18/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA  

CAPÍTULO IV


O AMOR NO MATRIMÓNIO

Alegria e beleza.

No matrimónio, convém cuidar a alegria do amor.
Quando a busca do prazer é obsessiva, encerra-nos numa coisa só e não permite en­contrar outros tipos de satisfações.
Pelo contrário, a alegria expande a capacidade de desfrutar e permite-nos encontrar prazer em realidades variadas, mesmo nas fases da vida em que o prazer se apaga.

Por isso, dizia São Tomás que se usa a palavra «alegria» para se referir à dilatação da amplitude do coração.
A alegria matrimonial, que se pode viver mesmo no meio do sofrimento, implica aceitar que o matrimónio é uma combinação necessária de alegrias e fadigas, de tensões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de aborrecimentos e prazeres, sempre no caminho da amizade que impele os esposos a cuidarem um do outro: «prestam-se recíproca ajuda e serviço».[i]
O amor de amizade chama-se «caridade», quando capta e aprecia o «valor sublime» que tem o outro.

A beleza – o «valor sublime» do outro, que não coincide com os seus atractivos físicos ou psicológicos – permite-nos saborear o carácter sagrado da pessoa, sem a imperiosa necessidade de a possuir.
Na sociedade de consumo, o sentido estético empobrece-se e, assim, se apaga a alegria. Tudo se destina a ser comprado, possuído ou consumido, incluindo as pessoas.
Ao contrário, a ternura é uma manifestação deste amor que se liberta do desejo da posse egoísta. Leva-nos a vibrar à vista duma pessoa, com imenso respeito e um certo receio de lhe causar dano ou tirar a sua liberdade. O amor pelo outro implica este gosto de contemplar e apreciar o que é belo e sagrado do seu ser pessoal, que existe para além das minhas necessidades. Isto permite-me procurar o seu bem, mesmo quando sei que não pode ser meu ou quando se tornou fisicamente desagradável, agressivo ou chato.
Por isso, «do amor pelo qual uma pessoa me é agradável, depende que lhe dê algo de graça».
A experiência estética do amor exprime-se naquele olhar que contempla o outro como fim em si mesmo, ainda que esteja doente, velho ou privado de atractivos sensíveis.
O olhar que aprecia tem uma enorme importância e, recusá-lo, habitualmente faz dano. Às vezes, quantas coisas fazem os cônjuges e os filhos para ser considerados e tidos em conta! Muitas feridas e crises têm a sua origem no momento em que deixamos de nos contemplar.[ii] Isto é o que exprimem algumas queixas e reclamações, que se ouvem nas famílias:
«O meu marido não me olha, para ele parece que sou invisí­vel».
«Por favor, olha para mim, quando te falo».
«A minha mulher já não me olha, agora só tem olhos para os filhos». «Em minha casa, não interesso a ninguém, nem sequer me vêem, é como se não existisse».

O amor abre os olhos e permite ver, mais além de tudo, quanto vale um ser humano.
A alegria deste amor contemplativo deve ser cultivada. Uma vez que somos feitos para amar, sabemos que não há maior alegria do que partilhar um bem: «Dá e recebe, e alegra a tua vida».[iii]

As alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade dos outros, numa antecipação do Céu.

Vem a propósito recordar a cena feliz do filme A festa de Babette, quando a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce e consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas. Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado, que transborda para o outro e se torna fecundo nele.
Por outro lado, a alegria renova-se no sofrimento. Como dizia Santo Agostinho, «quanto mais grave foi o perigo no combate, tanto maior é o gozo no triunfo».
Depois de ter sofrido e lutado unidos, os cônjuges podem experimentar que valeu a pena, porque conseguiram algo de bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem apreciar melhor o que têm. Poucas alegrias humanas são tão profundas e festivas como quando duas pessoas que se amam conquistaram, conjuntamente, algo que lhes custou um grande esforço compartilhado.

Casar-se por amor.

 Quero dizer aos jovens que nada disto é prejudicado, quando o amor assume a modalidade da instituição matrimonial. A união encontra nesta instituição o modo de canalizar a sua estabilidade e o seu crescimento real e concreto. É verdade que o amor é muito mais do que um consentimento externo ou uma forma de contrato matrimonial, mas é igualmente certo que a decisão de dar ao matrimónio uma configuração visível na sociedade com certos compromissos manifesta a sua relevância: mostra a seriedade da identificação com o outro, indica uma superação do individualismo de adolescente e expressa a firme opção de se pertencerem um ao outro.

