Cristo que passa 34 a 36
34
Bom pastor, bom guia
Se a vocação é o mais
importante, se a luz da estrela vai à nossa frente, para nos orientar no nosso
caminho de amor de Deus, não é lógico ter dúvidas quando, uma vez ou outra, a
perdemos de vista. Quase sempre por nossa culpa, em certos momentos da nossa
vida interior, acontece-nos o que aconteceu na viagem dos Reis Magos: a estrela
oculta-se.
Já conhecemos o esplendor
divino da nossa vocação, estamos convencidos do seu carácter definitivo, mas
talvez o pó que levantamos ao caminhar - o pó das nossas misérias - forme uma
nuvem densa, que não deixa passar a luz.
Que havemos de fazer
então?
Seguir o exemplo daqueles
homens santos: perguntar. Herodes serviu-se da ciência para proceder de modo
injusto; os Reis Magos utilizam-na para fazer o bem.
Mas nós, cristãos, não
temos necessidade de perguntar a Herodes ou aos sábios da Terra.
Cristo deu à sua Igreja a
segurança da doutrina, a corrente da graça dos Sacramentos; e providenciou para
que haja pessoas que nos orientem, que nos conduzam, que nos recordem
constantemente o caminho.
Dispomos de um tesouro
infinito de ciência: a Palavra de Deus, guardada pela Igreja; a graça de Cristo
que se administra nos Sacramentos; o testemunho e o exemplo dos que vivem com
rectidão a nosso lado e sabem fazer das suas vidas um caminho de fidelidade a
Deus.
Permiti que vos dê um
conselho: se alguma vez perderdes a claridade da luz, recorrei sempre ao bom
pastor.
E quem é o bom pastor?
O que entra pela porta da
fidelidade à doutrina da Igreja; o que não se comporta como um mercenário, que,
ao ver vir o lobo, deixa as ovelhas e foge; e o lobo arrebata-as e faz
dispersar o rebanho. Reparai que a palavra divina não é vã: a insistência de
Cristo (vedes como fala, com tanto carinho, de ovelhas e de pastores, de redil
e de rebanhos?) é uma demonstração prática da necessidade de um bom guia para a
nossa alma.
Se não houvesse maus
pastores - escreve S. Agostinho - Ele não teria feito referência especial aos
bons.
Quem é mercenário?
É o que vê o lobo e foge.
O que procura a sua
própria glória, não a glória de Cristo; o que não se atreve a reprovar os
pecadores com liberdade e espírito.
O lobo fila uma ovelha
pelo pescoço; o diabo induz um fiel, por exemplo, a cometer adultério.
Se te calas e não reprovas
esse comportamento, és mercenário: viste o lobo e fugiste.
Talvez me contradigas:
não, estou aqui; não fugi.
E eu respondo-te: fugiste
porque te calaste; e calaste-te porque tiveste medo.
A santidade da esposa de
Cristo sempre se provou - e continua a provar-se actualmente - pela abundância
de bons pastores.
Mas a fé cristã, que nos
ensina a ser simples, não nos leva a ser ingénuos.
Há mercenários que se
calam e há mercenários que pregam uma doutrina que não é de Cristo.
Por isso, se porventura o
Senhor permite que fiquemos às escuras, inclusivamente em coisas de pormenor,
se sentimos falta de firmeza na fé, recorramos ao bom pastor, àquele que -
dando a vida pelos outros - quer ser, na palavra e na conduta, uma alma movida
pelo amor - àquele que talvez seja também um pecador, mas que confia sempre no
perdão e na misericórdia de Cristo.
Se a vossa consciência vos
reprova por alguma falta - embora não vos pareça uma falta grave - se tendes
uma dúvida a esse respeito, recorrei ao sacramento da Penitência.
Ide ao sacerdote que vos
atende, ao que sabe exigir de vós firmeza na fé, delicadeza de alma, verdadeira
fortaleza cristã.
