DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA
CAPÍTULO
IV
OS
PRINCÍPIOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
I.
SIGNIFICADO E UNIDADE DOS PRINCÍPIOS
c)
As tarefas da comunidade política
168
A responsabilidade de perseguir o bem comum compete, não só às pessoas
consideradas individualmente, mas também ao Estado, pois que o bem comum é a
razão de ser da autoridade política. Na verdade, o Estado deve garantir
coesão, unidade e organização à sociedade civil da qual é expressão, de
modo que o bem comum possa ser conseguido com o contributo de todos os
cidadãos. O indivíduo humano, a família, as corpos intermédios não são capazes
por si próprias de chegar ao seu pleno desenvolvimento; daí serem necessárias
as instituições políticas, cuja finalidade é tornar acessíveis às pessoas os
bens necessários — materiais, culturais, morais, espirituais — para levar uma
vida verdadeiramente humana. O fim da vida social é o bem comum historicamente
realizável.
169
Para assegurar o bem comum, o governo de cada País tem a tarefa específica de
harmonizar com justiça os diversos interesses sectoriais. A correcta
conciliação dos bens particulares de grupos e de indivíduos é uma das funções
mais delicadas do poder público. Além disso, não se há de olvidar que, no
Estado democrático — no qual as decisões são geralmente tomadas pela maioria
dos representantes da vontade popular —, aqueles que têm responsabilidade de
governo estão obrigados a interpretar o bem comum do seu País, não só segundo
as orientações da maioria, mas também na perspectiva do bem efectivo de todos
os membros da comunidade civil, inclusive dos que estão em posição de minoria.
170
O bem comum da sociedade não é um fim isolado em si mesmo; ele tem valor
somente em referência à obtenção dos fins últimos da pessoa e ao bem comum
universal de toda a criação. Deus é o fim último de suas criaturas e por motivo
algum se pode privar o bem comum da sua dimensão transcendente, que excede, mas
também dá cumprimento à dimensão histórica. Esta perspectiva atinge a sua
plenitude em força da fé na Páscoa de Jesus, que oferece plena luz acerca da
realização do verdadeiro bem comum da humanidade. A nossa história — o esforço
pessoal e colectivo de elevar a condição humana — começa e culmina em Jesus:
graças a Ele, por meio d’Ele e em vista d’Ele, toda a realidade, inclusa a
sociedade humana, pode ser conduzida ao seu Bem Sumo, à sua plena realização.
Uma visão puramente histórica e materialista acabaria por transformar o bem
comum em simples bem-estar económico, destituído de toda finalização
transcendente ou bem da sua mais profunda razão de ser.
III.
O DESTINO UNIVERSAL DOS BENS
a)
Origem e significado
171
Dentre as multíplices implicações do bem comum, assume particular importância o
princípio do destino universal dos bens: «Deus destinou a terra e tudo o que
ela contém para o uso de todos os homens e de todos os povos, de sorte que os
bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a regra da
justiça, inseparável da caridade». Este princípio se baseia no facto de
que: «a origem primeira de tudo o que é bem é o próprio ato de Deus que criou a
terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com o seu trabalho e
goze dos seus frutos (Cf. Gn 1, 28-29). Deus deu a terra a todo o género
humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar
ninguém. Está aqui a raiz da destinação universal dos bens da terra. Esta, pela
sua própria fecundidade e capacidade de satisfazer as necessidades do homem,
constitui o primeiro dom de Deus para o sustento da vida humana». A pessoa
não pode prescindir dos bens materiais que respondem às suas necessidades
primárias e constituem as condições basilares para a sua existência; estes bens
lhe são absolutamente indispensáveis para alimentar-se e crescer, para
comunicar, para associar-se e para poder conseguir as mais altas finalidades a
que é chamada.
172
O princípio da destino universal dos bens da terra está na base do direito
universal ao uso dos bens. Todo o homem deve ter a possibilidade de usufruir do
bem-estar necessário para o seu pleno desenvolvimento: o princípio do uso comum
dos bens é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social» e
«princípio típico da doutrina social cristã». Por esta razão a Igreja
considerou necessário precisar-lhe a natureza e as características. Trata-se,
antes de tudo, de um direito natural, inscrito na natureza do homem e não de um
direito somente positivo, ligado à contingência histórica; ademais, tal direito
é «originário». É inerente à pessoa singularmente considerada, a cada
pessoa, e é prioritário em relação a qualquer intervenção humana sobre os bens,
a qualquer regulamentação jurídica dos mesmos, a qualquer sistema e método económico-social:
«Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e
de comércio livre, estão-lhe subordinados [ao destino universal dos bens]:
não devem portanto impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização; e
é um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade primeira».
