06/06/2019

Leitura espiritual


CARTA ENCÍCLICA

HAURIETIS AQUAS

DO SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA

SOBRE O CULTO DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS


II

LEGITIMIDADE DO CULTO AO SANTÍSSIMO CORAÇÃO DE JESUS
SEGUNDO A DOUTRINA DO NOVO TESTAMENTO E DA TRADIÇÃO

20. Com efeito, o mistério da divina redenção é, antes de tudo e pela sua própria natureza, um mistério de amor:

Isto é, um mistério de amor justo da parte de Cristo para com Seu Pai celeste, a quem o sacrifício da cruz, oferecido com coração amante e obediente, apresenta uma satisfação superabundante e infinita pelos pecados do género humano:

Cristo, sofrendo por caridade e obediência, ofereceu à Deus alguma coisa de valor maior do que o exigia a compensação por todas as ofensas feitas a Deus pelo género humano.[1]

Além disso, o mistério da redenção é um mistério de amor misericordioso da augusta Trindade e do divino Redentor para com a humanidade inteira, visto que, sendo esta totalmente incapaz de oferecer a Deus uma satisfação condigna pelos seus próprios delitos,[2] mediante a imperscrutável riqueza de méritos que nos ganhou com a efusão do seu precioso sangue, Cristo pode restabelecer e aperfeiçoar aquele pacto de amizade entre Deus e os homens violado pela primeira vez no paraíso terrestre por culpa de Adão e depois, inúmeras vezes, pela infidelidade do povo escolhido.

Portanto, havendo na Sua qualidade de nosso legítimo e perfeito mediador, e sob o estímulo de uma caridade energética para connosco, conciliando as obrigações e compromissos do género humano com os direitos de Deus, o divino Redentor foi, sem dúvida, o autor daquela maravilhosa reconciliação entre a justiça divina e a divina misericórdia, a qual justamente constitui a absoluta transcendência do mistério da nossa salvação, tão sabiamente expresso pelo doutor angélico com estas palavras:

"Convém observar que a libertação do homem, mediante a paixão de Cristo, foi conveniente tanto para a justiça como para a misericórdia do mesmo Cristo. Antes de tudo para a justiça, porque com a sua paixão Cristo satisfez pela culpa do gênero humano, e, por conseguinte, pela justiça de Cristo foi o homem libertado. E, em segundo lugar, para a misericórdia, porque, não sendo possível ao homem satisfazer pelo pecado, que manchava toda a natureza humana, deu-lhe Deus um reparador na pessoa de seu Filho. Ora, isto foi, da parte de Deus, um gesto de mais generosa misericórdia do que se ele houvesse perdoado os pecados sem exigir qualquer satisfação. Por isso está escrito:

'Deus, que é rico em misericórdia, movido pelo excessivo amor com que nos amou quando estávamos mortos pelos pecados, deu-nos vida juntamente em Cristo'" [3].[4]

2) Tríplice amor do Redentor para com o género humano: divino, espiritual e sensível

21. Mas, a fim de, na medida que isso é dado aos homens mortais, poderdes "compreender com todos os santos qual é a largura e comprimento, a altura e profundidade" [5] da insondável caridade do Verbo encarnado para com seu Pai celestial e para com os homens manchados de tantas culpas, convém ter bem presente que o amor não foi unicamente espiritual, como convém a Deus, visto que "Deus é espírito"[6].

Indubitavelmente, de índole puramente espiritual foi o amor nutrido por Deus para com nossos progenitores e para com o povo hebreu; por isso, as expressões de amor humano, quer conjugal, quer paterno, que se lêem nos Salmos, nos escritos dos profetas e no Cântico dos Cânticos, são indícios e símbolos de um amor verdadeiros mas totalmente espiritual, com que Deus amava o género humano; ao contrário, o amor que se exala do Evangelho, das cartas dos apóstolos e das páginas do Apocalipse, onde se descreve o amor do Coração de Jesus, não compreende somente a caridade divina, mas estende-se também aos sentimentos do afecto humano.

Para todo aquele que faz profissão de fé católica, essa verdade é indiscutível.

Com efeito, o Verbo de Deus não tomou um corpo ilusório e fictício; como já no primeiro século da era cristã ousaram afirmar alguns hereges, que atraíram a severa condenação do apóstolo João:

"Porque muitos sedutores que não confessam a Jesus Cristo encarnado espalham-se pelo mundo. Este é o Sedutor, o Anticristo"[7]; porém ele, o Verbo de Deus, uniu à Sua divina pessoa uma natureza humana indivídua, íntegra e perfeita, concebida no seio imaculado de Maria Virgem por obra do Espírito Santo[8].

