AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO VI
ALGUMAS PERSPECTIVAS PASTORAIS.
O desafio das crises.
Há crises comuns que
costumam verificar-se em todos os matrimónios, como a crise ao início quando é
preciso aprender a conciliar as diferenças e a desligar-se dos pais; ou a crise
da chegada do filho, com os seus novos desafios emotivos; a crise de educar uma
criança, que altera os hábitos do casal; a crise da adolescência do filho, que
exige muitas energias, desestabiliza os pais e às vezes contrapõem-nos entre
si; a crise do «ninho vazio», que obriga o casal a fixar de novo o olhar um no
outro; a crise causada pela velhice dos pais dos cônjuges, que requer mais
presença, solicitude e decisões difíceis. São situações exigentes, que provocam
temores, sentimentos de culpa, depressões ou cansaços que podem afectar
gravemente a união.
A estas crises, vêm
juntar-se as crises pessoais com incidência no casal, relacionadas com
dificuldades económicas, laborais, afectivas, sociais, espirituais. E
acrescentam-se circunstâncias inesperadas, que podem alterar a vida familiar e
exigir um caminho de perdão e reconciliação. No próprio momento em que procura
dar o passo do perdão, cada um deve questionar-se, com serena humildade, se não
criou as condições para expor o outro a cometer certos erros. Algumas famílias
sucumbem, quando os cônjuges se culpam mutuamente, mas «a experiência mostra
que, com uma ajuda adequada e com a acção de reconciliação da graça, uma grande
percentagem de crises matrimoniais é superada de forma satisfatória. Saber
perdoar e sentir-se perdoado é uma experiência fundamental na vida familiar».
«A fadigosa arte da
reconciliação, que requer o apoio da graça, precisa da generosa colaboração de
parentes e amigos, e, eventualmente, até duma ajuda externa e profissional».
Tornou-se frequente que,
quando um cônjuge sente que não recebe o que deseja, ou não se realiza o que
sonhava, isso lhe pareça ser suficiente para pôr termo ao matrimónio. Mas,
assim, não haverá matrimónio que dure. Às vezes, para decidir que tudo acabou,
basta uma desilusão, a ausência num momento em que se precisava do outro, um
orgulho ferido ou um temor indefinido.
Há situações próprias da
inevitável fragilidade humana, a que se atribui um peso emotivo demasiado
grande. Por exemplo, a sensação de não ser completamente correspondido, os
ciúmes, as diferenças que podem surgir entre os dois, a atracção suscitada por
outras pessoas, os novos interesses que tendem a apoderar-se do coração, as
mudanças físicas do cônjuge e tantas outras coisas que, mais do que atentados
contra o amor, são oportunidades que convidam a recriá-lo uma vez mais.
Nestas circunstâncias,
alguns têm a maturidade necessária para voltar a escolher o outro como
companheiro de estrada, para além dos limites da relação, e aceitam com
realismo que não se possam satisfazer todos os sonhos acalentados.[i]
Evitam considerar-se os
únicos mártires, apreciam as pequenas ou limitadas possibilidades que lhes
oferece a vida em família e apostam em fortalecer o vínculo numa construção que
exigirá tempo e esforço. No fundo, reconhecem que cada crise é como um novo
«sim» que torna possível o amor renascer reforçado, transfigurado, amadurecido,
iluminado.
A partir de uma crise,
tem-se a coragem de buscar as raízes profundas do que está a suceder, de voltar
a negociar os acordos fundamentais, de encontrar um novo equilíbrio e de
percorrer juntos uma nova etapa. Com esta atitude de constante abertura, podem
enfrentar-se muitas situações difíceis. Em todo o caso, reconhecendo que a
reconciliação é possível, hoje descobrimos que «se revela particularmente
urgente um ministério dedicado àqueles cuja relação matrimonial se rompeu».
Velhas feridas.
