Evangelho
Jo XVIII, 19 -40
Jesus é interrogado
19 Então, o Sumo Sacerdote interrogou
Jesus acerca dos seus discípulos e da sua doutrina. 20 Jesus respondeu-lhe: «Eu
tenho falado abertamente ao mundo; sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde
todos os judeus se reúnem, e não disse nada em segredo. 21 Porque me
interrogas? Interroga os que ouviram o que Eu lhes disse. Eles bem sabem do que
Eu lhes falei.» 22 Quando Jesus disse isto, um dos guardas ali presente deu-lhe
uma bofetada, dizendo: «É assim que respondes ao Sumo Sacerdote?» 23 Jesus
replicou: «Se falei mal, mostra onde está o mal; mas, se falei bem, porque me
bates?» 24 Então, Anás mandou-o manietado ao Sumo Sacerdote Caifás.
Nova negação de Pedro
25 Entretanto, Simão Pedro estava de pé
a aquecer-se. Disseram-lhe, então: «Não és tu também um dos seus discípulos?»
Ele negou, dizendo: «Não sou.» 26 Mas um dos servos do Sumo Sacerdote, parente
daquele a quem Pedro cortara a orelha, disse-lhe: «Não te vi eu no horto com
Ele?» 27 Pedro negou Jesus de novo; e nesse instante cantou um galo.
Jesus e Pilatos
28 De Caifás, levaram Jesus à sede do
governador romano. Era de manhã cedo e eles não entraram no edifício para não
se contaminarem e poderem celebrar a Páscoa. 29 Pilatos veio ter com eles cá
fora e perguntou-lhes: «Que acusações apresentais contra este homem?» 30 Responderam-lhe:
«Se Ele não fosse um malfeitor, não to entregaríamos.» 31 Retorquiu-lhes
Pilatos: «Tomai-o vós e julgai-o segundo a vossa Lei.» «Não nos é permitido dar
a morte a ninguém», disseram-lhe os judeus, 32 em cumprimento do que Jesus
tinha dito, quando explicou de que espécie de morte havia de morrer. 33 Pilatos
entrou de novo no edifício da sede, chamou Jesus e perguntou-lhe: «Tu és rei
dos judeus?» 34 Respondeu-lhe Jesus: «Tu perguntas isso por ti mesmo, ou porque
outros to disseram de mim?» 35 Pilatos replicou: «Serei eu, porventura, judeu?
A tua gente e os sumos sacerdotes é que te entregaram a mim! Que fizeste?» 36 Jesus
respondeu: «A minha realeza não é deste mundo; se a minha realeza fosse deste
mundo, os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às
autoridades judaicas; portanto, o meu reino não é de cá.» 37 Disse-lhe Pilatos:
«Logo, Tu és rei!» Respondeu-lhe Jesus: «É como dizes: Eu sou rei! Para isto
nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que
vive da Verdade escuta a minha voz.» 38 Pilatos replicou-lhe: «Que é a
verdade?» Dito isto, foi ter de novo com os judeus e disse-lhes: «Não vejo nele
nenhum crime. 39 Mas é costume eu libertar-vos um preso na Páscoa. Quereis que
vos solte o rei dos judeus?» 40 Eles puseram-se de novo a gritar, dizendo:
«Esse não, mas sim Barrabás!» Ora Barrabás era um salteador.
Santo
Agostinho
DE CIVITATE DEI[i]
LIVRO IX
CAPÍTULO IV
Opinião dos peripatéticos e dos
estóicos acerca das perturbações da alma.
São duas as opiniões dos filósofos
acerca dos movimentos da alma a que os Gregos chamam náS-rj
e
alguns dos nossos, como Cícero, cham a “perturbações” (perturbationes);
outros
chamam-lhes «disposições» (affectiones) ou
“afectos” (affectus), e
ainda outros, com o o citado Apuleio, “paixões” (passiones)
—
termo que melhor traduz a palavra grega. Dizem certos filósofos que estas
perturbações, disposições ou paixões atingem mesmo o sábio. Mas, no sábio, elas
são moderadas e submetidas à razão, cuja autoridade lhes impõe leis que, de
certo modo, as contêm nos seus limites necessários. É este o sentimento quer
dos platónicos quer dos aristotélicos, pois Aristóteles, fundador da escola
peripatética, foi discípulo de Platão.
Segundo outros, como os estóicos, tais
paixões nunca atingem o sábio. Cícero, porém, nos seus livros De
finibus bonorum et malorum convence os estóicos de que estão em desacordo,
mais em palavras do que na realidade, com os platónicos ou os peripatéticos. E
que os estóicos recusam -se a chamar “bens” às comodidades corporais e
exteriores, porque, a seu ver, não há para o homem “bem” fora da virtude: esta
é que é a arte de viver bem e só reside na alma. Mas estes (os platónicos),
usando de linguagem simples e corrente, chamam -lhes “bens”, embora, em
comparação com a virtude, que assegura a rectidão da vida, os considerem
pequenos e medíocres Cícero, De
finibus bonorum et malorum, III, 3, 10..
Donde se conclui que, chame-lhes cada um com o quiser - “bens” ou “comodidades”
-, ambos os têem igual estima, e nesta questão os estócos mais não procuram que
a novidade das palavras.
Também a mim me parece que, quando se
pergunta se as paixõs do espírito podem afectar o sáio ou se este está delas
totalmente livre, a discussão versa mais sobre palavras do que sobre
realidades. Parece-me, pois, que o sentimento dos estócos é idêntico ao dos
platónicos e dos aristotélicos, se não quanto à expressão pelo menos quanto ao
âmago da questão.
