AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO V
O AMOR QUE SE TORNA FECUNDO
Fecundidade alargada. 2
Mas, às vezes, acontece
que algumas famílias cristãs, pela linguagem que usam, a maneira de dizer as
coisas, o estilo do seu tratamento, a repetição constante de dois ou três
assuntos, são vistas como distantes, separadas da sociedade, e até os próprios
parentes se sentem desprezados ou julgados por elas.
Um casal de esposos, que
experimenta a força do amor, sabe que este amor é chamado a sarar as feridas
dos abandonados, estabelecer a cultura do encontro, lutar pela justiça.
Deus confiou à família o
projecto de tornar «doméstico» o mundo,
de modo que todos cheguem a sentir cada ser humano como um irmão: «Um olhar atento à vida quotidiana dos homens
e das mulheres de hoje demonstra imediatamente a necessidade que há, em toda a
parte, duma vigorosa injecção de espírito familiar. (...) Não só a organização
da vida comum encalha cada vez mais numa burocracia totalmente alheia aos
vínculos humanos fundamentais, mas até o costume social e político mostra
frequentemente sinais de degradação».
Pelo contrário, as
famílias magnânimas e solidárias abrem espaço aos pobres, são capazes de tecer
uma amizade com aqueles que estão a viver pior do que elas. Se realmente têm a
peito o Evangelho, não podem esquecer o que diz Jesus: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim
mesmo o fizestes».[i]
Em última análise, vivem o
que nos é pedido, de forma tão eloquente, neste texto: «Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem
os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos; não vão eles
também convidar-te, por sua vez, e assim retribuir-te. Quando deres um banquete,
convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E serás feliz».[ii], [iii]
Serás feliz! Aqui está o
segredo duma família feliz.
Com o testemunho e também
com a palavra, as famílias falam de Jesus aos outros, transmitem a fé,
despertam o desejo de Deus e mostram a beleza do Evangelho e do estilo de vida
que nos propõe. Assim os esposos cristãos pintam o cinzento do espaço público,
colorindo-o de fraternidade, sensibilidade social, defesa das pessoas frágeis,
fé luminosa, esperança activa. A sua fecundidade alarga-se, traduzindo-se em
mil e uma maneiras de tornar o amor de Deus presente na sociedade.
Distinguir o Corpo.
Nesta linha, convém tomar
muito a sé- rio um texto bíblico que habitualmente é interpretado fora do seu
contexto ou duma maneira muito geral, pelo que é possível negligenciar o seu
sentido mais imediato e directo, que é marcadamente social.
Trata-se da primeira Carta
aos Coríntios,[iv] onde São Paulo enfrenta uma situação vergonhosa da
comunidade. Nela, algumas pessoas facultosas tendiam a discriminar os pobres, e
isto verificava-se mesmo na ágape que acompanhava a celebração da Eucaristia.
Enquanto os ricos se deleitavam com seus manjares, os pobres olhavam e passavam
fome: «Enquanto um passa fome, outro fica
embriagado. Porventura não tendes casas para comer e beber? Ou desprezais a
Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm?».[v]
A Eucaristia exige a
integração no único corpo eclesial. Quem se abeira do Corpo e do Sangue de
Cristo não pode ao mesmo tempo ofender aquele mesmo Corpo, fazendo divisões e
discriminações escandalosas entre os seus membros. Na realidade, trata-se de «distinguir» o Corpo do Senhor, de O
reconhecer com fé e caridade, quer nos sinais sacramentais quer na comunidade;
caso contrário, come-se e bebe-se a própria condenação.[vi]
Este texto bíblico é um
sério aviso para as famílias que se fecham na própria comodidade e se isolam e,
de modo especial, para as famílias que ficam indiferentes aos sofrimentos das
famílias pobres e mais necessitadas.
Assim, a celebração
eucarística torna-se um apelo constante a cada um para que «se examine a si mesmo»,[vii] a fim de abrir as portas da própria família a uma
maior comunhão com os descartados da sociedade e depois, sim, receber o
sacramento do amor eucarístico que faz de nós um só corpo. Não se deve esquecer
que «a “mística” do sacramento tem um
carácter social».
Quando os comungantes se
mostram relutantes em deixar-se impelir a um compromisso a favor dos pobres e
atribulados ou consentem diferentes formas de divisão, desprezo e injustiça, recebem
indignamente a Eucaristia. Ao contrário, as famílias, que se alimentam da
Eucaristia com a disposição adequada, reforçam o seu desejo de fraternidade, o
seu sentido social e o seu compromisso para com os necessitados.[viii]
A vida na família em sentido amplo.
O núcleo familiar restrito
não deveria isolar-se da família alargada, onde estão os pais, os tios, os
primos e até os vizinhos. Nesta família ampla, pode haver pessoas necessitadas
de ajuda, ou pelo menos de companhia e gestos de carinho, ou pode haver grandes
sofrimentos que precisam de conforto.
Às vezes o individualismo
destes tempos leva a fechar-se na segurança dum pequeno ninho e a sentir os
outros como um incómodo. Todavia este isolamento não proporciona mais paz e felicidade,
antes fecha o coração da família e priva-a do horizonte amplo da existência.
Ser filho.
Em primeiro lugar, falemos
dos pais próprios.
Não faz bem a ninguém
perder a consciência de ser filho. Em cada pessoa, «mesmo quando se torna adulta ou idosa, quando passa também a ser
progenitora ou desempenha funções de responsabilidade, por baixo de tudo isso
permanece a identidade de filho.[x] Todos somos
filhos. E isto recorda-nos sempre que a vida não no-la demos sozinhos, mas
recebemo-la. O grande dom da vida é o primeiro presente que recebemos».
Este
mandamento vem logo após aqueles que dizem respeito ao próprio Deus. Com
efeito, contém algo de sagrado, algo de divino, algo que está na raiz de todos
os outros tipos de respeito entre os homens. E, na formulação bíblica do quarto
mandamento, acrescenta-se: “para que se prolonguem os teus dias sobre a terra
que o Senhor, teu Deus, te dá”. O vínculo virtuoso entre as gerações é garantia
de futuro e de uma história verdadeiramente humana. Uma sociedade de filhos que
não honram os pais é uma sociedade sem honra (...). É uma sociedade destinada a
encher-se de jovens áridos e ávidos».
Às vezes, isto não é cumprido,
nunca se chegando a assumir o matrimónio, porque falta esta renúncia e esta
dedicação. Os pais não devem ser abandonados nem transcurados, mas, para
unir-se em matrimónio, é preciso deixá-los, de modo que o novo lar seja a morada,
a protecção, a plataforma e o projecto, e seja possível tornar-se verdadeiramente
«uma só carne»[xiii].[xiv]
Sucede, em alguns casais,
ocultar ao próprio cônjuge muitas coisas, que entretanto se dizem aos pais,
chegando ao ponto de se importar mais com as opiniões destes do que com os sentimentos
e as opiniões do cônjuge. Não é fácil manter esta situação por muito tempo, e
só provisoriamente poderia ter lugar, isto é, enquanto se criam as condições
para crescer na confiança e no diálogo. O matrimónio desafia a encontrar uma
nova maneira de ser filho.
(cont)
(revisão da versão
portuguesa por AMA)
[iii] Cf. Francisco,
Catequese (16 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 17/IX/2015), 20. 206 Idem, Catequese (7 de Outubro de 2015):
L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 24.
[xiv] Francisco, Catequese
(18 de Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
19/III/2015), 20. 210 Idem, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.