DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA
CAPÍTULO
II
MISSÃO
DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL
III. A DOUTRINA SOCIAL DO
NOSSO TEMPO:
ACENOS HISTÓRICOS
a)
O início de um novo caminho
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A locução doutrina social remonta a Pio XI e designa o corpus doutrinal
referente à sociedade que, a partir da Encíclica Rerum novarum (1891) de
Leão XIII, se desenvolveu na Igreja através do Magistério dos Romanos
Pontífices e dos Bispos em comunhão com eles. A solicitude social
certamente não teve início com tal documento, porque a Igreja jamais deixou de
se interessar pela sociedade; não obstante a Encíclica «Rerum novarum» dá
início a um novo caminho: inserindo-se numa tradição plurissecular, ela
assinala um novo início e um substancial desenvolvimento do ensinamento em
campo social.
Na
sua contínua atenção ao homem na sociedade, a Igreja acumulou assim um rico
património doutrinal. Ele tem as suas raízes na Sagrada Escritura,
especialmente no Evangelho e nos escritos apostólicos, e tomou forma e corpo na
doutrina dos Padres da Igreja, dos grandes Doutores da Idade Média,
constituindo uma doutrina na qual, mesmo sem pronunciamentos magisteriais
explícitos e directos, a Igreja se foi pouco a pouco reconhecendo.
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Os eventos de natureza económica que se deram no século XIX tiveram consequências
sociais, políticas e culturais lacerantes. Os acontecimentos ligados à
revolução industrial subverteram a secular organização da sociedade, levantando
graves problemas de justiça e pondo a primeira grande questão social, a questão
operária, suscitada pelo conflito entre capital e trabalho. Nesse quadro, a
Igreja advertiu a necessidade de intervir de modo novo: as «res novae»,
constituídas por tais eventos, representavam um desafio ao seu ensinamento e
motivavam uma especial solicitude pastoral para com as ingentes massas de
homens e mulheres. Era necessário um renovado discernimento da situação, apto a
delinear soluções apropriadas para problemas insólitos e inexplorados.
b)
Da «Rerum novarum» aos nossos dias
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Em resposta à primeira grande questão social, Leão XIII promulga a primeira
encíclica social, a «Rerum novarum». Ela examina a condição dos
trabalhadores assalariados, particularmente penosa para os operários das
indústrias, afligidos por uma indigna miséria. A questão operária é tratada
segundo a sua real amplitude: é explorada em todas as suas articulações sociais
e políticas, para ser adequadamente e avaliada à luz dos princípios doutrinais
baseados na Revelação, na lei e na moral natural.
A
«Rerum novarum» enumera os erros que provocam o mal social, exclui o socialismo
como remédio e expõe, precisando-a e actualizando-a, «a doutrina católica
acerca do trabalho, do direito de propriedade, do princípio de colaboração
contraposto à luta de classe como meio fundamental para a mudança social, sobre
o direito dos fracos, sobre a dignidade dos pobres e sobre as obrigações dos
ricos, sobre o aperfeiçoamento da justiça mediante a caridade, sobre o direito
a ter associações profissionais».
A
«Rerum novarum» tornou-se a «carta magna» da actividade cristã em campo
social. O tema central da doutrina social da Encíclica é o da instauração
de uma ordem social justa, em vista do qual é mister individuar critérios de
juízo que ajudem a avaliar os ordenamentos sócio-políticos existentes e
formular linhas de acção para uma sua oportuna transformação.
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A «Rerum novarum» enfrentou a questão operária com um método que se tornará
«um paradigma permanente» para o desenvolvimento da doutrina social. Os
princípios afirmados por Leão XIII serão retomados e aprofundados pelas
encíclicas sociais sucessivas. Toda a doutrina social poderia ser entendida
como uma actualização, um aprofundamento e uma expansão do núcleo originário de
princípios expostos na «Rerum novarum». Com este texto, corajoso e de longo
alcance, o Papa Leão XIII «conferiu à Igreja quase um “estatuto de cidadania”
no meio das variáveis realidades da vida pública» e «escreveu esta palavra
decisiva», que se tornou «um elemento permanente da doutrina social da
Igreja», afirmando que os graves problemas sociais «só podiam ser
resolvidos pela colaboração entre todas as forças intervenientes» e acrescentando
também: «Quanto à Igreja, não deixará de modo nenhum faltar a sua
quota-parte».
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No início dos anos Trinta, em seguida à grave crise económica de 1929, o Papa
Pio XI publica a Encíclica «Quadragesimo anno» (1931) comemorativa dos
quarenta anos da «Rerum novarum». O Papa relê o passado à luz de uma situação
económico-social em que, à industrialização se ajuntara a expansão do poder dos
grupos financeiros, em âmbito nacional e internacional. Era o período
pós-bélico, em que se iam afirmando na Europa os regimes totalitários, enquanto
se exacerbava a luta de classe. A encíclica adverte acerca da falta de respeito
à liberdade de associação e reafirma os princípios de solidariedade e de
colaboração para superar as antinomias sociais. As relações entre capital e
trabalho devem dar-se sob o signo da colaboração.
