Amigos
de Deus
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As circunstâncias daquele servo da
parábola, devedor de dez mil talentos, reflectem bem a nossa situação perante
Deus: também nós não temos com que pagar a dívida imensa que contraímos por
tantas bondades divinas e que aumentámos ao ritmo dos nossos próprios pecados.
Embora
lutemos denodadamente, não conseguiremos devolver com equidade o muito que o
Senhor nos perdoou.
Mas
a misericórdia divina supre com abundância a impotência da justiça humana.
Ele
é que pode dar-se por satisfeito e anular a dívida, simplesmente porque é bom e
é infinita a sua misericórdia.
A parábola - lembrais-vos bem - termina com
uma segunda parte, que é como que o contraponto da precedente.
Aquele
servo, a quem acabam de perdoar uma dívida enorme, não se compadece de um
companheiro que lhe devia apenas cem denários. Aí é que se põe de manifesto a
mesquinhez do seu coração.
Estritamente
falando, ninguém lhe negará o direito de exigir o que é seu; no entanto, algo
se revolta dentro de nós e nos diz que essa atitude intolerante se afasta da
verdadeira justiça: não é justo que quem, há apenas um momento, recebeu um
tratamento misericordioso de favor e compreensão, não reaja ao menos com um
pouco de paciência para com o devedor.
Reparai
que a justiça não se manifesta exclusivamente pelo rigoroso respeito de
direitos e deveres, como se se tratasse de problemas aritméticos que se
resolvem com somas e subtracções.
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A virtude cristã é mais ambiciosa: leva-nos
a mostrar-nos agradecidos, afáveis, generosos; a comportar-nos como amigos
leais e honrados, tanto nos tempos bons como na adversidade; a ser cumpridores
das leis e respeitadores das autoridades legítimas; a rectificar com alegria
quando nos damos conta de que nos enganámos ao encarar uma questão.
Sobretudo,
se somos justos, cumpriremos os nossos compromissos profissionais, familiares,
sociais..., sem espaventos nem alardes, trabalhando com empenho e exercitando
os nossos direitos, que também são deveres.
Não acredito na justiça dos preguiçosos,
porque com o seu dolce far niente -
como dizem na minha querida Itália - faltam, e às vezes gravemente, ao mais
fundamental dos princípios da equidade: o do trabalho.
Não
devemos esquecer que Deus criou o homem ut
operaretur, para trabalhar; e os outros - a nossa família, a nossa nação, a
Humanidade inteira, - dependem também da eficácia do nosso trabalho.
Meus
filhos, que pobre ideia têm da justiça os que a reduzem a uma simples
distribuição de bens materiais!
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A
justiça e o amor à liberdade e à verdade
Desde a minha infância - desde que tive
ouvidos para ouvir, na expressão da Escritura - tenho ouvido o clamor da
questão social. Não se trata de nada de particular; é um tema antigo, de
sempre.
Talvez
tenha surgido no mesmo instante em que os homens se organizaram de alguma
maneira e se tornaram mais visíveis as diferenças de idade, de inteligência, de
capacidade de trabalho, de interesses, de personalidade.
Não sei se haver classes sociais é coisas
irremediável; aliás, não é do meu ofício falar dessas matérias, e muito menos
aqui, neste oratório, onde nos reunimos para falar de Deus (não desejaria
tratar senão deste tema em toda a minha vida) e para conversar com Deus.
Pensai o que quiserdes em tudo aquilo que a
Providência confiou à livre e legítima discussão dos homens, mas a minha
condição de sacerdote de Cristo impõe-me a necessidade de subir mais alto e de
vos lembrar que, em qualquer caso, nunca podemos deixar de viver a justiça, com
heroísmo, se for necessário.
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Estamos obrigados a defender a liberdade
pessoal de todos, sabendo que Jesus Cristo foi quem nos conquistou essa
liberdade.
Se
não o fizermos, com que direito reivindicaremos a nossa?
Também
devemos difundir a verdade, porque veritas
liberabit vos, a verdade liberta-nos, enquanto a ignorância escraviza.
Temos
de defender o direito de todos os homens à vida, à posse do necessário para uma
existência digna, ao trabalho e ao descanso, à escolha do seu estado, à
constituição de um lar, a trazer filhos ao mundo dentro do matrimónio e a poder
educá-los, a passar serenamente o tempo da doença ou da velhice, ao acesso à
cultura, à associação com os outros cidadãos para fins lícitos e, em primeiro
lugar, a conhecer e amar Deus com plena liberdade, porque a consciência, sendo
recta, descobre a marca do criador em todas as coisas.
Precisamente por isso, é urgente repetir -
não me meto em política, estou só a expor a doutrina da Igreja - que o marxismo
é incompatível com a fé de Cristo.
Existe
alguma coisa mais oposta à fé do que um sistema que baseia tudo em eliminar da
alma a presença amorosa de Deus?