Na Igreja existe a mais
completa liberdade para nos confessarmos com qualquer sacerdote que possua as
necessárias licenças eclesiásticas; mas um cristão de vida limpa recorrerá -
com liberdade! - àquele que reconhece como bom pastor, que o pode ajudar a
erguer a vista para voltar a ver no céu a estrela do Senhor.
35
Ouro, incenso e mirra
Videntes autem stellam,
gavisi sunt gaudio magno valde” - diz o texto latino com admirável reiteração:
ao descobrir novamente a estrela, exultaram com grande alegria.
E porquê tanta alegria?
Porque eles, que nunca
duvidaram, recebem do Senhor a prova de que a estrela não tinha desaparecido;
deixaram de a ver sensivelmente mas tinham-na conservado sempre na alma.
Assim é a vocação cristã:
se não se perde a fé, se se mantém a esperança em Jesus Cristo que estará
connosco até à consumação dos séculos, a estrela reaparece.
E, ao verificar uma vez
mais a realidade da vocação, nasce em nós uma alegria maior, que aumenta a
nossa fé, a nossa esperança, o nosso amor.
Ao entrarem na casa, viram
o Menino com Maria, sua Mãe, e, pondo-se de joelhos, adoraram-no.
Ajoelhemo-nos nós também
diante de Jesus, do Deus escondido na humanidade; repitamos-lhe que não
queremos voltar as costas ao seu chamamento divino, que nunca nos afastaremos
dele; que arredaremos do nosso caminho tudo o que for um estorvo para a fidelidade;
que desejamos sinceramente ser dóceis às suas inspirações.
Tu, interiormente, e eu
também - porque estou a fazer uma oração íntima, com um profundo clamor
silencioso - dizemos agora ao Menino que ansiamos por ser tão cumpridores como
os servos da parábola, para que também nos possa responder a nós: alegra-te
servo bom o fiel.
E, abrindo os seus
tesouros, ofereceram-lhe presentes de ouro, incenso e mirra.
Detenhamo-nos um pouco
para entender este passo do Santo Evangelho.
Como é possível que nós, que
nada somos e nada valemos, ofereçamos alguma coisa a Deus?
Diz a Escritura: toda a
dádiva e todo o dom perfeito vem do alto.
O homem não consegue
descobrir plenamente a profundidade e a beleza dos dons do Senhor: se tu
conhecesses o dom de Deus... - responde Jesus à mulher samaritana.
Jesus Cristo ensinou-nos a
esperar tudo do Pai, a procurar antes de mais o Reino de Deus e a sua justiça,
porque tudo o resto se nos dará por acréscimo e Ele conhece bem as nossas
necessidades.
Na economia da salvação, o
nosso Pai cuida de cada alma com amor e delicadeza: cada um recebeu de Deus o
seu próprio dom; uns de um modo, outros de outro.
Portanto, podia parecer
inútil cansarmo-nos, tentando apresentar ao Senhor algo de que Ele precise;
dada a nossa situação de devedores que não têm com que saldar as dívidas, as
nossas ofertas assemelhar-se-iam às da Antiga Lei, que Deus já não aceita: Tu
não quiseste os sacrifícios, as oblações e os holocaustos pelo pecado, nem te
são agradáveis as coisas que se oferecem segundo a Lei.
Mas o Senhor sabe que o
dar é próprio dos apaixonados e Ele próprio nos diz o que deseja de nós.
Não lhe interessam
riquezas, nem frutos, nem animais da terra, do mar ou do ar, porque tudo isso
lhe pertence.
Quer algo de íntimo, que
havemos de lhe entregar com liberdade: dá-me, meu filho, o teu coração.
Vedes?
Se compartilha, não fica
satisfeito: quer tudo para si.
Repito: não pretende o que
é nosso; quer-nos a nós mesmos. Daí - e só daí - advêm todas as outras ofertas
que podemos fazer ao Senhor.