Casar-se é uma maneira de exprimir que realmente se abandonou o ninho materno, para tecer outros laços fortes e assumir uma nova responsabilidade perante outra pessoa.[iv]
Isto vale muito mais do que uma mera associação espontânea para mútua compensação, que seria a privatização do matrimónio. Este, como instituição social, é protecção e instrumento para o compromisso mú­tuo, para o amadurecimento do amor, para que a opção pelo outro cresça em solidez, concretização e profundidade, e possa, por sua vez, cumprir a sua missão na sociedade.

Por isso, o matrimónio supera qualquer moda passageira e persiste.
A sua essência está radicada na própria natureza da pessoa humana e do seu carácter social. Implica uma série de obrigações; mas estas brotam do próprio amor, um amor tão decidido e generoso que é capaz de arriscar o futuro.
Semelhante opção pelo matrimónio expressa a decisão real e efectiva de transformar dois caminhos num só, aconteça o que acontecer e contra todo e qualquer desafio. Pela seriedade de que se reveste este compromisso público de amor, não pode ser uma decisão precipitada; mas, pela mesma razão, também não pode ser adiado indefinidamente.
Comprometer-se de forma exclusiva e definitiva com outrem sempre encerra uma parcela de risco e de aposta ousada. A recusa de assumir um tal compromisso é egoísta, interesseira, mesquinha; não consegue reconhecer os direitos do outro e não chega jamais a apresentá-lo à sociedade como digno de ser amado incondicionalmente. Aliás, aqueles que estão verdadeiramente enamorados tendem a manifestar aos outros o seu amor. O amor concretizado num matrimónio contraído diante dos outros, com todas as obrigações decorrentes dessa institucionalização, é manifestação e protecção dum «sim» que se dá sem reservas nem restrições. Este sim significa dizer ao outro que poderá sempre confiar, não será abandonado, se perder atractivo, se tiver dificuldades ou se se apresentarem novas possibilidades de prazer ou de interesses egoístas. Amor que se manifesta e cresce O amor de amizade unifica todos os aspectos da vida matrimonial e ajuda os membros da família a avançarem em todas as suas fases. Por isso, os gestos que exprimem este amor devem ser constantemente cultivados, sem mesquinhez, cheios de palavras generosas. Na família, «é necessário usar três palavras: com licença, obrigado, desculpa. Três palavras-chave».

«Quando numa família não somos invasores e pedimos “com licença”, quando na família não somos egoístas e aprendemos a dizer “obrigado”, e quando na família nos damos conta de que fizemos algo incorrecto e pedimos “desculpa”, nessa família existe paz e alegria». Não sejamos mesquinhos no uso destas palavras, sejamos generosos repetindo-as dia-a-dia, porque «pesam certos silêncios, às vezes mesmo em família, entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre irmãos».[v]

Pelo contrário, as palavras adequadas, ditas no mo­mento certo, protegem e alimentam o amor dia após dia. Tudo isto se realiza num caminho de contínuo crescimento. Esta forma muito particular de amor, que é o matrimónio, é chamada a um amadurecimento constante, pois deve aplicar-se-lhe sempre aquilo que São Tomás de Aquino dizia da caridade: «A caridade, devido à sua natureza, não tem um termo de aumento, porque é uma participação da caridade infinita que é o Espírito Santo. (...) E, do lado do sujeito, também não é possível prefixar-lhe um termo, porque, ao crescer na caridade, eleva-se também a capacidade para um aumento maior».

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] Cf. Summa theologiae, I-II, q. 31, art. 3, ad 3. 128 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.
[ii] Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 26, art. 3. 130 Ibid., I-II, q. 110, art. 1.
[iii] (Sir 14, 16)
[iv] Confissões, VIII, 3, 7: PL 32, 752
[v] Francisco, Discurso às famílias do mundo inteiro por ocasião da sua peregrinação a Roma no Ano da Fé (26 de Outubro de 2013): AAS 105 (2013), 980. 133 Idem, Angelus (29 de Dezembro de 2013): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 02/I/2014), 12.

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