A
«Quadragesimo anno» reafirma o princípio segundo o qual o salário deve ser
proporcionado não só às necessidades do trabalhador, mas também às de sua
família. O Estado, nas relações com o sector privado, deve aplicar o princípio
de subsidiaridade, princípio que se tornará um elemento permanente da doutrina
social. A encíclica refuta o liberalismo entendido como concorrência ilimitada
das forças económicas, mas reconfirma o direito à propriedade privada,
evocando-lhe a sua função social. Em uma sociedade por reconstruir desde as bases
económicas, que se torna ela mesma e toda inteira «a questão» a enfrentar, «Pio
XI sentiu o dever e a responsabilidade de promover um maior conhecimento, uma
mais exacta interpretação e uma urgente aplicação da lei moral reguladora das
relações humanas... para superar o conflito de classes e estabelecer uma nova
ordem social baseada na justiça e na caridade».
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Pio XI não deixou de elevar a voz contra os regimes totalitários que durante o
seu pontificado se afirmaram na Europa. Já no dia 29 de Junho de 1931 Pio XI
havia protestado contra os abusos do regime totalitário fascista na Itália com
a Encíclica «Non abbiamo bisogno». Em 1937 publicou a Encíclica «Mit
brennender Sorge», sobre a situação da Igreja Católica no Reich Germânico (14
de Março de 1937). O texto da «Mit brennender Sorge» foi lido do púlpito
em todas as Igrejas, depois de ter sido distribuído no máximo segredo. A
encíclica aparecia após anos de abusos e de violências e fora expressamente
pedida a Pio XI pelos bispos alemães, após as medidas cada vez mais coativas e
repressivas tomadas pelo Reich em 1936, particularmente em relação aos jovens,
obrigados a inscrever-se na «Juventude hitleriana». O Papa dirige-se
diretamente aos sacerdotes e aos religiosos, aos fiéis leigos, para os incentivar
e chamar à resistência, enquanto uma verdadeira paz entre a Igreja e o Estado
não se restabelecesse. Em 1938, perante a difusão do anti-semitismo, Pio XI
afirmou: «Somos espiritualmente semitas».
Com
a Carta encíclica «Divini Redemptoris», sobre o comunismo ateu e sobre a
doutrina social cristã (19 de Março de 1937), Pio XI criticou de modo
sistemático o comunismo, definido como «intrinsecamente perverso», e
indicou como meios principais para dar remédio aos males por ele produzidos, a
renovação da vida cristã, o exercício da caridade evangélica, o cumprimento dos
deveres de justiça no plano interpessoal e social, em vista do bem comum, a
institucionalização de corpos profissionais e interprofissionais.
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As Radiomensagens natalicias de Pio XII, juntamente com outros importantes
pronunciamentos em matéria social, aprofundam a reflexão magisterial sobre uma
nova ordem social, governado pela moral e pelo direito e fundado na justiça e
na paz. Durante o seu pontificado, Pio XII atravessou os anos terríveis da
Segunda Guerra Mundial e os tempos difíceis da reconstrução. Ele não publicou
encíclicas sociais, mas manifestou constantemente, em numerosos contextos, a
sua preocupação com a ordem internacional subvertida: «Nos anos da guerra e do
após-guerra, o Magistério social de Pio XII representou para muitos povos de
todos os continentes e para milhões de crentes e não crentes a voz da
consciência universal (...). Com a sua autoridade moral e o seu prestígio, Pio
XII levou a luz da sabedoria cristã a inumeráveis homens de todas as categorias
e nível social».
Uma
das características fundamentais dos pronunciamentos de Pio XII está na
importância dada à conexão entre moral e direito. O Papa insiste sobre a noção
de direito natural, como alma de um ordenamento social concretamente operante
quer no plano nacional quer no plano internacional. Um outro aspecto importante
do ensinamento de Pio XII está na atenção dada às categorias profissionais e
empresariais, chamadas a concorrer em plena consciência para a consecução do
bem comum: «Pela sua sensibilidade e inteligência em detectar os “sinais dos
tempos”, Pio XII pode considerar-se o precursor imediato do Concílio Vaticano
II e do ensinamento social dos Papas que lhe sucederam».
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Os anos Sessenta abrem horizontes promissores: o reinício após as devastações
da guerra, a descolonização da África, os primeiros tímidos sinais de um
degelo nas relações entre os dois blocos, americano e soviético. Neste clima,
o beato João XXIII lê em profundidade os «sinais dos tempos». A questão
social se está universalizando e abarca todos os países: ao lado da questão
operária e da revolução industrial, se delineiam os problemas da agricultura,
das áreas em via de desenvolvimento, do incremento demográfico e os referentes
à necessidade de cooperação económica mundial. As desigualdades, antes
advertidas no interior das nações, aparecem no âmbito internacional e fazem
emergir cada vez mais a situação dramática em que se encontra o Terceiro Mundo.
João
XXIII, na Encíclica «Mater et Magistra» (1961), «pretende actualizar os
documentos já conhecidos e avançar no sentido de comprometer toda a comunidade
cristã». As palavras-chave da encíclica são comunidade e
socialização: a Igreja é chamada, na verdade, na justiça e no amor, a
colaborar com todos os homens para construir uma autêntica comunhão. Por tal
via o crescimento económico não se limitará a satisfazer as necessidades dos
homens, mas poderá promover também a sua dignidade.
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