Demos-lhe, portanto, ouro:
o ouro fino do espírito de desprendimento do dinheiro e dos bens materiais.
Não esqueçamos que são
coisas boas, que vêm de Deus. Mas o Senhor dispôs que as utilizemos sem deixar
que o coração fique preso a elas, pelo contrário, tirando delas proveito para
bem da humanidade.
Os bens da terra não são
maus; pervertem-se quando o homem os toma como ídolos e se prostra diante
deles; mas tornam-se nobres quando os tornamos instrumentos para o bem nalguma
actividade cristã de justiça e de caridade.
Não podemos correr atrás
dos bens económicos, como quem procura um tesouro; o nosso tesouro está aqui,
deitado num presépio; é Cristo e nele se há-de concentrar todo o nosso amor,
porque onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração.
36
Oferecemos incenso: o
desejo - que elevamos até ao Senhor - de levar uma vida recta, de que se
desprenda o bonus odor Christi, o perfume de Cristo.
Impregnar as nossas
palavras e acções desse bonus odor é semear compreensão e amizade.
Que a nossa vida acompanhe
as vidas dos restantes homens, para que ninguém se encontre ou se sinta só.
A caridade há-de ser
também carinho, calor humano.
Assim no-lo ensina Jesus
Cristo.
A humanidade havia séculos
que esperava a vinda do Salvador; os profetas tinham-no anunciado de mil
maneiras; e - embora, por acção do pecado e da ignorância se tivesse perdido
grande parte da Revelação de Deus aos homens - conservava-se até aos confins da
Terra o desejo de Deus, a ânsia de redenção.
Chega a plenitude dos tempos
e, para cumprir essa missão, não aparece um génio filosófico, como Sócrates ou
Platão; não se instala na terra um conquistador poderoso, como Alexandre Magno.
Nasce um Menino em Belém.
É o Redentor do mundo;
mas, antes de começar a falar, demonstra o seu amor com obras.
Não é portador de nenhuma
fórmula mágica, porque sabe que a salvação que nos traz há-de passar pelo
coração do homem.
As suas primeiras acções
são risos e choros de criança, o sono inerme de um Deus humanado; para que
fiquemos tomados de amor, para que saibamos acolhê-Lo nos nossos braços.
Uma vez mais
consciencializamos que isto é que é o Cristianismo.
Se o cristão não ama com
obras, fracassa como cristão, o que significa fracassar também como pessoa.
Não podes pensar nos
outros homens como se fossem números, ou degraus para tu subires; como se
fossem massa, para ser exaltada ou humilhada, adulada ou desprezada, conforme
os casos.
Tens de pensar nos outros
- antes de mais, nos que estão ao teu lado - vendo neles o que na verdade são:
filhos de Deus, com toda a dignidade que esse título maravilhoso lhes confere.
Com os filhos de Deus,
temos de comportar-nos como filhos de Deus: o nosso amor há-de ser abnegado,
diário, tecido de mil e um pormenores de compreensão, de sacrifício calado, de
entrega silenciosa.
Este é o bonus odor Christi que arrancava uma
exclamação aos que conviviam com os primeiros cristãos: Vede como se amam!.
Não estou a falar de um
ideal distante.
O cristão não é um
Tartarin de Tarascon, empenhado em caçar leões onde não pode encontrá-los: nos
corredores da sua própria casa. Falo, sim, da vida quotidiana e concreta: da
santificação do trabalho, das relações familiares, da amizade.
Se não somos cristãos
nestas coisas, onde podemos sê-lo?
O perfume do incenso
deve-se ao carvão em brasa que queima sem ostentação uma grande quantidade de
grãos.
Também o bonus odor
Christi se manifesta entre os homens, não como a chama espectacular de um
incêndio passageiro, mas mediante a eficácia de todo um rescaldo de virtudes:
justiça, lealdade, fidelidade, compreensão, generosidade, alegria.
(cont)
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