EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO IV
O AMOR NO MATRIMÓNIO
Perdão.
Se
permitirmos a entrada dum mau sentimento no nosso íntimo, damos lugar ao
ressentimento que se aninha no coração.
A
frase logí- zetai to kakón significa
que se «tem em conta o mal», «trá-lo gravado», ou seja, está
ressentido.
O
contrário disto é o perdão; perdão fundado numa atitude positiva que procura
compreender a fraqueza alheia e encontrar desculpas para a outra pessoa, como
Jesus que diz: «Perdoa-lhes, Pai, porque
não sabem o que fazem».[i]
Entretanto
a tendência costuma ser a de buscar cada vez mais culpas, imaginar cada vez
mais maldades, supor todo o tipo de más intenções, e assim o ressentimento vai
crescendo e cria raízes. Deste modo, qualquer erro ou queda do cônjuge pode
danificar o vínculo de amor e a estabilidade familiar. O problema é que, às
vezes, atribui-se a tudo a mesma gravidade, com o risco de tornar-se cruel perante
qualquer erro do outro.[ii]
A
justa reivindicação dos próprios direitos torna-se mais uma persistente e constante
sede de vingança do que uma sã defesa da própria dignidade.
Quando
estivermos ofendidos ou desiludidos, é possível e desejável o perdão; mas
ninguém diz que seja fácil. A verdade é que «a comunhão familiar só pode ser conservada e aperfeiçoada com grande espírito
de sacrifício. Exige, de facto, de todos e de cada um, pronta e generosa
disponibilidade à compreensão, à tolerância, ao perdão, à reconciliação.
Nenhuma família ignora como o egoísmo, o desacordo, as tensões, os conflitos
agridem, de forma violenta e às vezes mortal, a comunhão: daqui as múltiplas e
variadas formas de divisão da vida familiar».
Hoje
sabemos que, para se poder perdoar, precisamos de passar pela experiência
libertadora de nos compreendermos e perdoarmos a nós mesmos. Quantas vezes os
nossos erros ou o olhar crítico das pessoas que amamos nos fizeram perder o
amor a nós próprios; isto acaba por nos levar a acautelar-nos dos outros,
esquivando-nos do seu afecto, enchendo-nos de suspeitas nas relações interpessoais.
Então, poder culpar os outros torna-se um falso alívio. Faz falta rezar com a
própria história, aceitar-se a si mesmo, saber conviver com as próprias
limitações e inclusive perdoar-se, para poder ter esta mesma atitude com os
outros.[iii]
Mas
isto pressupõe a experiência de ser perdoados por Deus, justificados
gratuitamente e não pelos nossos méritos. Fomos envolvidos por um amor prévio a
qualquer obra nossa, que sempre dá uma nova oportunidade, promove e incentiva.
Se aceitamos que o amor de Deus é incondicional, que o carinho do Pai não se
deve comprar nem pagar, então poderemos amar sem limites, perdoar aos outros,
ainda que tenham sido injustos para connosco. Caso contrário, a nossa vida em
família deixará de ser um lugar de compreensão, companhia e incentivo, e tornar-se-á
um espaço de permanente tensão ou de castigo mútuo.
Alegrar-se com os outros.
A
expressão jairei epi te adikía indica
algo de negativo arraigado no segredo do coração da pessoa. É a atitude
venenosa de quem, ao ver feita a alguém uma injustiça, se alegra. A frase é
completada pela seguinte, que o diz de forma positiva: sygjairei te alétheia – rejubila com a verdade. Por outras
palavras, alegra-se com o bem do outro, quando se reconhece a sua dignidade,
quando se apreciam as suas capacidades e as suas boas obras. Isto é impossível
para quem sente a necessidade de estar sempre a comparar-se ou a competir,
inclusive com o próprio cônjuge, até ao ponto de se alegrar secretamente com os
seus fracassos.
Quando
uma pessoa que ama pode fazer algo de bom pelo outro, ou quando vê que a vida
está a correr bem ao outro, vive isso com alegria e, assim, dá glória a Deus,
porque «Deus ama quem dá com alegria»,[iv] nosso Senhor aprecia de modo especial quem se alegra
com a felicidade do outro. Se não alimentamos a nossa capacidade de rejubilar
com o bem do outro, concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias
necessidades, condenamo-nos a viver com pouca alegria, porque – como disse Jesus
– «a felicidade está mais em dar do que
em receber».[v]
A
família deve ser sempre o lugar onde uma pessoa que consegue algo de bom na
vida, sabe que ali se vão congratular com ela. Tudo desculpa. O elenco é
completado com quatro expressões que falam duma totalidade: «tudo». Tudo desculpa,
tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Assim se destaca vigorosamente o dinamismo
contracorrente do amor, capaz de enfrentar qualquer coisa que o possa ameaçar.
