 17).
[23] Cfr Jo 1, 12-13.
[24] 1Jo 3, 1-2.
[25] Cfr 2Pd 1, 4; Jo 1, 16.
[26] Cfr Jo 1, 12-13; 3, 1-8, etc.
[27] Rom 8, 28-30.
[28] Cfr. Lc 2, 49, etc.
[29] Cfr. Mt 6, 9-15; Lc 11, 1-4.
[30] Cfr. Mt 6, 5-8.
[31] Cfr 2Pd 1, 4.
[32] Mt 5, 48.
[33] Jo 15, 5.
[34] Cfr Flp 4, 13.
[35] É a designação que Lucas utiliza – cfr. Lc 2, 7 – não porque Nossa Senhora tivesse tido mais filhos, mas porque era então costume dar essa designação ao primeiro filho, mesmo que fosse o único, como era o caso.
[36] Cfr Jo 1, 14.
[37] Cfr Mt 1, 18-20.
[38] Cfr Mt 1, 18-24.
[39] Cfr Lc 2, 1-7; Mt 2, 1-23.
[40] Cfr Mt 2, 13-15.
[41] Cfr Lc 2, 41-52.
[42] Cfr Jo 2, 1-11.
[43] Cfr Jo 11, 1-44.
[44] Cfr Lc 7, 11-17.
[45] Mt 9, 18-26; Mc 5, 22-43; Lc 8, 40-56.
[46] Cfr Mt 14, 13-21; Mc 6, 33-44; Lc 9, 10-17; Jo 6, 1-13.
[47] Cfr Jo 2, 1-11.
[48] Cfr Jo 4, 14
[49] Cfr Mt 8, 24-27; Mc 4, 35-40; Lc 8, 22-25.
[50] Cfr Mt 2, 16-18.
[51] Cfr Jo 2, 19.
[52] Cfr Lc 2, 7.
[53] Cfr Lc 23, 39-43.
[54] Cfr Jo 19, 25-27.
[55] Sendo uma equipa uma «comunidade cristã de casais», é óbvio que um só casal não pode constituir, em sentido próprio, uma equipa. Cfr Henri Caffarel, As Equipas de Nossa Senhora, Crescimento e Missão dos Casais Cristãos, cit., págs. 139-146.
[56] Cfr Mt 1, 18-24.
[57] Cfr Lc 2, 41-50.
[58] Cfr Lc 1, 26-38.
[59] Cfr Lc 2, 48.
[60] 1Cor 13, 4-7.
[61] 1Cor 13, 7.
[62] Cfr Lc 1, 26-38. Cfr Gonçalo Portocarrero de Almada, Os defeitos de Maria e as virtudes de outras mulheres dos Evangelhos, Lucerna, São João do Estoril, 2007, págs. 34-36.
[63] Cfr Lc 2, 39-41 e, do autor, Os defeitos de Maria e as virtudes de outras mulheres dos Evangelhos, cit., págs. 49-50.
[64] Cfr Lc 1, 46-55.
[65] Cfr Lc 2, 48 e, do autor, Os defeitos de Maria e as virtudes de outras mulheres dos Evangelhos, cit., págs. 85-90.
[66] Cfr Jo 2, 3 e, do autor, Os defeitos de Maria e as virtudes de outras mulheres dos Evangelhos, cit., págs. 101-105.
[67] Cfr Jo 2, 5.
[68] Cfr Mt 1, 18-25; 2, 13-15.
[69] Cfr Mt 1, 24.
[70] Cfr Lc 2, 6-7.
[71] Cfr Mt 2, 13-15.
[72] Cfr Mt 2, 19-23.
[74] Paulo VI, Discurso às Equipas de Nossa Senhora, 4 de Maio de 1970, cit. in Henri Caffarel, As Equipas de Nossa Senhora, Crescimento e Missão dos Casais Cristãos, cit., pág. 107.
[75] Cfr 1Pd 5, 8-9.
[76] Cfr 1Pd 3, 15.
[77] «Em Portugal se conservará sempre o dogma da Fé, etc.» (Memórias da Irmã Lúcia, 7ª edição, Ed. da Vice-Postulação, Fátima 1997, vol. I, 1ª a 4ª memória, pág. 171).
[78] Cfr Mt 25, 21.23.
[79] Cfr Col 3, 1-2.
[80] Cfr Gonçalo Portocarrero de Almada, História de um grão de trigo, Evocação do Eng.º Mateus Cardoso Peres (1897-1939), Ed. Diel, Lisboa 2002.
[81] 1Jo 5, 4.
[82] Cfr Mt 5, 16.
[83] Cfr Henri Caffarel, As Equipas de Nossa Senhora, Crescimento e Missão dos Casais Cristãos, Ed. Equipas de Nossa Senhora e Principia, pág. 107.
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