Gritai
isso com muita força, de modo que se oiça claramente a vossa voz: para praticar
a justiça não precisamos do marxismo para nada. Pelo contrário, esse erro
gravíssimo, pelas suas soluções exclusivamente materialistas que ignoram o Deus
da paz, levanta obstáculos à felicidade e ao entendimento entre os homens.
Dentro do cristianismo achamos a boa luz que
dá sempre resposta a todos os problemas; basta que vos empenheis sinceramente
em ser católicos, non verbo neque lingua,
sed opere et veritate, não com palavras e com a língua, mas com obras e com
verdade.
Afirmai
isto sempre que se vos apresente a ocasião - procurai-a se for preciso - sem
reticências, sem medo.
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Justiça
e caridade
Lede a Sagrada Escritura.
Meditai
um a um, os episódios da vida do Senhor, os seus ensinamentos.
Considerai
especialmente os conselhos e as advertências com que preparava aquele punhado
de homens que haviam de ser os seus apóstolos, os seus mensageiros até aos
confins da terra.
Qual
é a principal norma que lhes dá?
Não
é o mandamento novo da caridade?
Foi
com amor que abriram caminho naquele mundo pagão e corrupto.
Convencei-vos de que apenas com a justiça
nunca resolvereis os grandes problemas da Humanidade.
Quando
se faz apenas justiça, não é de estranhar que as pessoas se sintam feridas: a
dignidade do homem, que é filho de Deus, pede muito mais do que isso.
A
caridade tem que ir dentro e ao lado, porque dulcifica tudo e tudo deifica:
Deus é amor.
Temos
de actuar sempre por amor de Deus, que torna mais fácil amar o próximo e
purifica e eleva os amores terrenos.
Para se passar da estrita justiça à
abundância da caridade há todo um trajecto a percorrer e não são muitos os que
perseveram até ao fim: alguns conformam-se com chegar apenas aos umbrais: prescindem
da justiça e limitam-se a um pouco de beneficência, a que chamam caridade, sem
cuidarem de que o que fazem representa uma pequena parte do que estão obrigados
a fazer.
E
mostram-se tão satisfeitos consigo mesmos como o fariseu que julgava ter
enchido a medida da lei só por jejuar dois dias por semana e pagar o dízimo de
tudo o que possuía.
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A caridade, que é como que um transbordar
generoso da justiça, exige em primeiro lugar o cumprimento do dever: começa-se
pelo que é justo; continua-se pelo que é mais equitativo...
Mas
para amar requer-se muita finura, muita delicadeza, muito respeito, muita
afabilidade; numa palavra, seguir aquele conselho do Apóstolo: levai as cargas uns dos outros e assim
cumprireis a lei de Cristo.
Então,
sim, vivemos plenamente a caridade, realizamos o mandato de Jesus.
Para mim não existe exemplo mais claro
dessa união prática da justiça com a caridade do que o comportamento das mães.
Amam
com idêntico carinho todos os seus filhos e esse amor leva-as precisamente a
tratá-los de modo diferente - com uma justiça desigual - visto que cada um é
diferente dos outros.
Pois também em relação aos nossos
semelhantes a caridade aperfeiçoa e completa a justiça, porque nos leva a
proceder de maneira desigual com os desiguais, adaptando-nos às suas circunstâncias
concretas, a fim de comunicarmos alegria a quem está triste, ciência a quem
carece de formação, afecto a quem se sente só...
A
justiça determina que se dê a cada um o que lhe pertence; ora isto não
significa dar a todos a mesma coisa.
O
igualitarismo utópico é fonte das maiores injustiças.
Para procedermos sempre assim, como essas
boas mães, precisamos de esquecer-nos de nós mesmos e de não aspirar a outra superioridade
senão a de servir os outros, como Jesus Cristo, que afirmava: o Filho do homem
veio, não para ser servido, mas para servir.
Isto
exige a inteireza da submissão da nossa vontade ao modelo divino, trabalhar
para todos, lutar pela felicidade eterna e pelo bem-estar dos outros.
Não
conheço melhor caminho para ser justo do que uma vida de entrega e de serviço.
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Talvez alguns pensem que sou um ingénuo.
Não
me importa. Embora me qualifiquem desse modo, porque continuo a acreditar na
caridade, garanto-vos que sempre acreditarei nela!
E
enquanto o Senhor me conceder vida, continuarei a ocupar-me - como sacerdote de
Cristo - de que haja unidade e paz entre os que são irmãos por serem filhos do
mesmo Pai, Deus; de que a humanidade se compreenda; de que todos compartilhem o
mesmo ideal: o da Fé!
Recorramos a Santa Maria, Virgem prudente e
fiel, e a S. José, seu esposo, modelo acabado de homem justo.
Eles,
que na presença de Jesus, Filho de Deus, viveram as virtudes que contemplámos,
conseguir-nos-ão a graça de que se arraiguem firmemente na nossa alma, para nos
decidirmos a proceder a toda a hora como bons discípulos do Mestre: prudentes,
justos, cheios de caridade.
(cont)
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