21/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 

CAPÍTULO IV


O AMOR NO MATRIMÓNIO

Violência e manipulação.

No contexto desta visão positiva da sexualidade, é oportuno apresentar o tema na sua integridade e com um são realismo. Pois não podemos ignorar que muitas vezes a sexualidade se despersonaliza e enche de patologias, de modo que «se torna cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos».
Neste tempo, também a sexualidade corre grande risco de se ver dominada pelo espírito venenoso do «usa e joga fora». Com frequência, o corpo do outro é manipulado como uma coisa que se conserva enquanto proporciona satisfação e se despreza quando perde atractivo.[i]
Podem-se porventura ignorar ou dissimular as formas constantes de domínio, prepotência, abuso, perversão e violência sexual que resultam duma distorção do significado da sexualidade e sepultam a dignidade dos outros e o apelo ao amor sob uma obscura procura de si mesmo? Nunca é demais lembrar que, mesmo no matrimónio, a sexualidade pode tornar-se fonte de sofrimento e manipulação. Por isso, devemos reafirmar, claramente, que «um acto conjugal imposto ao próprio cônjuge, sem consideração pelas suas condições e pelos seus desejos legítimos, não é um verdadeiro acto de amor e nega, por isso mesmo, uma exigência de recta ordem moral, nas relações entre os esposos».
Os actos próprios da união sexual dos cônjuges correspondem à natureza da sexualidade querida por Deus, se forem vividos «de modo autenticamente humano».
Por isso, São Paulo exortava: «Que ninguém, nesta matéria, defraude e se aproveite do seu irmão».[ii]
E não obstante ele escrevesse numa época em que dominava uma cultura patriarcal, na qual a mulher era considerada um ser completamente subordinado ao homem, toda­via ensinou que a sexualidade deve ser uma questão a discutir entre os cônjuges: levantou a possibilidade de adiar as relações sexuais por algum tempo,[iii] mas «de mútuo acordo».[iv] 155.
São João Paulo II fez uma advertência muito subtil, quando disse que o homem e a mulher são «ameaçados pela insaciabilidade». Por outras palavras, são chamados a uma união cada vez mais intensa, mas correm o risco de pretender apagar as diferenças e a distância inevitável que existe entre os dois. Com efeito, cada um possui uma dignidade própria e irrepetível. Quando o bem precioso da pertença recíproca se transforma em domínio, «muda essencialmente a estrutura de comunhão na relação interpessoal». Na lógica do domínio, o dominador acaba também negando a sua própria dignidade e, em última análise, deixa «de identificar-se subjectivamente com o próprio corpo», porque lhe tira todo o significado. Vive o sexo como evasão de si mesmo e como renúncia à beleza da união.
É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de submissão sexual.[v] Por isso, convém evitar toda a interpretação inadequada do texto da Carta aos Efésios, onde se pede que «as mulheres [sejam submissas] aos seus maridos».[vi]
São Paulo exprime-se em categorias culturais próprias daquela época; nós não devemos assumir esta roupagem cultural, mas a mensagem revelada que subjaz ao conjunto da perícope.
Retomemos a sábia explicação de São João Paulo II: «O amor exclui todo o género de submissão, pelo qual a mulher se tornasse serva ou escrava do marido (...). A comunidade ou unidade, que devem constituir por causa do matrimónio, realiza-se através de uma recíproca doação, que é também submissão mútua».
Por isso, se diz que «devem também os maridos amar as suas mulheres, como o seu próprio corpo».[vii]
Na realidade, o texto bíblico convida a superar o cómodo individualismo para viver disponíveis aos outros: «Submetei-vos uns aos outros».[viii]
Entre os cônjuges, esta recíproca «submissão» adquire um sig­nificado especial, devendo entender-se como uma pertença mútua livremente escolhida, com um conjunto de características de fidelidade, respeito e solicitude. A sexualidade está ao serviço desta amizade conjugal de modo inseparável, porque tende a procurar que o outro viva em plenitude. Entretanto a rejeição das distorções da sexualidade e do erotismo nunca deveria levar-nos ao seu desprezo nem ao seu descuido.[ix]
O ideal do matrimónio não pode configurar-se apenas como uma doação generosa e sacrificada, onde cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal e se preocupa apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfação alguma. Lembremo-nos de que um amor verdadeiro também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar como vulnerável e necessitado, não renuncia a receber, com gratidão sincera e feliz, as expressões corporais do amor na carícia, no abraço, no beijo e na união sexual.
Bento XVI era claro a este respeito: «Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade». Por esta razão, «o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom». Em todo o caso, isto supõe ter presente que o equilíbrio humano é frágil, sempre permanece algo que resiste a ser humanizado e que, a qualquer momento, pode fugir-nos de mão novamente, recuperando as suas tendências mais primitivas e egoístas.

Matrimónio e virgindade.

«Muitas pessoas, que vivem sem se casar, não só se dedicam à sua família de origem, mas muitas vezes realizam grandes serviços no seu círculo de amigos, na comunidade eclesial e na vida profissional (...).[x] Muitos colocam os seus talentos também ao serviço da comunidade cristã sob a forma de assistência caritativa e voluntariado. Temos ainda aqueles que não se casam, porque consagram a vida por amor de Cristo e dos irmãos. Com a sua dedicação, é extraordinariamente enriquecida a família, na Igreja e na sociedade».

