HAURIETIS AQUAS
DO SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O CULTO DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
II
LEGITIMIDADE
DO CULTO AO SANTÍSSIMO CORAÇÃO DE
JESUS
SEGUNDO
A DOUTRINA DO NOVO TESTAMENTO E DA
TRADIÇÃO
4)
O simbolismo natural do coração de Jesus Cristo afirmado veladamente na Sagrada
Escritura e nos santos Padres
26.
Bem verdade é que nem os autores sagrados, nem os Padres da Igreja que citamos,
e outros semelhantes, embora provem abundantemente que Jesus Cristo esteve
sujeito aos sentimentos e afectos humanos, e que, por isso precisamente, tomou
a natureza humana a fim de nos proporcionar a salvação eterna, contudo não
atribuem concretamente ditos afectos ao Seu coração fisicamente considerado,
apontando nele o símbolo do Seu amor infinito.
Embora
os evangelistas e os outros autores sacros não nos descrevam abertamente o
coração do nosso Redentor não menos vivo e sensível do que o nosso, e as
palpitações e estremecimentos devidos às diversas emoções e afectos da Sua alma
e à ardentíssima caridade da Sua dupla vontade, todavia frequentemente põem em
relevo o Seu divino amor e as emoções sensíveis relacionadas com ele:
O
desejo, a alegria, a tristeza, o temor e a ira, consoante as expressões do Seu
olhar, das Suas palavras e dos Seus gestos.
E,
principalmente, o rosto adorável de nosso Salvador foi, sem dúvida, o índice e
como que o espelho fidelíssimo dos afectos que, comovendo-lhe de vários modos a
alma, à semelhança das ondas que se entrechocam, chegavam ao Seu coração santíssimo
e Lhe excitavam as pulsações.
Na
verdade, a propósito de Jesus Cristo vale também o que o Doutor angélico,
ensinado pela experiência, observa em matéria de psicologia humana e dos fenómenos
derivados dela:
"A
turbação que a ira produz repercute nos membros externos, e principalmente
naqueles em que mais se reflecte a influência do coração, como são os olhos, o
semblante, a língua".[1]
27.
Com muita razão, pois, o coração do Verbo encarnado é considerado índice e
símbolo do tríplice amor com que o divino Redentor ama continuamente o Eterno
Pai e todos os homens.
Ele
é, antes de tudo, símbolo do divino amor, que nele é comum com o Pai e com o
Espírito Santo, e que só nele, como Verbo encarnado, se manifesta por meio do
caduco e frágil instrumento humano, "pois nele habita corporalmente a
plenitude da divindade"[2].
Ademais,
o coração de Cristo é símbolo de enérgica caridade, que, infundida em Sua alma,
constitui o precioso dote da sua vontade humana, e cujos actos são dirigidos e
iluminados por uma dupla e perfeita ciência, a beatífica e a infusa.[3]
Finalmente,
e isto de modo mais natural e directo, o coração de Jesus é símbolo do Seu amor
sensível, já que o corpo de Jesus Cristo, plasmado no seio imaculado da Virgem
Maria por obra do Espírito Santo, supera em perfeição, e portanto em capacidade
perceptiva, qualquer outro organismo humano.[4]
28.
Instruídos pelos sagrados textos e pelos símbolos da fé acerca da perfeita
consonância e harmonia reinante na alma santíssima de Jesus Cristo, e a
respeito do facto de ele haver dirigido com finalidade redentora todas as
manifestações do seu tríplice amor, com toda segurança podemos contemplar e
venerar no coração do Redentor divino a imagem eloquente da Sua caridade e o
testemunho da nossa redenção, e como que uma mística escada para subir ao amplexo
"de Deus nosso Salvador"[5].
Por
isso, nas palavras, nos actos, nos ensinamentos, nos milagres, e especialmente
nas obras mais esplendorosas do Seu amor para connosco, como a instituição da
divina eucaristia, a Sua dolorosa paixão e morte, a benigna doação de Sua
santíssima Mãe, a fundação da Igreja para proveito nosso, e, finalmente, a
missão do Espírito Santo sobre os apóstolos e sobre nós, em todas essas obras,
repetimos, devemos admirar outros tantos testemunhos do Seu tríplice amor, e meditar
as pulsações do Seu coração, com as quais Ele quis medir os instantes da Sua
peregrinação terrena até o momento supremo em que, como atestam os
evangelistas, "clamando com grande
voz, disse: Tudo está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito"[6].
Então
o Seu coração parou e deixou de bater, e o Seu amor sensível permaneceu como
que suspenso, até que, triunfando da morte, Ele se levantou do sepulcro.
Depois
que o Seu corpo conseguiu o estado da glória sempiterna e se uniu novamente à
alma do divino Redentor, vitorioso da morte, o Seu Coração Sacratíssimo nunca
deixou nem deixará de palpitar com imperturbável e plácida pulsação, nem
tampouco cessará de demonstrar o tríplice amor com que o Filho de Deus Se une a
Seu Pai eterno e à humanidade inteira, de quem é, com pleno direito, a cabeça
mística.
PIO PP. XII.
(Revisão da versão
portuguesa por AMA)
Notas:
[1] Summa theol., I-II, q. 48, a.
4; ed. Leon. t. VI,1891, p. 306.
[2] Cl 2,9
[3] Cf. Summa theol., III, q. 9,
aa. l-3; ed. Leon. t. XI,1903, p.142.
[4] Cf. ibid., III, q. 33, a.2 até
3; q. 46, a. 6; ed. Leon. t. XI,1903, pp. 342, 433.
[5] Tt 3, 4
[6] Mt 27, 50; Jo 19,
30
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