EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO IV
O AMOR NO MATRIMÓNIO
Alegria e beleza.
No
matrimónio, convém cuidar a alegria do amor.
Quando
a busca do prazer é obsessiva, encerra-nos numa coisa só e não permite encontrar
outros tipos de satisfações.
Pelo
contrário, a alegria expande a capacidade de desfrutar e permite-nos encontrar
prazer em realidades variadas, mesmo nas fases da vida em que o prazer se
apaga.
Por
isso, dizia São Tomás que se usa a palavra «alegria»
para se referir à dilatação da amplitude do coração.
A
alegria matrimonial, que se pode viver mesmo no meio do sofrimento, implica
aceitar que o matrimónio é uma combinação necessária de alegrias e fadigas, de
tensões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de
aborrecimentos e prazeres, sempre no caminho da amizade que impele os esposos a
cuidarem um do outro: «prestam-se
recíproca ajuda e serviço».[i]
O
amor de amizade chama-se «caridade»,
quando capta e aprecia o «valor sublime»
que tem o outro.
A
beleza – o «valor sublime» do outro,
que não coincide com os seus atractivos físicos ou psicológicos – permite-nos
saborear o carácter sagrado da pessoa, sem a imperiosa necessidade de a
possuir.
Na
sociedade de consumo, o sentido estético empobrece-se e, assim, se apaga a
alegria. Tudo se destina a ser comprado, possuído ou consumido, incluindo as
pessoas.
Ao
contrário, a ternura é uma manifestação deste amor que se liberta do desejo da
posse egoísta. Leva-nos a vibrar à vista duma pessoa, com imenso respeito e um
certo receio de lhe causar dano ou tirar a sua liberdade. O amor pelo outro
implica este gosto de contemplar e apreciar o que é belo e sagrado do seu ser
pessoal, que existe para além das minhas necessidades. Isto permite-me procurar
o seu bem, mesmo quando sei que não pode ser meu ou quando se tornou fisicamente
desagradável, agressivo ou chato.
Por
isso, «do amor pelo qual uma pessoa me é
agradável, depende que lhe dê algo de graça».
A
experiência estética do amor exprime-se naquele olhar que contempla o outro
como fim em si mesmo, ainda que esteja doente, velho ou privado de atractivos
sensíveis.
O
olhar que aprecia tem uma enorme importância e, recusá-lo, habitualmente faz
dano. Às vezes, quantas coisas fazem os cônjuges e os filhos para ser
considerados e tidos em conta! Muitas feridas e crises têm a sua origem no
momento em que deixamos de nos contemplar.[ii] Isto é o que exprimem algumas queixas e reclamações,
que se ouvem nas famílias:
«O meu marido não me olha, para ele parece
que sou invisível».
«Por favor, olha para mim, quando te falo».
«A minha mulher já não me olha, agora só tem
olhos para os filhos». «Em minha
casa, não interesso a ninguém, nem sequer me vêem, é como se não existisse».
O
amor abre os olhos e permite ver, mais além de tudo, quanto vale um ser humano.
A
alegria deste amor contemplativo deve ser cultivada. Uma vez que somos feitos
para amar, sabemos que não há maior alegria do que partilhar um bem: «Dá e recebe, e alegra a tua vida».[iii]
As
alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade dos
outros, numa antecipação do Céu.
Vem
a propósito recordar a cena feliz do filme A festa de Babette, quando a
generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce e
consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas.
Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si
mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado, que transborda para
o outro e se torna fecundo nele.
Por
outro lado, a alegria renova-se no sofrimento. Como dizia Santo Agostinho, «quanto mais grave foi o perigo no combate,
tanto maior é o gozo no triunfo».
Depois
de ter sofrido e lutado unidos, os cônjuges podem experimentar que valeu a
pena, porque conseguiram algo de bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem
apreciar melhor o que têm. Poucas alegrias humanas são tão profundas e festivas
como quando duas pessoas que se amam conquistaram, conjuntamente, algo que lhes
custou um grande esforço compartilhado.
Casar-se por amor.