A virgindade é uma forma de amor.

Como sinal, recorda-nos a solicitude pelo Reino, a urgência de entregar-se sem reservas ao serviço da evangelização[xi] e é um reflexo da plenitude do Céu, onde «nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos».[xii]
São Paulo reco­mendava a virgindade, porque esperava para breve o regresso de Jesus Cristo e queria que todos se concentrassem apenas na evangelização: «O tempo é breve».[xiii] Contudo deixa claro que era uma opinião pessoal e um desejo dele,[xiv] não uma exigência de Cristo: «Não tenho nenhum preceito do Senhor».[xv] Ao mesmo tempo reconhecia o valor de ambas as vocações: «Cada um recebe de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, outro de outra».[xvi]
Neste sentido, diz São João Paulo II que os textos bíblicos «não oferecem motivo para sustentar nem a “inferioridade” do matrimónio, nem a “superioridade” da virgindade ou do celibato» devido à abstinência sexual.[xvii]
Em vez de se falar da superioridade da virgindade sob todos os aspectos, parece mais apropriado mostrar que os diferentes estados de vida são complementares, de tal modo que um pode ser mais perfeito num sentido e outro pode sê-lo a partir dum ponto de vista diferente. Por exemplo, Alexandre de Hales afirmava que, em certo sentido, o matrimónio pode-se considerar superior aos restantes sacramentos, porque simboliza algo tão grande como «a união de Cristo com a Igreja ou a união da natureza divina com a humana». Portanto «não se trata de diminuir o valor do matrimónio em favor da continência» e «não existe fundamento algum para uma suposta contraposição (...). Se, considerando uma certa tradição teológica, se fala do estado de perfeição (status perfectionis), não é por motivo da própria continência, mas a propósito do conjunto da vida fundada sobre os conselhos evangélicos».
Entretanto uma pessoa casada pode viver a caridade num grau altíssimo.[xviii] E assim «chega àquela perfeição que nasce da caridade, mediante a fidelidade ao espírito dos referidos conselhos. Tal perfeição é possível e acessível a cada homem». A virgindade tem o valor simbólico do amor que não necessita de possuir o outro, reflectindo assim a liberdade do Reino dos Céus. É um convite para os esposos viverem o seu amor conjugal na perspectiva do amor definitivo a Cristo, como um caminho comum rumo à plenitude do Reino. Por sua vez, o amor dos esposos apresenta outros valores simbólicos: por um lado, é reflexo peculiar da Trindade, porque a Trindade é unidade plena na qual existe também a distinção. Além disso, a família é um sinal cristológico, por­que mostra a proximidade de Deus que compartilha a vida do ser humano unindo-Se-lhe na encarnação, na cruz e na ressurreição: cada cônjuge torna-se «uma só carne» com o outro e oferece-se a si mesmo para partilhar tudo com ele até ao fim. Enquanto a virgindade é um sinal «escatológico» de Cristo ressuscitado, o matrimónio é um sinal «histórico» para nós que caminhamos na terra, um sinal de Cristo terreno que aceitou unir-Se a nós e Se deu até ao derramamento do seu sangue.

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] Josef Pieper, Über die Liebe (Munique 2014), 174-175. 155 João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de Mar- ço de 1995), 23: AAS 87 (1995), 427.
[ii] (1 Ts 4, 6)
[iii] Paulo VI, Carta enc. Humanae vitae (25 de Julho de 1968), 13: AAS 60 (1968), 489. 157 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 49.
[iv] (1 Cor 7, 5)
[v] Catequese (18 de Junho de 1980), 5: Insegnamenti 3/1 (1980), 1778; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/VI/1980), 18. 159 Ibid., 6. 160 Cf. Idem, Catequese (30 de Julho de 1980), 1: Insegnamenti 3/2 (1980), 311; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/VIII/1980), 12. 161 Idem, Catequese (8 de Abril de 1981), 3: Insegnamenti 4/1 (1981), 904; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/IV/1981), 12.
[vi] (Ef 5, 22)
[vii] (Ef 5, 28)
[viii] (Ef 5, 21)
[ix] Catequese (11 de Agosto de 1982), 4: Insegnamenti 5/3 (1982), 205-206; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 15/VIII/1982), 8.
[x] Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 5: AAS 98 (2006), 221. 164 Ibid., 7: o. c., 223-224.
[xi] (cf. 1 Cor 7, 32)
[xii] (Mt 22, 30)
[xiii] (1 Cor 7, 29)
[xiv] (cf. 1 Cor 7, 6-8)
[xv] (1 Cor 7, 25)
[xvi] (1 Cor 7, 7)
[xvii] Relatio Finalis 2015, 22.
[xviii] Catequese (14 de Abril de 1982), 1: Insegnamenti 5/1 (1982), 1176; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 18/IV/1982), 12. 167 Glossa in quatuor libros sententiarum Petri Lombardi, IV, XXVI, 2 (Quaracchi 1957, 446). 168 João Paulo II, Catequese (7 de Abril de 1982), 2: Insegnamenti 5/1 (1982), 1127; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 11/IV/1982), 12. 169 Idem, Catequese (14 de Abril de 1982), 3: Insegnamenti 5/1 (1982), 1177; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 18/IV/1982), 12.

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