05/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 

CAPÍTULO I
À LUZ DA PALAVRA

Os teus filhos como rebentos de oliveira

14. Retomemos o canto do Salmista. Lá, dentro da casa onde o homem e a sua esposa estão sentados à mesa, aparecem os filhos que os 14 acompanham «como rebentos de oliveira»[i], isto é, cheios de energia e vitalidade. Se os pais são como que os alicerces da casa, os filhos constituem as «pedras vivas» da família [ii]. É significativo que, no Antigo Testamento, a palavra que aparece mais vezes depois da designação divina (YHWH, o «Senhor») é «filho» (ben), um termo que remete para o verbo hebraico que significa «construir» (banah). Por isso, noutro Salmo, exalta-se o dom dos filhos com imagens que aludem quer à edificação duma casa, quer à vida social e comercial que se desenrolava às portas da cidade: «Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os construtores. (...) Olhai: os filhos são uma bênção do Senhor; o fruto das entranhas, uma verdadeira dádiva. Como flechas nas mãos de um guerreiro, assim são os filhos nascidos na juventude. Feliz o homem que deles encheu a sua aljava! Não será envergonhado pelos seus inimigos, quando com eles discutir às portas da cidade» [iii]. É verdade que estas imagens reflectem a cultura duma sociedade antiga, mas a presença dos filhos é, em todo o caso, um sinal de plenitude da família na continuidade da mesma história de salvação, de geração em geração.

15. Sob esta luz, podemos ver outra dimensão da família. Sabemos que, no Novo Testamento, se fala da «igreja que se reúne em casa» [iv]. O espaço vital duma família podia transformar-se em igreja doméstica, em local da Eu­caristia, da presença de Cristo sentado à mesma mesa. Inesquecível é a cena descrita no Apocalipse: «Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo» [v]. Esboça-se assim uma casa que abriga no seu interior a presença de Deus, a oração comum e, por conseguinte, a bênção do Senhor. Isto mesmo se afirma no Salmo 128, que nos serviu de base: «Assim vai ser abençoado o homem que obedece ao Senhor. O Senhor te abençoe do monte Sião!»[vi].

16. A Bíblia considera a família também como o local da catequese dos filhos. Vê-se isto claramente na descrição da celebração pascal[vii] – mais tarde explicitado na haggadah judaica –, concretamente no diálogo que acompanha o rito da ceia pascal. Eis como um Salmo exalta o anúncio familiar da fé: «O que ouvimos e aprendemos e os nossos antepassados nos transmitiram, não o ocultaremos aos seus descendentes; contaremos tudo às gerações vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as maravilhas que Ele fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacob, instituiu uma lei em Israel. E ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos, para que as gerações futuras a conhecessem e os filhos que haviam de nascer a contassem aos seus próprios filhos»[viii]. Por isso, a família é o lugar onde os pais se tornam os primeiros mestres da fé para seus filhos. É uma tarefa «artesanal», pessoa a pessoa: «Se amanhã o teu filho te perguntar (...), dir-lhe-ás...» [ix]. Assim, entoarão o seu canto ao Senhor as diferentes gerações, «os jovens e as donzelas, os velhos e as crianças»[x].

17. Os pais têm o dever de cumprir, com seriedade, a sua missão educativa, como ensinam frequentemente os sábios da Bíblia[xi]. Os filhos são chamados a receber e praticar o mandamento «honra o teu pai e a tua mãe»[xii], querendo o verbo «honrar» indicar o cumprimento das obrigações familiares e sociais em toda a sua plenitude, sem os transcurar com desculpas religiosas[xiii]. Com efeito, «o que honra o pai alcança o perdão dos pecados, e quem honra a sua mãe é semelhante ao que acumula tesouros»[xiv].

