03/08/2019

Leitura espiritual


São Josemaria Escrivá

Amigos de Deus

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Por volta dos primeiros anos da década de 40, eu ia muito a Valência.
Não tinha então nenhum meio humano e, com os que - como vocês agora - se reuniam com este pobre sacerdote, fazia oração onde podíamos, algumas tardes numa praia solitária.
Como os primeiros amigos do Mestre, lembras-te?
S. Lucas escreve que, ao sair de Tiro com Paulo, a caminho de Jerusalém, acompanharam-nos todos, com as suas mulheres e filhos até fora da cidade e ajoelhados na praia fizemos oração.

Pois um dia, ao fim da tarde, durante um daqueles pores do Sol maravilhosos vimos que uma barca se aproximava da beira-mar e que saltaram para terra uns homens morenos, fortes como rochas, molhados, de tronco nu, tão queimados pela brisa que pareciam de bronze.
Começaram a tirar da água a rede que traziam arrastada pela barca, repleta de peixes brilhantes como a prata.
Puxavam com muito brio, os pés metidos na areia, com uma energia prodigiosa.
De repente veio uma criança, muito queimada também, aproximou-se da corda, agarrou-a com as mãozinhas e começou a puxar com evidente falta de habilidade.
Aqueles pescadores rudes, nada refinados, devem ter sentido o coração estremecer e permitiram que aquele pequeno colaborasse; não o afastaram, apesar de ele estorvar em vez de ajudar.

Pensei em vocês e em mim; em vocês, que ainda não conhecia e em mim; nesse puxar pela corda todos os dias, em tantas coisas. Se nos apresentarmos diante de Deus Nosso Senhor como esse pequeno, convencidos da nossa debilidade mas dispostos a cumprir os seus desígnios, alcançaremos a meta mais facilmente: arrastaremos a rede até à beira-mar, repleta de frutos abundantes, porque onde as nossas forças falham, chega o poder de Deus.




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Sinceridade na direcção espiritual

Conhecem muito bem as obrigações do vosso caminho de cristãos, que os hão-de levar sem parar e com calma à santidade; também estão precavidos contra as dificuldades, praticamente contra todas, porque já se vislumbram desde o princípio do caminho.
Agora insisto em que se deixem ajudar e guiar por um director de almas, a quem confiem todos os entusiasmos santos, os problemas diários que afectarem a vida interior, as derrotas que sofrerem e as vitórias.

Nessa direcção espiritual mostrem-se sempre muito sinceros: não deixem nada por dizer, abram completamente a alma, sem medo e sem vergonha.
Olhem que, se não, esse caminho tão plano e tão fácil de andar complica-se e o que ao princípio não era nada acaba por se converter num nó que sufoca.
Não penseis que os que se perdem caem vítimas de um fracasso repentino; cada um deles errou no princípio do seu caminho ou então descuidou por muito tempo a sua alma, de modo que, enfraquecendo progressivamente a força das suas virtudes e crescendo pelo contrário, pouco a pouco, a dos vícios, veio a desfalecer miseravelmente...
Uma casa não se desmorona de repente por um acidente imprevisível: ou já havia algum defeito nos alicerces ou o desleixo dos que a habitavam se prolongou por muito tempo, de modo que os defeitos, a princípio pequeníssimos, foram corroendo a firmeza da estrutura, pelo que, quando chegou a tempestade ou surgiram as chuvas torrenciais, ruiu sem remédio, pondo a descoberto o antigo descuido.

Lembram-se da história do cigano que se foi confessar?
Não passa de uma história, de uma historieta, porque da confissão nunca se fala e, além disso, estimo muito os ciganos.
Coitadinho!
Estava realmente arrependido: Senhor Padre, acuso-me de ter roubado uma arreata...- pouca coisa, não é? - e atrás vinha uma burra...; e depois outra arreata...; e outra burra... e assim até vinte.
Meus filhos, o mesmo acontece no nosso comportamento: quando cedemos na arreata, depois vem o resto, a seguir vem uma série de más inclinações, de misérias que aviltam e envergonham; e acontece o mesmo na convivência: começa-se com uma pequena falta de delicadeza e acaba-se a viver de costas uns para os outros, no meio da indiferença mais gelada.