Nada, pois, faltou à natureza humana assumida pelo Verbo de Deus; em verdade, ele a possui sem nenhuma diminuição, sem nenhuma alteração, tanto nos elementos constitutivos espirituais quanto nos corporais, a saber:

Dotada de inteligência de vontade e demais faculdades cognoscitivas internas e externas;
Dotada igualmente das potências afectivas, sensitivas e das suas correspondentes paixões.

É isso o que ensina a Igreja católica, por estar sancionado e solenemente confirmado pelos romanos pontífices e pelos concílios ecuménicos:

"Inteiro nas suas propriedades, inteiro nas nossas";[9]
"Perfeito na divindade e Ele próprio perfeito na humanidade";[10]
"Todo Deus (feito) homem e todo o homem (subsistente em) Deus".[11]

22. Não havendo, pois, dúvida alguma de que Jesus possuía um verdadeiro corpo humano, dotado de todos os sentimentos que lhe são próprios, entre os quais campeia o amor, do mesmo modo é muito verdade que ele foi provido de um coração físico em tudo semelhante ao nosso, não sendo possível que a vida humana, privada deste excelentíssimo membro do corpo, tenha a sua natural atividade afectiva. Por conseguinte, o coração de Cristo, unido hipostaticamente à pessoa divina do Verbo, sem dúvida deve ter palpitado de amor e de qualquer outro afecto sensível; contudo, esses sentimentos eram tão conformes e estavam tão em harmonia com a vontade humana, transbordante de caridade divina, e com o próprio amor infinito que o Filho tem com o Pai e com o Espírito Santo, que jamais se interpôs a mínima oposição e discórdia entre esses três amores.[12]

23. Todavia, o facto de o Verbo de Deus ter assumido a verdadeira e perfeita natureza humana, e de lhe ter sido plasmado e como que modelado um coração de carne que, não menos do que o nosso, fosse capaz de sofrer e de ser ferido, esse facto, digamos, se não é visto e considerado à luz que emana não só da união hipostática e substancial, mas também da verdade da redenção humana, que é, por assim dizer, o complemento daquela, a alguns poderia parecer "escândalo" e "loucura", como de facto aos judeus e gentios pareceu "Cristo crucificado"[13].

Ora, os símbolos da fé, perfeitamente concordes com as divinas Escrituras, asseguram-nos que o Filho unigénito de Deus assumiu a natureza passível e mortal com a mira posta principalmente no sacrifício cruento da cruz, que Ele desejava oferecer com o fim de realizar a obra da salvação do homem.

Além disso, esta é a doutrina exposta pelo Apóstolo das gentes:

"Porque aquele que santifica, e os santificados, todos tiram de um a sua origem. Razão pela qual ele não tem escrúpulos de chamá-los irmãos, dizendo: 'Anunciarei teu nome a meus irmãos...' Outrossim: `Eis-nos aqui, eu e meus filhos que Deus me deu'. E por isso que os filhos têm comuns a carne e o sangue, ele também participou das mesmas coisas... Pelo que, em tudo teve de se assemelhar a seus irmãos, a fim de ser um pontífice misericordioso e fiel para com Deus, em ordem a expiar os pecados do povo. Já que, em razão de haver ele mesmo padecido e de ter sido tentado, pode também dar a mão aos que são tentados"[14].


PIO PP. XII.


(Revisão da versão portuguesa por AMA)



Notas:



[1] Summa Theol., III, q. 48. a. 2 ; ed. Leon. t. XI,1903, p. 464.
[2] Cf. Enc. Miserentissimus Redemptor; AAS 20(1928), p.170.
[3] Ef 2, 4
[4] Summa Theol., III, q. 46, a. l ad 3; ed. Leon., t. XI,1903, p. 436.
[5] Ef 3,18
[6] Jo 4,24
[7] 2 Jo 7
[8] cf. Lc 1,35
[9] S. Leão Magno, Epist. dogm: "Lectis dilectionis tuae" ad Flavianum Const. Patr. de 13 de Junho de 449; cf. PL 54, 763.
[10] S. Gelasio Papa, Tract. III: "Necessarium" De duabus naturis in Christo, cf. A. Thiel, Epist. rom. pont, a s. Hilaro usque ad Pelagium II, p. 532.
[12] Cf. s. Tomás, Summa theol., III, q. 15, a. 4; q. 18, a. 6; ed. Leon. t. Xl, 1903, pp.189 e 237.
[13] cf. 1 Cor 1, 23
[14] Hb 2, 11-14; 17-18

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