18. O Evangelho lembra-nos também que os filhos não são uma propriedade da família, mas espera-os o seu caminho pessoal de vida. Se é verdade que Jesus Se apresenta como modelo de obediência a seus pais terre­nos, submetendo-Se a eles[xv], também é certo que Ele faz ver que a escolha de vida do filho e a sua própria vocação cristã podem exigir uma separação para realizar a entrega de si mesmo ao Reino de Deus[xvi]. Mais ainda! Ele próprio, aos doze anos, responde a Maria e a José que tem uma missão mais alta a realizar para além da sua família histórica[xvii]. Por isso, exalta a necessidade de outros laços mais profundos, mesmo dentro das relações familiares: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática»[xviii]. Por outro lado, Jesus presta tal atenção às crianças – consideradas, na sociedade do Médio Oriente antigo, como sujeitos sem particulares direitos e inclusivamente como parte da propriedade familiar –, que chega ao ponto de as propor aos adultos como mestres, devido à sua confiança simples e espontânea nos outros. «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu»[xix].

Um rasto de sofrimento e sangue

19. O idílio, que o Salmo 128 apresenta, não nega uma amarga realidade que marca toda a Sagrada Escritura: é a presença do sofrimento, do mal, da violência, que dilaceram a vida da família e a sua comunhão íntima de vida e de amor. Não é de estranhar que o discurso de Cristo sobre o matrimónio[xx] apareça inserido numa disputa a respeito do divórcio. A Palavra de Deus é testemunha constante desta dimensão obscura que assoma já nos primórdios, quando, com o pecado, a relação de amor e pureza entre o homem e a mulher se transforma num domínio: «Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará»[xxi].

20. É um rasto de sofrimento e sangue que atravessa muitas páginas da Bíblia, a começar pela violência fratricida de Caim contra Abel e dos vários litígios entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob, passando pelas tragédias que cobrem de sangue a família de David, até às numerosas dificuldades familiares que regista a história de Tobias ou a confissão amarga de Job abandonado: Deus «afastou de mim os meus irmãos, e os meus amigos retiraram-se como estranhos. (...) A minha mulher sente repugnância do meu hálito e tornei-me fétido para os meus próprios filhos»[xxii].

21. O próprio Jesus nasce numa família modesta, que à pressa tem de fugir para uma terra estrangeira. Entra na casa de Pedro, onde a sua sogra está doente[xxiii], deixa-Se envolver no drama da morte na casa de Jairo ou no lar de Lázaro[xxiv], ouve o pranto desesperado da viúva de Naim pelo seu filho morto[xxv]; atende o grito do pai do epiléptico numa pequena povoação rural[xxvi]. Encontra-Se com publicanos, como Mateus ou Zaqueu, nas suas próprias casas[xxvii], e também com pecadoras, como a mulher que invade a casa do fariseu[xxviii]. Conhece as ansiedades e as tensões das famílias, inserindo-as nas suas parábolas: desde filhos que deixam a própria casa para tentar alguma aventura[xxix] até filhos difíceis com comporta­mentos inexplicáveis[xxx] ou vítimas da violência[xxxi]. Interessa-Se ainda pela situação embaraçosa que se vive numas bodas pela falta de vinho[xxxii] ou pela recusa dos convidados a participar nelas[xxxiii], e conhece também o pesadelo que representa a perda duma moeda numa família pobre.[xxxiv]

22. Nesta breve resenha, podemos comprovar que a Palavra de Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstractas, mas como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus «enxugar todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor» [xxxv].

O fruto do teu próprio trabalho

23. No início do Salmo 128, o pai é apresentado como um trabalhador que pode, com a obra das suas mãos, manter o bem-estar físico e a serenidade da sua família: «Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás contente» [xxxvi]. O facto de o trabalho ser uma parte fundamental da dignidade da vida humana deduz-se das primeiras páginas da Bíblia, quando se afirma que Deus «colocou (o homem) no Jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar»[xxxvii]. Temos aqui a imagem do trabalhador que transforma a matéria e aproveita as energias da criação, fazendo nascer o «pão de tanta fadiga»[xxxviii], para além de se cultivar a si mesmo.