Para não me tornar demasiado extenso,
ponho de parte outros argumentos e apenas exporei um que é bem revelador. Conta
Aulo Gélio, varão de elegantíssimo estilo e de vasta e profunda erudição, no
seu livro que tem por título Noctes Atticae (Noites
Áticas), que, certo dia, viajava no mar com um reputado filósofo estóico. Esse
filósofo, como mais larga e copiosamente refere Aulo Gélio e eu resumo aqui, ao
ver o barco sacudido por um céu medonho e um mar perigosíssimo, devido ao medo
começou a empalidecer. Isto foi notado pelos presentes, que, apesar da morte
vizinha, curiosamente perguntavam se a alma de um filósofo se perturbaria.
Depois, passada que foi a tempestade e quando a segurança deu aso à troca de
impressões e mesmo de gracejos, um dos passageiros, faustoso rico asiático,
increpou o filósofo por ter tido medo e empalidecido, ao passo que ele se
manteve intrépido perante a morte iminente. Mas o outro contou-lhe a resposta do
socrático Aristipo: este, ao ouvir, em iguais circunstâncias, as mesmas
palavras de um indivíduo da mesma laia, respondeu-lhe que tinha feito muito bem
em não se apoquentar com a vida de um velhaco, mas que devia recear pela vida
de um Aristipo.
O rico ficou confundido com esta
resposta, mas Aulo Gélio, não com vontade de atacar mas de aprender, logo perguntou
ao filósofo qual a razão do seu pavor. Este, para satisfazer um homem inflamado
do desejo de aprender, tirou da sacola um livro do estóico Epicteto, em que este
consignava as suas ideias concordantes com os princípios de Zenão e Crisipo,
fundadores, como se sabe, da escola estóica. Diz Aulo Gélio ter lido nesse
livro que os estóicos admitem certas percepções da alma a que chamam «fantasias»,
de que não está em nosso poder saber em que condições e em que momento se
produzem na alma.
Quando provêm de acontecimentos
terríveis, espantosos, comovem fatalmente a alma do próprio sábio - e de tal sorte
que, por momentos, também este experimenta o calafrio do medo e a angústia da
tristeza, antecipando-se, por assim dizer, estas paixões ao exercício da
inteligência e da razão, sem que, contudo, o espírito se contagie com o mal, as
aprove ou nelas consinta. Isto é o que está em nosso poder, dizem os estóicos —
e é nisto que reside a diferença entre a alma do sábio e a do néscio: no néscio,
ela cede às paixões e aceita o assentimento da mente, ao passo que no sábio,
embora se veja por necessidade a elas submetido, mantém com mente imperturbável
o verdadeiro e estável juízo acerca do que deve apetecer e do que deve
razoavelmente evitar. Estas ideias que Aulo Gélio recorda ter lido no livro de
Epicteto e declara tê-las achado conformes com os princípios dos estóicos,
expu-las, julgo eu, não com mais elegância do que aquele, mas, certamente, com
maior concisão e clareza.
Se isto é assim, não há, ou quase não
há diferença entre a opinião dos estóicos e a dos outros filósofos acerca das
paixões e perturbações da alma. Tanto uns como outros defendem a mente e a
razão do sábio, do domínio daquelas. Se os estóicos dizem que elas não atingem
o sábio, é talvez porque jamais elas obscurecerão com algum erro ou mancharão
com algum a nódoa essa sabedoria que o torna sábio: sem alterarem a serenidade
da alma do sábio, podem afectar-lha com o que chamam os comodidade ou
incomodidade, já que não querem chamar-lhes “bens” ou “males”.
Seguramente que, se na verdade o tal
filósofo não desse qualquer apreço aos bens que sentia fugirem-lhe no naufrágio
— tais como a vida e a saúde do corpo —, ele não teria tremido de pavor perante
o perigo ao ponto de mostrar a sua palidez. Mas essa mesma emoção podia muito
bem suportá-la mantendo-se firmemente convencido de que a vida e a saúde do
corpo, ameaçadas de serem levadas pela furiosa tempestade, não são os bens que,
como a justiça, tornam bons os que as possuem. Que se deva chamar-lhes, como
eles dizem, não bens mas comodidades — é uma guerra de palavras e não uma
questão sobre a realidade. Que interessa que se lhes chame, com maior
exactidão, bens ou comodidades, se a ameaça de os perder faz igualmente
empalidecer e tremer tanto o estóico como o peripatético, os quais, sem lhes
darem o mesmo nome, os apreciam da mesma
forma? O certo é que tanto uns como outros declaram que, se fossem
constrangidos a cometer um acto injusto ou criminoso que pusesse em perigo
esses bens ou comodidades sem de outro modo poderem salvá-los, prefeririam perder
tudo o que garante a saúde e a vida a violar a justiça, cometendo esse acto.
Assim a mente, em que esta convicção está alicerçada, não permite que em si
possa prevalecer perturbação alguma contra a razão, mesmo que essa perturbação
se verifique nas regiões inferiores da alma; mais ainda: a razão exerce sobre
elas o seu domínio, e — nelas não consentindo mas, pelo contrário,
resistindo-lhes, — faz com que reine a virtude. É assim que Vergílio descreve
Eneias quando diz: O seu espírito mantém-se
inquebrantável e é em vão que as lágrimas correm (Vergílio,
Eneida, IV,
449.).
[i] Santo
Agostinho, De Civitate Dei é obra de Santo Agostinho, onde descreve o
mundo, dividido entre o dos homens e o dos céus. Teria sido a obra preferida do
imperador Carlos Magno. Uma das criações mais representativas do gênero humano.
Data da primeira publicação: 426 d.C.
Assuntos: Filosofia cristã, Teologia
cristã, Neoplatonismo
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