É compreensível que, nas
famílias, haja muitas dificuldades, quando um dos seus membros não amadureceu a
sua maneira de relacionar-se, porque não curou feridas dalguma etapa da sua
vida. A própria infância e a própria adolescência mal vividas, são terreno
fértil para crises pessoais que acabam por afectar o matrimónio.
Se todos fossem pessoas
que amadureceram normalmente, as crises seriam menos frequentes e menos
dolorosas. A verdade, porém, é que às vezes as pessoas precisam de realizar aos
quarenta anos um amadurecimento atrasado que deveria ter sido alcançado no fim
da adolescência.
Às vezes ama-se com um
amor egocêntrico próprio da criança, fixado numa etapa onde a realidade é
distorcida e se vive o capricho de que tudo deva girar à volta do próprio eu. É
um amor insaciável, que grita e chora quando não obtém aquilo que deseja.
Outras vezes ama-se com um
amor fixado na fase da adolescência, caracterizado pelo confronto, a crítica
ácida, o hábito de culpar os outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde
os outros devem preencher os nossos vazios ou apoiar os nossos caprichos.
Muitos terminam a sua
infância sem nunca se terem sentido amados incondicionalmente, e isto
compromete a sua capacidade de confiar e entregar-se. Uma relação mal vivida
com os seus pais e irmãos, que nunca foi curada, reaparece e danifica a vida
conjugal. Então é preciso fazer um percurso de libertação, que nunca se
enfrentou.
Quando a relação entre os
cônjuges não funciona bem, antes de tomar decisões importantes, convém
assegurar-se de que cada um tenha feito este caminho de cura da própria
história.
Isto exige que se reconheça
a necessidade de ser curado, que se peça com insistência a graça de perdoar e
perdoar-se, que se aceite ajuda, se procurem motivações positivas e se tente sempre
de novo.
Cada um deve ser muito
sincero consigo mesmo, para reconhecer que o seu modo de viver o amor tem estas
imaturidades.
Por mais evidente que
possa parecer que toda a culpa seja do outro, nunca é possível superar uma
crise esperando que apenas o outro mude.
É preciso também
questionar-se a si mesmo sobre as coisas que poderia pessoalmente amadurecer ou
curar para favorecer a superação do conflito.
Acompanhar depois das rupturas e dos divórcios.
Nalguns casos, a
consideração da própria dignidade e do bem dos filhos exige pôr um limite firme
às pretensões excessivas do outro, a uma grande injustiça, à violência ou a uma
falta de respeito que se tornou crónica.
É preciso reconhecer que
«há casos em que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até
moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os
filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela prepotência e a
violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença.
Mas «deve ser considerado
um remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs, todas as tentativas
razoáveis».[ii]
Os Padres disseram que «é
indispensável um discernimento particular para acompanhar pastoralmente os
separados, os divorciados, os abandonados. Tem-se de acolher e valorizar sobretudo
a angústia daqueles que sofreram injustamente a separação, o divórcio ou o
abandono, ou então foram obrigados, pelos maus-tratos do cônjuge, a romper a
convivência.
Não é fácil o perdão pela
injustiça sofrida, mas constitui um caminho que a graça torna possível.
Daí a necessidade duma pastoral
da reconciliação e da mediação, inclusive através de centros de escuta
especializados que se devem estabelecer nas dioceses».
Ao mesmo tempo, « as pessoas
divorciadas que não voltaram a casar (que são muitas vezes testemunhas da fidelidade
matrimonial) devem ser encorajadas a encontrar na Eucaristia o alimento que as
sustente no seu estado. A comunidade local e os pastores devem acompanhar estas
pessoas com solicitude, sobretudo quando há filhos ou é grave a sua situação de
pobreza».
(cont)
(revisão da versão
portuguesa por AMA)
[ii] Francisco, Catequese
(24 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
25/VI/2015), 20. 258 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de
Novembro de 1981), 83: AAS 74 (1982), 184.
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