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Caçai as raposas pequenas que destroem a vinha, as nossas vinhas em flor.
Fiéis no pequeno, muito fiéis no pequeno.
Se procurarmos esforçar-nos assim, também havemos de aprender a recorrer com confiança aos braços de Santa Maria, como seus filhos. Não vos lembrava eu ao princípio que todos nós temos muito poucos anos, tantos quantos passaram desde que nos decidimos a ter muita intimidade com Deus?
Pois é razoável que a nossa miséria e a nossa insuficiência se aproximem da grandeza e da pureza santa da Mãe de Deus, que é também nossa Mãe.

Posso contar-vos outra história real, porque já passaram tantos, tantos anos desde que aconteceu; e porque há-de ajudá-los a pensar, pelo contraste e pela crueza das expressões.
Estava a dirigir um retiro para sacerdotes de diversas dioceses.
Procurava-os com afecto e com interesse, para que viessem falar comigo, aliviar a consciência desabafando, porque os sacerdotes também precisam do conselho e da ajuda de um irmão.
Comecei a conversar com um, um pouco rude, mas muito nobre e sincero; puxava-lhe um pouco pela língua, com delicadeza e clareza para sarar qualquer ferida que existisse dentro do seu coração.
A certa altura interrompeu-me, mais ou menos com estas palavras: tenho uma grande inveja da minha burra; tem prestado serviços paroquiais em sete freguesias e não há nada a apontar-lhe.

Ah! Se eu tivesse feito o mesmo!


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Talvez - examina-te a fundo - também nós não mereçamos o elogio que esse cura de aldeia fazia à burra.
Trabalhámos muito, ocupámos tantos cargos de responsabilidade, triunfaste nesta e naquela tarefa humana... mas, na presença de Deus, não encontras nada de que devas lamentar-te?
Procuraste de verdade servir a Deus e aos homens teus irmãos, ou fomentaste o teu egoísmo, a tua glória pessoal, as tuas ambições, o teu êxito exclusivamente terreno e penosamente caduco?

Se falo um pouco cruamente, é porque quero fazer uma vez mais um acto de contrição muito sincero e porque queria que cada um de vocês também pedisse perdão.
Perante as nossas infidelidades, à vista de tantos enganos, de fraquezas, de cobardias - cada um com as suas -, repitamos do fundo do coração a Nosso Senhor aquelas exclamações contritas de S. Pedro: Domine, tu omnia nosti, tu scis quia amo te!; Senhor! Tu sabes tudo, Tu sabes que te amo, apesar das minhas misérias!
E atrevo-me a acrescentar: Tu sabes que te amo, precisamente por causa dessas minhas misérias, pois elas levam-me a apoiar-me em Ti, que és a fortaleza: quia Tu es, Deus, fortitudo mea.
E a partir daqui, recomecemos.

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Procurar a presença de Deus

Vida interior.
Santidade nas tarefas usuais, santidade nas coisas pequenas, santidade no trabalho profissional, nas canseiras de todos os dias...; santidade para santificar os outros.
Numa certa ocasião, um meu conhecido - nunca hei-de chegar a conhecê-lo bem - sonhava que ia a voar num avião a uma grande altura, mas não dentro da cabine; ia montado nas asas.
Coitado do desgraçado: como sofria e se angustiava!
Parecia que Nosso Senhor lhe dava a conhecer que assim andam pelas alturas - inseguras, inquietas - as almas apostólicas que não têm vida interior ou que a descuidam: com o perigo constante de caírem, sofrendo, incertas.