173
A actuação concreta do princípio da destinação universal dos bens, segundo os
diferentes contextos culturais e sociais, implica uma precisa definição dos
modos, dos limites, dos objectos. Destinação e uso universal não significam que
tudo esteja à disposição de cada um ou de todos, e nem mesmo que a mesma coisa
sirva ou pertença a cada um ou a todos. Se é verdade que todos nascem com o
direito ao uso dos bens, é igualmente verdadeiro que, para assegurar o seu
exercício equitativo e ordenado, é necessário que se actue uma regulamentação,
fruto de acordos nacionais e internacionais, e um ordenamento jurídico que
determine e especifique tal exercício.
174
O princípio da destinação universal dos bens convida a cultivar uma visão da economia
inspirada em valores morais que permitam nunca perder de vista nem a origem,
nem a finalidade de tais bens, de modo a realizar um mundo equitativo e
solidário, em que a formação da riqueza possa assumir uma função positiva. A
riqueza, com efeito, apresenta esta valência, na multiplicidade das formas que
podem exprimi-la como o resultado de um processo produtivo de elaboração
técnico-económica dos recursos disponíveis, naturais e derivados, guiado pela
inventiva, pela capacidade concretizar projectos, pelo trabalho dos homens, e
empregada como meio útil para promover o bem-estar dos homens e dos povos e
para contrastar-lhes a exclusão e exploração.
175
O destinação universal dos bens comporta, portanto, um esforço comum que mira
obter para toda pessoa e para todos os povos as condições necessárias ao
desenvolvimento integral, de modo que todos possam contribuir para a promoção
de um mundo mais humano, «onde cada um possa dar e receber, e onde o progresso
de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem um pretexto
para a sua sujeição». Este princípio corresponde ao apelo que o Evangelho
incessantemente dirige ao homem e às sociedades de todos os tempos, sempre
expostos às tentações da avidez da posse, a que o próprio Senhor Jesus quis
submeter-Se (Cf. Mc 1,12-13; Mt 4,1-11; Lc 4,1-13) ensinando-nos o caminho para
superá-la com a Sua graça.
b)
Destinação universal dos bens e propriedade privada
176
Mediante o trabalho, o homem, usando a sua inteligência, consegue dominar a
terra e torná-la sua digna morada: «Deste modo, ele apropria-se de uma parte da
terra, adquirida precisamente com o trabalho. Está aqui a origem da propriedade
individual». A propriedade privada, bem como as outras formas de domínio
privado dos bens, «assegura a cada qual um meio absolutamente necessário para a
autonomia pessoal e familiar e deve ser considerada como uma prolongação da
liberdade humana [...], constitui uma certa condição das liberdades civis,
porque estimula ao exercício da sua função e responsabilidade». A
propriedade privada é elemento essencial de uma política económica
autenticamente social e democrática e é garantia de uma recta ordem social. A
doutrina social requer que a propriedade dos bens seja equitativamente
acessível a todos, de modo que todos sejam, ao menos em certa medida,
proprietários, e exclui o recurso a formas de «domínio comum e promíscuo».
177
A tradição cristã nunca reconheceu o direito à propriedade privada como
absoluto e intocável: «pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto
do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à
propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à
destinação universal dos bens». O princípio da destinação universal dos
bens afirma seja o pleno e perene senhorio de Deus sobre toda a realidade, seja
a exigência que os bens da criação sejam e permaneçam finalizados e destinados
ao desenvolvimento de todo homem e de toda a humanidade. Este princípio,
porém, não se opõe ao direito de propriedade, indica antes a necessidade
de regulamentá-lo. A propriedade privada, com efeito, quaisquer que sejam as
formas concretas dos regimes e das normas jurídicas que lhes digam respeito, é,
na sua essência, somente um instrumento para o respeito do princípio da
destinação universal dos bens, e portanto, em última análise, não um fim, mas
um meio.
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