Em primeiro lugar, diz-se que «tudo
desculpa – panta stégei».
É
diferente de «não ter em conta o mal»,
porque este termo tem a ver com o uso da língua; pode significar «guardar silêncio» a propósito do mal que
possa haver noutra pessoa. Implica limitar o juízo, conter a inclinação para se
emitir uma condenação dura e implacável: «Não
condeneis e não sereis condenados».[vi]
Embora
isto vá contra o uso que habitualmente fazemos da língua, a Palavra de Deus
pede-nos: «Não faleis mal uns dos outros,
irmãos».[vii] Deter-se a danificar a imagem do outro é uma maneira
de reforçar a própria, de descarregar ressentimentos e invejas, sem se importar
com o dano causado. Muitas vezes esquece-se que a difamação pode ser um grande
pecado, uma grave ofensa a Deus, quando afecta seriamente a boa fama dos
outros, causando-lhes danos muito difíceis de reparar.
Por
isso a Palavra de Deus se mostra tão dura com a língua, dizendo que «é um mundo de iniquidade [que] contamina
todo o corpo»,[viii] «um mal
incontrolável, carregado de veneno mortal».[ix] Se «com ela
amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus»,[x] o amor faz o contrário, defendendo a imagem dos outros
e com uma delicadeza tal que leva mesmo a preservar a boa fama dos inimigos. Ao
defender a lei divina, é preciso nunca esquecer esta exigência do amor.
Os
esposos, que se amam e se pertencem, falam bem um do outro, procuram mostrar mais
o lado bom do cônjuge do que as suas fraquezas e erros. Em todo o caso, guardam
silêncio para não danificar a sua imagem. Mas não é apenas um gesto externo,
brota duma atitude interior. Também não é a ingenuidade de quem pretende não
ver as dificuldades e os pontos fracos do outro, mas a perspectiva ampla de
quem coloca estas fraquezas e erros no seu contexto; lembra-se de que estes
defeitos constituem apenas uma parte, não são a totalidade do ser do outro: um
facto desagradável no relacionamento não é a totalidade desse relacionamento.
Assim é possível aceitar, com simplicidade, que todos somos uma complexa combinação
de luzes e sombras. O outro não é apenas aquilo que me incomoda; é muito mais
do que isso. E, pela mesma razão, não lhe exijo que seja perfeito o seu amor
para o apreciar: ama-me como é e como pode, com os seus limites, mas o facto de
o seu amor ser imperfeito não significa que seja falso ou que não seja real. É
real, mas limitado e terreno. Por isso, se eu lhe exigir demais, de alguma maneira
mo fará saber, pois não poderá nem aceitará desempenhar o papel dum ser divino
nem estar ao serviço de todas as minhas necessidades. O amor convive com a
imperfeição, desculpa-a e sabe guardar silêncio perante os limites do ser
amado. Confia. «Panta pisteuei – tudo crê».
Pelo contexto, não se deve entender esta «fé» em sentido teológico, mas no
sentido comum de «confiança». Não se trata apenas de não suspeitar que o outro
esteja mentindo ou enganando; esta confiança básica reconhece a luz acesa por
Deus que se esconde por detrás da escuridão, ou a brasa ainda acesa sob as cinzas.
É
precisamente esta confiança que torna possível uma relação em liberdade. Não é
necessário controlar o outro, seguir minuciosamente os seus passos, para evitar
que fuja dos meus braços. O amor confia, deixa em liberdade, renuncia a
controlar tudo, a possuir, a dominar. Esta liberdade, que possibilita espaços
de autonomia, abertura ao mundo e novas experiências, consente que a relação se
enriqueça e não se transforme numa endogamia sem horizontes. Assim, ao reencontrar-se,
os cônjuges podem viver a alegria de partilhar o que receberam e aprenderam
fora do circuito familiar. Ao mesmo tempo torna possível a sinceridade e a
transparência, porque uma pessoa, quando sabe que os outros confiam nela e
apreciam a bondade basilar do seu ser, mostra-se como é, sem dissimulações.
Pelo contrário, quando alguém sabe que sempre suspeitam dele, julgam-no sem compaixão
e não o amam incondicionalmente, preferirá guardar os seus segredos, esconder
as suas quedas e fraquezas, fingir o que não é.
Concluindo,
uma família, onde reina uma confiança sólida, carinhosa e, suceda o que
suceder, sempre se volta a confiar, permite o florescimento da verdadeira identidade
dos seus membros, fazendo com que se rejeite espontaneamente o engano, a
falsidade e a mentira.
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[ii] Francisco, Catequese
(13 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
14/V/2015), 16.
[iii] João Paulo II,
Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 21: AAS 74 (1982),
106.
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