E penso, efectivamente, que correm um sério risco de se extraviarem os que se lançam à acção - ao activismo - prescindindo da oração, do sacrifício e dos meios indispensáveis para conseguir uma piedade sólida: a frequência dos Sacramentos, a meditação, o exame de consciência, a leitura espiritual, a convivência assídua com a Virgem Santíssima e com os Anjos da Guarda...
Tudo isto contribui, além disso, com uma eficácia insubstituível, para que o caminho do cristão seja tão agradável, porque da sua riqueza interior jorram a doçura e a felicidade de Deus como o mel do favo.

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Na intimidade pessoal, na conduta externa, no convívio com os outros, no trabalho, cada um há-de procurar manter-se numa contínua presença de Deus, com uma conversa - um diálogo - que não se manifesta exteriormente.
Melhor dito, não se exprime normalmente com ruído de palavras, mas há-de notar-se pelo empenho e pela diligência amorosa com que acabamos bem as tarefas, tanto as importantes como as insignificantes. Se não procedêssemos com essa constância, seríamos pouco coerentes com a nossa condição de filhos de Deus, pois teríamos desperdiçado os recursos que Nosso Senhor colocou providencialmente ao nosso alcance, para chegarmos ao estado de homem perfeito, à medida da idade perfeita segundo Cristo.

Durante a última guerra de Espanha, fazia viagens com frequência para atender sacerdotalmente muitos rapazes que se encontravam na frente da batalha.
Numa trincheira, ouvi um diálogo que me ficou muito gravado.
Perto de Teruel, um soldado bastante novo comentava acerca de outro, pelos vistos um pouco indeciso, pusilânime: não é um homem às direitas!
Teria um grande desgosto se se pudesse afirmar de qualquer de nós, com fundamento, que somos incoerentes; homens que afirmam que querem ser autenticamente cristãos, santos, mas que desprezam os meios, já que não manifestam continuamente a Deus o seu carinho e o seu amor filial no cumprimento das suas obrigações. Se a nossa actuação se revelasse assim, tu e eu também não seríamos cristãos íntegros.

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Procuremos fomentar no fundo do coração um desejo ardente, um empenho grande por alcançar a santidade, apesar de nos vermos cheios de misérias.
Não se assustem; à medida que se avança na vida interior, conhecem-se com mais clareza os defeitos pessoais.
O que acontece é que a ajuda da graça se transforma como que numa lente de aumentar e o mais pequeno cotão, o grãozinho de areia quase imperceptível aparecem com dimensões gigantescas, porque a alma adquire a finura divina e até a sombra mais pequena incomoda a consciência, que só gosta da limpeza de Deus.
Diz-lhe agora, do fundo do coração: Senhor, a sério que quero ser santo, a sério que quero ser um teu discípulo digno e seguir-te sem condições.
E depois, hás-de propor a ti próprio a intenção de renovar diariamente os grandes ideais que te animam nestes momentos.

Jesus, se nós, que nos reunimos no teu Amor, fôssemos perseverantes!
Se conseguíssemos traduzir em obras esses anseios de santidade que Tu próprio despertas nas nossas almas!

Perguntemo-nos a nós próprios com frequência: para que estou eu na terra?

E assim hão-de procurar acabar perfeitamente - com muita caridade - as tarefas que empreenderem em cada dia e cuidar das coisas pequenas.
Debrucemo-nos sobre o exemplo dos santos: pessoas como nós, de carne e osso, com fraquezas e debilidades, que souberam vencer e vencer-se por amor de Deus; consideremos a sua conduta e - como as abelhas que destilam de cada flor o néctar mais precioso - aproveitemo-nos das suas lutas.
Assim também havemos de aprender a descobrir muitas virtudes nos que nos rodeiam - dão-nos lições de trabalho, de abnegação, de alegria... - sem nos determos demasiado nos seus defeitos; só quando for imprescindível, para os ajudar com a correcção fraterna.

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