Quero dizer aos jovens que nada disto é prejudicado,
quando o amor assume a modalidade da instituição matrimonial. A união encontra
nesta instituição o modo de canalizar a sua estabilidade e o seu crescimento
real e concreto. É verdade que o amor é muito mais do que um consentimento
externo ou uma forma de contrato matrimonial, mas é igualmente certo que a
decisão de dar ao matrimónio uma configuração visível na sociedade com certos
compromissos manifesta a sua relevância: mostra a seriedade da identificação
com o outro, indica uma superação do individualismo de adolescente e expressa a
firme opção de se pertencerem um ao outro.
Casar-se
é uma maneira de exprimir que realmente se abandonou o ninho materno, para
tecer outros laços fortes e assumir uma nova responsabilidade perante outra pessoa.[iv]
Isto
vale muito mais do que uma mera associação espontânea para mútua compensação,
que seria a privatização do matrimónio. Este, como instituição social, é protecção
e instrumento para o compromisso mútuo, para o amadurecimento do amor, para
que a opção pelo outro cresça em solidez, concretização e profundidade, e
possa, por sua vez, cumprir a sua missão na sociedade.
Por
isso, o matrimónio supera qualquer moda passageira e persiste.
A
sua essência está radicada na própria natureza da pessoa humana e do seu
carácter social. Implica uma série de obrigações; mas estas brotam do próprio
amor, um amor tão decidido e generoso que é capaz de arriscar o futuro.
Semelhante
opção pelo matrimónio expressa a decisão real e efectiva de transformar dois
caminhos num só, aconteça o que acontecer e contra todo e qualquer desafio.
Pela seriedade de que se reveste este compromisso público de amor, não pode ser
uma decisão precipitada; mas, pela mesma razão, também não pode ser adiado
indefinidamente.
Comprometer-se
de forma exclusiva e definitiva com outrem sempre encerra uma parcela de risco
e de aposta ousada. A recusa de assumir um tal compromisso é egoísta, interesseira,
mesquinha; não consegue reconhecer os direitos do outro e não chega jamais a
apresentá-lo à sociedade como digno de ser amado incondicionalmente. Aliás,
aqueles que estão verdadeiramente enamorados tendem a manifestar aos outros o
seu amor. O amor concretizado num matrimónio contraído diante dos outros, com
todas as obrigações decorrentes dessa institucionalização, é manifestação e
protecção dum «sim» que se dá sem
reservas nem restrições. Este sim significa dizer ao outro que poderá sempre confiar,
não será abandonado, se perder atractivo, se tiver dificuldades ou se se apresentarem
novas possibilidades de prazer ou de interesses egoístas. Amor que se manifesta
e cresce O amor de amizade unifica todos os aspectos da vida matrimonial e ajuda
os membros da família a avançarem em todas as suas fases. Por isso, os gestos
que exprimem este amor devem ser constantemente cultivados, sem mesquinhez,
cheios de palavras generosas. Na família, «é
necessário usar três palavras: com licença, obrigado, desculpa. Três
palavras-chave».
«Quando
numa família não somos invasores e pedimos “com licença”, quando na família não
somos egoístas e aprendemos a dizer “obrigado”, e quando na família nos damos
conta de que fizemos algo incorrecto e pedimos “desculpa”, nessa família existe
paz e alegria». Não sejamos mesquinhos no uso destas palavras, sejamos generosos
repetindo-as dia-a-dia, porque «pesam certos silêncios, às vezes mesmo em
família, entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre irmãos».[v]
Pelo
contrário, as palavras adequadas, ditas no momento certo, protegem e alimentam
o amor dia após dia. Tudo isto se realiza num caminho de contínuo crescimento.
Esta forma muito particular de amor, que é o matrimónio, é chamada a um amadurecimento
constante, pois deve aplicar-se-lhe sempre aquilo que São Tomás de Aquino dizia
da caridade: «A caridade, devido à sua
natureza, não tem um termo de aumento, porque é uma participação da caridade
infinita que é o Espírito Santo. (...) E, do lado do sujeito, também não é possível
prefixar-lhe um termo, porque, ao crescer na caridade, eleva-se também a
capacidade para um aumento maior».
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[i] Cf. Summa theologiae,
I-II, q. 31, art. 3, ad 3. 128 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no
mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.
[v] Francisco, Discurso
às famílias do mundo inteiro por ocasião da sua peregrinação a Roma no Ano da
Fé (26 de Outubro de 2013): AAS 105 (2013), 980. 133 Idem, Angelus (29 de
Dezembro de 2013): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 02/I/2014),
12.
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