24. O trabalho torna possível simultaneamente o desenvolvimento da sociedade, o sustento da família e também a sua estabilidade e fecundidade: «Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida e chegues a ver os filhos dos teus filhos»[xxxix]. No livro dos Provérbios, realça-se também a tarefa da mãe de família, cujo trabalho aparece descrito nas suas múltiplas mansões diárias, merecendo o elogio do marido e dos filhos[xl]. O próprio apóstolo Paulo sentia-se orgulhoso por ter vivido sem ser um fardo para os outros, porque trabalhou com as suas mãos, garantindo-se deste modo o sustento[xli]. Estava tão convencido da necessidade do trabalho, que estabeleceu esta férrea norma para as suas comunidades: «Se alguém não quer trabalhar, também não coma» [xlii].

25. Dito isto, compreende-se que o de­semprego e a precariedade laboral gerem sofrimento, como atesta o livro de Rute e como lembra Jesus na parábola dos trabalhadores sentados, em ócio forçado, na praça da localidade[xliii], ou como pôde verificar pessoalmente vendo-Se muitas vezes rodeado de necessitados e famintos. Isto mesmo vive tragicamente a sociedade actual em muitos países, e esta falta de emprego afecta, de várias maneiras, a serenidade das famílias.

26. Também não podemos esquecer a degeneração que o pecado introduz na sociedade, quando o homem se comporta como um tirano com a natureza, devastando-a, utilizando-a de forma egoísta e até brutal. Como consequência, temos, simultaneamente, a desertificação do solo[xliv] e os desequilíbrios económicos e sociais, contra os quais se levanta, abertamente, a voz dos profetas, desde Elias[xlv] até chegar às palavras que o próprio Jesus pronuncia contra a injustiça[xlvi].

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] Sl 128/127, 3
[ii] cf. 1 Ped 2, 5
[iii] Sl 127/126, 1.3-5
[iv] cf. 1 Cor 16, 19; Rm 16, 5; Col 4, 15; Flm 2
[v] 3, 20
[vi] vv. 4-5
[vii] cf. Ex 12, 26-27; Dt 6, 20-25
[viii] Sl 78/77, 3-6
[ix] Ex 13, 14
[x] Sl 148, 12
[xi] cf. Pr 3, 11- 12; 6, 20-22; 13, 1; 22, 15; 23, 13-14; 29, 17
[xii] Ex 20, 12
[xiii] cf. Mc 7, 11-13
[xiv] Sir 3, 3-4
[xv] cf. Lc 2, 51
[xvi] cf. Mt 10, 34-37; Lc 9, 59-62
[xvii] cf. Lc 2, 48-50
[xviii] Lc 8, 21
[xix] Mt 18, 3-4
[xx] cf. Mt 19, 3-9
[xxi] Gn 3, 16
[xxii] Jb 19, 13.17
[xxiii] cf. Mc 1, 29-31
[xxiv] cf. Mc 5, 22-24.35-43; Jo 11, 1-44
[xxv] cf. Lc 7, 11-15
[xxvi] cf. Mc 9, 17-27
[xxvii] cf. Mt 9, 9-13; Lc 19, 1-10
[xxviii] cf. Mt 9, 9-13; Lc 19, 1-10
[xxix] cf. Lc 15, 11-32
[xxx] cf. Mt 21, 28-31
[xxxi] cf. Mc 12, 1-9
[xxxii] cf. Jo 2, 1-10
[xxxiii] cf. Mt 22, 1-10
[xxxiv] cf. Lc 15, 8-10
[xxxv] Ap 21, 4
[xxxvi] v. 2
[xxxvii] Gn 2, 15
[xxxviii] Sl 127/126, 2
[xxxix] Sl 128/127, 5-6
[xl] cf. 31, 10-31
[xli] cf. Act 18, 3; 1 Cor 4, 12; 9, 12
[xlii] 2 Ts 3,10; cf. 1 Ts 4, 11
[xliii] cf. Mt 20, 1-16
[xliv] cf. Gn 3, 17-19
[xlv] cf. 1 Re 21
[xlvi] cf. Lc 12, 13-21; 16,1-31

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