AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS
OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO VIII
ACOMPANHAR, DISCERNIR E INTEGRAR A FRAGILIDADE.
O discernimento das situações chamadas «irregulares».
Quanto ao modo de tratar
as várias situações chamadas «irregulares», os Padres sinodais chegaram a um
consenso geral que eu sustento: «Na abordagem pastoral das pessoas que
contraíram matrimónio civil, que são divorciadas novamente casadas, ou que
simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes a pedagogia divina da
graça nas suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do desígnio que Deus
tem para elas», sempre possível com a força do Espírito Santo.
Os divorciados que vivem
numa nova união, por exemplo, podem encontrar-se em situações muito diferentes,
que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas,
sem deixar espaço para um adequado discernimento pessoal e pastoral. Uma coisa
é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade
comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da
irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem
sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas. A Igreja reconhece a
existência de situações em que «o homem e a mulher, por motivos sérios – como,
por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar».[i]
Nestas situações, muitos,
conhecendo e aceitando a possibilidade de conviver fizeram grandes esforços
para salvar o primeiro matrimónio e sofreram um abandono injusto, ou o caso
daqueles que «contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e,
às vezes, estão subjectivamente certos em consciência de que o precedente
matrimónio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido».
Coisa diferente, porém, é
uma nova união que vem dum divórcio recente, com todas as consequências de
sofrimento e confusão que afectam os filhos e famílias inteiras, ou a situação
de alguém que faltou repetidamente aos seus compromissos familiares. Deve ficar
claro que este não é o ideal que o Evangelho propõe para o matrimónio e a
família. Os Padres sinodais afirmaram que o discernimento dos pastores sempre
se deve fazer «distinguindo adequadamente», com um olhar que discirna bem as
situações.
Sabemos que não existem
«receitas simples. Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que
quiseram afirmar que «os baptizados que se divorciaram e voltaram a casar
civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes
formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo.[ii]
A lógica da integração é a
chave do seu acompanhamento pastoral, para saberem que não só pertencem ao
Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem também ter disso mesmo uma experiência
feliz e fecunda. São baptizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama
neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se
em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais
das diferentes formas de exclusão actualmente praticadas em âmbito litúrgico,
pastoral, educativo e institucional possam ser superadas. Não só não devem
sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja,
sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afectuosamente deles e
encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. Esta integração é necessária
também para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos, que devem ser
considerados o elemento mais importante»
Se se tiver em conta a
variedade inumerável de situações concretas, como as que mencionamos antes, é
compreensível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova
normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas
um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos
casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que «o grau de
responsabilidade não é igual em todos os casos»[iii], as consequências ou efeitos duma norma não devem
necessariamente ser sempre os mesmos.
Os sacerdotes têm o dever
de «acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a
doutrina da Igreja e as orientações do bispo. Neste processo, será útil fazer
um exame de consciência, através de momentos de reflexão e arrependimento. Os
divorciados novamente casados deveriam questionar-se como se comportaram com os
seus filhos, quando a união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de
reconciliação; como é a situação do cônjuge abandonado; que consequências têm a
nova relação sobre o resto da família e a comunidade dos fiéis; que exemplo
oferece ela aos jovens que se devem preparar para o matrimónio. Uma reflexão
sincera pode reforçar a confiança na misericórdia de Deus que não é negada a
ninguém».
Trata-se dum itinerário de
acompanhamento e discernimento que «orienta estes fiéis na tomada de
consciência da sua situação diante de Deus. O diálogo com o sacerdote, no foro
interno, concorre para a formação dum juízo correcto sobre aquilo que dificulta
a possibilidade duma participação mais plena na vida da Igreja e sobre os
passos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na própria lei não há
gradualidade[iv], este discernimento não poderá jamais prescindir das
exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que
isto aconteça, devem garantir-se as necessárias condições de humildade,
privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da vontade de
Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma[v]».
Estas atitudes são
fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como a ideia
de que algum sacerdote pode conceder rapidamente «excepções», ou de que há
pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores. Quando
uma pessoa responsável e discreta, que não pretende colocar os seus desejos
acima do bem comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe reconhecer a
seriedade da questão que tem entre mãos, evita-se o risco de que um certo discernimento
leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla.
(cont)
(revisão da versão
portuguesa por AMA)
[i] Relatio Synodi 2014,
25. 329 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 84: AAS 74 (1982), 186.
[ii] « como irmão e irmã
» que a Igreja lhes oferece, assinalam que, se faltam algumas expressões de
intimidade, «não raro se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da
prole » (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo
Gaudium et spes, 51). 330 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de
Novembro de 1981), 84: AAS 74 (1982), 186. 331 Relatio Synodi 2014, 26. 332 Cf.
ibid., 45. 333 Bento XVI, Discurso no VII Encontro Mundial das Famílias, em
Milão (2 de Junho de 2012), resposta 5: Insegnamenti, 8/1 (2012), 691;
L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 09/VI/2012), 11.
[v] Ibid., 51. 336 E
também não devem ser sempre os mesmos na aplicação da disciplina sacramental,
dado que o discernimento pode reconhecer que, numa situação particular, não há
culpa grave. Neste caso, aplica-se o que afirmei noutro documento: cf. Exort.
ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 44.47: AAS 105 (2013), 1038-1040.
337 Relatio Finalis 2015, 85.
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