Que estranha capacidade tem
o homem de esquecer as coisas mais maravilhosas e de se acostumar ao mistério!
Reparemos de novo, nesta Quaresma, que o cristão não pode ser superficial.
Estando plenamente metido no seu trabalho habitual, entre os demais homens,
seus iguais, atarefado, ocupado, em tensão, o cristão tem de estar, ao mesmo
tempo, imerso totalmente em Deus, porque é filho de Deus.
A filiação divina é uma
feliz verdade, um mistério consolador. A filiação divina enche a nossa vida
espiritual, porque nos ensina a conviver intimamente com o nosso Pai do Céu, a
conhecê-Lo, a amá-Lo, e assim enche de esperança a nossa luta interior e dá-nos
a simplicidade confiante dos filhos pequenos. Mais ainda: precisamente por
sermos filhos de Deus, essa realidade leva-nos também a contemplar com amor e
com admiração todas as coisas que saíram das mãos de Deus Pai, Criador. E deste
modo somos contemplativos no meio o mundo, amando o mundo.
Na Quaresma, a Liturgia
considera as consequências do pecado de Adão na vida do homem. Adão não quis
ser um bom filho de Deus e revoltou-se. Mas também se faz ouvir continuamente o
eco dessa felix culpa - culpa feliz, ditosa - que a Igreja inteira cantará,
cheia de alegria, na vigília do Domingo de Ressurreição.
Deus Pai, chegada a
plenitude dos tempos, enviou ao mundo o seu Filho unigénito para que
restabelecesse a paz; para que, redimindo o homem do pecado, adoptionem
filiorum reciperemus, fôssemos constituídos filhos de Deus, libertos do jugo do
pecado, capazes de participar na intimidade divina da Trindade. E assim se
tomou possível a este homem novo, a esta nova enxertia dos filhos de Deus
libertar a Criação inteira da desordem, restaurando todas as coisas em Cristo,
que nos reconciliou com Deus.
É tempo de penitência, pois.
Mas, como vimos, não se trata de uma tarefa negativa. A Quaresma deve ser
vivida com o espírito de filiação que Cristo nos comunicou e que vive na nossa
alma. O Senhor chama-nos para que nos acerquemos d'Ele, desejando ser como Ele:
Sede imitadores de Deus, como filhos muito amados, colaborando humildemente,
mas fervorosamente, no divino propósito de unir o que está quebrado, de salvar
o que está perdido, de ordenar o que o homem pecador desordenou, de conduzir ao
seu fim o que está desencaminhado, de restabelecer a divina concórdia de todas
as criaturas. (Cristo que passa 65)
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